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  • Teresa - uma mãe de Portugal
    Iniciado por Templa
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Uma mãe de Portugal

Teresa, cerrando os punhos que escondiam na palma da mão a força da raiva, mal se viu despojada do pedaço da terra que lhe adveio por virtude da cruzada encetada pelo seu marido contra os infiéis, amaldiçoou o fedelho conquistador que lho arrebatara.
Reviu, então, a traição da carne, para a maioria das pessoas gerada no seu ventre em dia de descanso de guerreiro, a quem criara com todo o amor, chorando agora a sua dupla viuvez. Quase ao mesmo tempo ficara sem esposo e sem o filho pelos quais trocara o velho pai, que lhe dera o primeiro de presente junto com uma nesga de terreno como dote, aos quais se veio depois juntar um espermatozóide enfezado.
Um sucumbira à morte morrida e o que tomou o lugar do que devia ser o outro entregara-se ao o jugo do poder que agora esbracejava contra si, enquanto a pobre mãe se arrependia amargamente de, à nascença do tal pequeno mentalmente estropiado, não ter optado por uma solução mais drástica.
Mas, a culpa do embuste fora do criado. Este, imbuído por um sentimento mais de amor paternal do que à pequena leira onde esgrimia as espadas contra as arabescas criaturas, não hesitou em trocar a sanidade do seu rebento pela debilidade que resultara da sociedade conjugal de que se compunha a sua entidade patronal. Afinal, o rapazito, o sangue do seu sangue, com a troca iria acabar por perder o vermelho plebeu e adquirir o azul dinástico insuflado nas veias dos nobres por Deus, directamente no céu.
Eram estes os vinagres onde Teresa curtia as suas mágoas quando, despejada da sua casa, optou pelo regresso ao lar paterno. As navalhas de barba não tinham ainda sido inventadas e era aí que a rapariga procurava o conforto das palavras do progenitor, que comungava da raiva filial. Afinal, o neto para todos os efeitos, numa atitude verdadeiramente insolente, desafiara a potestas em que um avô fora investido pelo supremo altíssimo, retalhando-lhe o reino em mais um pedaço e, ainda por cima, tão pequeno que mal dava para lá colocar uma retrete.
É certo que, se os comparsas do mal agradecido rapaz conseguissem expulsar a mourama, ficava com água suficiente para lavar os dejectos e colocar uns barquitos à vela, mas, fora isso, o tempo demonstraria que, além da infâmia, a rebeldia haveria de redundar num rotundo fiasco.
Teresa, por mais que o tentasse, não conseguia eximir a cabeça às teias das aranhas tecedeiras pespegadas nos seus pensamentos como polícias do século XXI infiltrados nas rotas do crime. Os maus presságios dançavam-lhe nos hemisférios cerebrais como pulgas inquietas à procura de um pedaço de carne onde pudessem afiar o dente. Além de que as palavras do velho castelhano não cicatrizavam senão umas pequenas feriditas abertas na sua alma à força de canelada, pela ingratidão de Afonso. Mal tinha tempo de esperar que se cumprisse a profecia do pai.
O velho, imbuído de anciã sabedoria, estava em crer que um dia os verdadeiros netos, os portadores de contraste real, marca semelhante à do ouro de lei, conseguissem reunificar as duas partes mutiladas, a que se seguiriam as outras três ou quatro, para assim se perpetuar a grandeza do sítio.
Também a Teresa, além de lhe custar muito a ideia do esfrangalhamento do seu torrão natal, custava-lhe ainda mais a divisão do mundo em dois, dando-se uma metade aos vassalos do Afonsinho e outra aos seus verdadeiros hermanos, para cada um e à sua media sugar o mundo até ao tutano.
Por muitas coisas já Teresa constatara que os homens eram e são um bocado ladrões e que os países, ao longo dos séculos, têm passado a vida a roubar-se uns aos outros. Uns locupletaram-se com jóias e obras de arte de todos os continentes que dormem sob o pó austero dos museus; outros, muito embora de uma forma arrevesada, embebedam-se com o petróleo com que incendeiam o terráqueo planeta e outros, ainda, espirram constantemente por causa da pimenta com que picam a feijoada e os enchidos. Finalmente, todos tentam escanhoar as pepitas de ouro dos rios onde muitos morrem afogados.
Teresa, no seu acutilante sexto sentido, já percebera que os primos Filipes não lograriam de novo a verdadeira união, atenta a semelhança das carnes lusitanas, às quais pertencia o seu adoptado herdeiro. Também sabia que a abundância de dinheiro havia de ser a morte do artista português e que os farrapos e as outras coisas compradas no estrangeiro mergulhariam todas as artes, incluindo a de trabalhar os campos, nas ruas da amargura.
Tirando o Sebastião, o José, a quem os supersónicos genes atribuíram uma visão arrojada do mundo, o resto eram políticos de meia tigela a viverem uma animosidade lateral por causa da linha régia onde tiveram origem. Passavam o tempo a coçar os arremessos de Buñol (leia-se tomates) e a pavonear as cabeleiras e as gargantilhas em todos os lados onde o sumptuário e o frívolo tomassem assento.
Por tudo isso, não lhe fossem dizer a ela, Teresa, que a culpa do marasmo recaía inteirinha em Salazar. E não lhe fossem também levar recadinhos sobre o júbilo do senhor C. Martins, o homem do Desabafe Connosco − defensor do estadista até à irracionalidade − uma espécie de causídico que às vezes redundava num fanatismo com cheiro a bafio, sempre (e era sempre, mesmo) que se dedicava a lustrar os galões do finado, por ela, Teresa, uma mãe de Portugal, ter reconhecido tal coisa. Afinal, onde estava a revolução industrial que as grandes potências europeias haviam feito quase dois séculos atrás? E a reforma agrária levada a cabo praticamente na mesma altura ou até antes, sobretudo nas terras de sua majestade? Acaso o santa-combadense, se é assim se podem chamar aos habitantes daquela terra beirã, tem culpa de atrasos tão estruturais?
Além do mais, não era de hoje que os descendentes de Afonsinho (só ainda não lhe retirara o diminutivo do nome mais por hábito do que por vontade própria) têm vocação para gastarem o que têm e o que não têm e de comprometerem o futuro dos netos e tetranetos.
O paradigma do desgoverno, na opinião de Teresa, poderia ser apontado ao João número 5 que, em vez de promover a indústria da fundição para fabricar os carrilhões do Convento de Mafra e das inúmeras igrejas existentes por esse burgo fora, foi encomendar os sinos aos holandeses, tendo feito o mesmo com os mármores e outras bandeiras que agora não lhe apetecia desfraldar.
Já chegava de roupa suja e de línguas de comadres zangadas, pensava Teresa, ao mesmo tempo que tentava apaziguar o fel hepático das suas entranhas reviradas. Disso haveria de falar Saramago nas suas divagações literárias, enquanto a herege passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão havia de condenar o amor de Blimunda e Baltazar à fogueira, na pessoa do amado. E nesse tempo, até bem mais do que nos séculos XX e XXI, o povo enchia a barriga de fome enquanto o ouro do Brasil enriquecia as nações sem mar e este começava a desviar as correntes auríferas que nasciam lá no sul, na terra do índio primitivo, para os buracos financeiros de então e de quase sempre.
Mas, por agora, iria ficar por aqui, muito embora houvesse muito para vomitar...
Depois, mais tarde e passadas as revoltas fratricidas, quando se fazia a arqueologia da civilização helénica e a república fora desenterrada, ainda ela a república evidenciava os sinais da puberdade inconsequente, lá desceu o homem de Santa Comba da cátedra coimbrã para por cobro à inflação presidencial e à sangria económica desencadeada por esse mundo fora.
Teresa achava que o doutor financista, nos primeiros quinze anos, fora de uma robustez de betão esforçado mas, após isso, depressa a lucidez governativa degenerou em cancro pulmonar, começando a nação a respirar, em vez de uma expansão oxigenada, um anidrido carbónico que a fazia enfraquecer de dia para dia.
A criatura, em vez de se dedicar à nobre arte da política maiúscula dedicou-se à política que se escrevia com diminutivos: o hospitalzinho inaugurado, a escolazinha, o carreirinho para a vila mais próxima, o barquinho para ali, o tostãozinho para acolá, o tostãozinho que ele aferrolhava de uma forma tão compulsiva ao ponto de um pasteleiro audaz e sem medo da Pide, numa atitude irónica, ter chamado Salazar ao objecto com que rapava a massa dos bolos. E bem poderíamos aproveitar a elucidativa metáfora para dizer que a acção governativa do senhor era toda ela feita com restos, uma vulgar roupa velha, como se os descendentes de Afonso não merecessem vestir trapos novos.
Enquanto isso, o homem, babando desgovernadamente, deslumbrava-se com as barras de ouro entesourado no banco, livres do pó dos caminhos tortuosos que o povo trilhava. O presidente, já bafiento pelo decurso do tempo que o esclerosara, bastava-se com velhas infra-estruturas como, por exemplo, as ferroviárias, as quais permaneciam tal como na época da sua feitura e até já a resvalar para o carunchento.
A grande auto-estrada Porto-Lisboa começava numa cidade, perdia-se a seguir por entre os pinhais e, um ou dois quilómetros antes do destino, reiniciava-se. O tecido produtivo e empresarial era miserável e, e, e...
E como não havia a inflação de estar controlada, se não havia desenvolvimento?...
África! África!... O grande logro do dinossauro!... Por que se armou ele corrector da história e mais iluminado do que o resto das nações? Não era de supor que o continente voltasse ao berço negro onde nascera?
A segunda guerra destruíra os países que agora precisavam de ser reconstruídos. E eis que a mão-de-obra abalou e os campos desertificaram e, e, e...
No rol de vicissitudes que Teresa desembrulhara a propósito do despautério do filho ingrato, doía-lhe, sobremaneira, ver a cara das cidades, velha e enrugada, onde as casas pareciam vestidos rotos a mostrarem, por entre os rasgões, o íntimo conspurcado pela rataria, pelos restos das pratas onde se queima a heroína e onde os drogados fingem um amanhã que raramente há-de chegar. As rendas continuavam congeladas, o pecúlio dos proprietários emagrecia, pelo que os necessários cremes e as respectivas operações cosméticas eram inviáveis, por falta daquilo com que se compram as melancias − dito assim só para variar o ditado gírico.
E não lhe viesse o senhor C. Martins fazer a apologia do velho!... A grandeza de uma nação tem de ser analisada à luz das infra-estruturas que detém ou não e pelo grau académico e cultural do povo que, como se sabe e quanto ao reino de Afonsinho, era péssimo.
Depois, vieram os cravos e a festa, a seguir vieram os foguetes que trouxeram os incêndios políticos e o terrorismo do excesso, a CEE-EU foi o último eldorado e um paraíso perdido...
Nessa altura, os ricos, que durante a avareza do velho rapa-tachos eram apenas alguns, proliferaram como ervas daninhas à custa dos subsídios comunitários transformados em jipes, carros topo de gama, barcos, noites de jogatina nos casinos, mulheres, fábricas a falirem fraudulentamente, desemprego e, e, e... Onde estavam as noções e as práticas de civismo, bem comum e, e, e?!..
Ao estender uma tão grande panóplia de desgraças do rol das suas imputações a Afonso, os ácidos que corroíam a alma de Teresa, em vez de se diluírem, mais se avinagravam.
Ao ponto de, toda a história iniciada pelo rapaz lhe parecer uma enorme falácia que urgia vomitar, por indigestão. Os lusinhos pátrios desde sempre tinham sido exímios seguidores da filosofia, do dividir para reinar. Mas, vistas bem as coisas, para quê amputar pela espada o uno com que Deus dotou a Hispânia, a terra do seu nobre pai? E qual a razão de ser de um pequeno apêndice sentado à direita da velha pátria sem as bênçãos que o mesmo Deus sentou também do lado direito? Razão tinha Antero de Quental quando, em pleno século XIX, defendia o iberismo!...
Mas, a história já tinha sido varrida por ciclones de caos e talvez já não houvesse nada a fazer. A menos que...
A raiva de Teresa estava ao rubro.
Quanto mais matutava no assunto mais as pragas lhe saíam da boca, numa maldição que, se lograsse cumprir-se, o rapaz ficaria reduzido a um grão de cinza mais diminuto do que o pequeno espermatozóide que lhe dera origem. Por muitos séculos que vivesse, jamais esqueceria a humilhação que o filho infligira a uma pobre mãe viúva que ousara apaixonar-se por outro homem que não o suposto pai do rapazelho.
O jovem, vergado pela cobiça, acabou por retirar à mãe o quintal que o avô leonês oferecera à filha nubente para o casal plantar umas couves, uns pimentos e uns tomates. O mesmo sucedeu ao rebanho das cabras com cujo leite ela alimentara a imoralidade de um filho politicamente coxo, além de ladrãozinho.
Teresa flagelava-se com todos estes pensamentos, ao fim da tarde, antes de jantar, quando Portugal lhe perecia um país, muito mais do que anão, triste como a noite, perdido num sono de que não conseguia despertar. Mas, antes de ir dormir, como a fome já apertasse, Teresa sentou-se à mesa. Comeu uma salada mista, com alfaces, tomates, pimentos e pepinos. A seguir, comeu laranjas e outros frutos. Deu-se ao cuidado de ler a etiqueta pespegada com afinco no dorso das peças e que designava a origem. Espanha: dizia uma grande parte dos rótulos.
 Espanha!  gritou Teresa, com  júbilo a cantar-lhe na voz  O que não tinham logrado os primos Filipes, pela via das armas, haveriam de consegui-lo os seus súbditos pela via económica.
− Eis a minha maldição!... E quando ela se concretizar, eu, Teresa, dar-me-ei por amplamente vingada de uma vil afronta e de um viperino erro levado a cabo por um filho que bateu na mãe. Finalmente, vós havereis de ganhar razão e saber que, quando é assente sobre um erro, não há cruzada que possa ter êxito.
− E agora já posso morrer descansada! Justiça será feita!

Teresa, uma mãe de Portugal


Aveiro, 28 de Novembro de 2003
Templa - Membro nº 708

Também me parece, que daqui a pouco somos mesmo espanhois!!!

Parabéns!!!
Homem!... Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses.»

"só se desilude, quem se ilude"

Citação de: Magda_Costa em 19 setembro, 2010, 18:51
História de Portugal :)..

É verdade, com uns resquícos das teorias de José Hermano Saraiva :)
Templa - Membro nº 708

Raedon
Templa.. mais um texto que me deixa simplesmente fascinado.
Os meus parabéns pela maneira como escreves!

Cumprimentos
Raedon

Citação de: Raedon em 19 setembro, 2010, 19:05
Templa.. mais um texto que me deixa simplesmente fascinado.
Os meus parabéns pela maneira como escreves!

Cumprimentos
Raedon

"Também me parece, que daqui a pouco somos mesmo espanhois!!!

Parabéns"

Isto era em 2003. Agora já não leio jornais nem vejo TV Edhelar

Obrigada pelos vossos incentivos.

Beijinhos
Templa - Membro nº 708