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  • Insónia (Conto)
    Iniciado por StoneColdDeath
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Insónia

    – ... porque às vezes sai de casa a meio da noite, ninguém sabe, não diz para onde vai.
    – ...
    – Pega nas chaves, sai, sempre taciturno, não diz uma palavra.
    – Talvez seja mesmo sonâmbulo – agita o pacote de açúcar, rasga uma ponta, despeja o seu conteúdo para o café, mexe calmamente e olha, enquanto leva aos lábios a chávena pálida, para Fernando – mas pronto, não temos nada que ver com isso. Já se sabe que ele…
A frase suspende-se quando se apercebe da minha presença. Não sabe, nenhum dos dois sabe quanto tempo estive ali, possivelmente atento à conversa.
    Um silêncio que os embaraça. Por momentos, mantenho-o, saboreio-o.
    – Interrompo?
    Apontam-me uma cadeira vazia, rebuscando, em vão, delinear um sorriso espontâneo. Olham-me na tentativa de ler ressentimento na minha atitude. Não lhes dou essa facilidade. Aparentando toda a despreocupação que consigo, faço um sinal ao velho mirrado, talvez dono do minúsculo café. O homem arrasta os pés até à mesa, peço uma cerveja. Assenta, com um olhar mortiço.
    Igual ao meu.
    Não durmo há três dias. Todas as noites acontece o mesmo. Deito-me, abro o livro de Orwell que comprei recentemente e leio até os meus olhos pedirem clemência. Já desnorteado, poiso o livro. A mão, em busca do interruptor, tenteia a tralha indistinta que se foi acumulando na mesa-de-cabeceira, carrega no pequeno botão e transforma o alaranjado que atravessava as minhas pálpebras já cerradas numa escuridão suave e confortável. Não adormeço. Oiço, dentro de mim, à minha volta, vozes que se atropelam na monotonia de um discurso indecifrável. Uma impõe-se, mais áspera e penetrante, nesta algaraviada. Não adormeço. Vejo agora uma mesa tombada sobre o chão cinzento, passa um cão de faca nos dentes. O pêlo azul-turquesa do cão vai caindo com o seu leve trote. Cai também a faca, num equilíbrio impossível sobre a extremidade do cabo e multiplica-se num mar de lâminas, todas apontadas para cima. O cão, frouxo e apático, vai caminhando através das lâminas que o rasgam num silêncio que as gotas, esguichos, borbotões de sangue não rompem. O sangue é um mar de azul-turquesa cálido e tropical. Entra uma rapariga vestida da cor do mar. Pedala uma bicicleta da cor do vestido. Chama o cão. A carcaça dilacerada ouve a dona, salta, mergulha o que resta de si nas facas submersas. Continua a saltar, o cão. A dona, sei – não sei como – que se chama Júlia, Madame Júlia, aproxima-se de mim, poisa um beijo rápido na minha testa, larga a rir. Às gargalhadas, pega no cão. Pega na bicicleta. Pega num saco. Azul-turquesa. Tudo é azul-turquesa. Enfia lá o cão e a bicicleta. Uma gargalhada, duas, três mil gargalhadas que se multiplicam e atropelam exponencialmente. O saco é fechado e atirado ao mar. Tudo é azul, afundo-me no mar que é mar, que é mar de sangue. O mar.
    Não adormeço.
    Continuo a ouvir o minúsculo bater dos ponteiros do meu relógio de pulso. Decido tirá-lo e afundar algures aquele tiquetaque catastrófico. Abro a gaveta, atiro o relógio para o seu interior e de lá arranco as minhas determinações, uma carteira de fósforos e um maço de cigarros envelhecidos pelos dois anos que passaram desde que deixei de fumar. Essa determinação, claro, fica para trás, trocada pelo pacote amarfanhado. Soerguido na cama, risco um fósforo e acendo o cigarro. O fumo ressequido e pestilento invade-me os pulmões, desato a tossir convulsivamente. Puxo uma baforada mais parca e cautelosa, mas o fumo volta a sair aos pinotes. Muito a custo, já de lágrimas nos olhos, o peito num estertor ardente, lá queimo o cigarro até ao fim.
    Mas não vale a pena contar mais. Tem sido assim. Sempre. Três noites em que recuo perante as visões macabras e abjectas que me esperam no sono. Depois da primeira noite, comprei um maço de cigarros novo, deitei fora o velho, comprei um isqueiro. A única diferença foi a de fumar tabaco decente.
    A cerveja chega, trazida pelo velho delapidado. Os meus lábios afloram a espuma da cerveja. Pego no isqueiro, acendo um cigarro. Olho para os meus companheiros.
    – Já se sabe que eu?... Ias dizer?...
    Aguardo a resposta atrapalhada. Silêncio. O Fernando, mais resoluto, responde.
    – Já se sabe que detestas que o pessoal se meta na tua vida.
    – Pois – devoro meio cigarro de uma vez, um gole farto e demorado na cerveja – mas eu já disse que saio porque não consigo adormecer. É só isso. Não se preocupem. 
    – Ouve. São quase dez horas da manhã. Apareces-nos agora como se tivesses ido lá fora mijar. Saíste de casa sem dizer nada. O Rui pergunta-te para onde vais, e tu, moita. Ignora-lo, pegas nas chaves do carro e piras-te. Não queres que estejamos preocupados?
    – Não é preciso.
    – Mas podias ter dito qualquer coisa. ~raios~, somos teus amigos. Não temos culpa. Se o teu problema é faltar-te a gaja, ela chega depois de amanhã, não é? Deixa-te de coisas, estás de férias. Descontrai, dorme. E se não dormires, pelo menos fala ao pessoal.
    – Não se preocupem, já disse. Isto é só mais uma crise de insónias. Há-de passar.
    – Mas isso não explica o facto de te teres fechado em copas ontem à noite. Só se for sonambulismo. Agora, pegares nas chaves, enfiares-te no carro e pores-te a andar sem dizer água vai... Aliás, é perigoso.
    Olho para eles sem saber muito bem o que dizer. Acabo por propor irmos até à praia. Acabo a cerveja sem ligar aos comentários, em surdina, sobre eu estar a beber logo de manhã. Levanto-me, vou até ao balcão.
    – É para pagar tudo – estendo uma nota de cinco euros ao empregado.
    Os dedos amarelentos e encarquilhados arrepanham o dinheiro. Vai à caixa, regista. Oiço o entrechocar seco das moedas. Aterram duas no balcão. Pego nelas, meto-as num bolso atestado de papéis velhos, e volto à mesa.
    – Vamos, os cafés estão pagos.
    – Já tínhamos pago. O homem aceitou o dinheiro?
    A resmonear uma praga, volto ao balcão. O homem tinha desaparecido lá para dentro. Chamo. Aparece com um pano enxovalhado nas mãos, de cenho carregado e boca entreaberta.
    – Ó amigo, eles dizem que já tinham pago os cafés.
    –...
    – ... e eu voltei a pagá-los.
    – Ah, pois... Desculpe, sim? Distracção.
    Vai imediatamente à caixa e volta com uma moeda que coloca delicadamente no balcão.
    Faço sinal aos meus amigos e saio atrás deles.
    A praia. Não se vê ninguém. Vem do mar uma brisa salgada que traz consigo o bramido formidável das ondas em tumulto, e que se imiscui sem cerimónia no calor que os agasalhos conseguem manter. Tiramos os sapatos e avançamos, lentamente, saboreando o esboroar brando dos torrões da areia húmida e glacial. Acolá, impõe-se um colosso de rochedo que nos abriga do vento. Poisamos as guitarras. Sentamo-nos os três na areia e, depois de sacudirmos energicamente as meias, calçamos os sapatos. As guitarras saem dos estojos. Alguns minutos para afinar, as malditas das cordas desafinam-se sempre. Verifica-se a afinação. Acaricio as cordas com os dedos da mão direita. Mi maior. Fernando olha para a minha mão esquerda, repete o acorde.
    Mi maior. Perfeito.
    Estende-me uma palheta, que recuso. Novamente, mi maior. Variações. Começa a desenhar-se um blues. Mi, lá, mi, si, lá, mi. Clássico. Rui, reclinado sobre a areia, estalando os dedos, quebra o silêncio com um quase murmúrio, rouco e cavo.

The lady in the bar stabbed me with an evil eye
I thought she was the devil, she was hot, I can’t deny
And I said babe you ain’t gonna get my soul
I’ve sold it long ago to Demon Alcohol

She told me I was gonna die, no matter the day
Heaven, hell – they’re all the same, there ain’t no need to pray
But I said babe you still ain’t gonna get my soul
I’ve sold it long ago to blues and rock n’ roll

    Blues, uma história de amores vãos, solidão, loucura. O marasmo alcoólico de uma noite. O sentimento de um velho num corpo jovem. Depois da música, que acabou estupidamente com uma corda que decidiu rebentar a meio de um estupendo solo, ficamos em silêncio, a ouvir o mar. Sem qualquer aviso, atiro:
    – Não sei o que me acontece à noite. Tenho sonhos estranhos. Há um cão azul que se corta em facas, uma rapariga que é dona do cão e lhe chama Acorda, sim, ele responde por esse nome, depois a rapariga beija-me na testa, desata a rir, pega no cão e na bicicleta, mete-os num saco e atira tudo ao mar que nasce do sangue e do pêlo do cão. Acabo por me afundar.
    O Rui endireita-se, esboçando um meio sorriso.
     – Então dormes. Acabaste de dizer que tens sonhos.
    – Não percebes. O problema é que não – sublinho o não, levanto a voz, estendo bem o ditongo, de sobrolho erguido – durmo com medo do sonho. Saio da cama, visto-me, pego no carro e venho até aqui. Não me lembro de mais nada. Quando dou por mim, já é de manhã e estou nesta praia, de pé, virado para o mar.
    – És sonâmbulo.
    – E como é que me lembro de vir até aqui e não me lembro – olho para o Rui – de falares comigo quando estava para sair? Como é que não me lembro do que ando a fazer durante a noite?
    – Não encontro uma explicação mais lógica.
    Sem termos dado por isso, a brisa transformava-se num vento bravio que nos esbofeteava sem clemência. De súbito, a chuva rompeu.
    Levantamo-nos, guardamos à pressa as guitarras e corremos até ao carro, para onde nos atirámos a escorrer água. Fico, por momentos, a arquejar, especado ao volante. Encosto-me para trás e fecho os olhos. A correria acabou comigo. Quando volto a abrir os olhos, vejo, a correr sob a chuva, de cauda a abanar, um cão.
    Azul-turquesa.
    Fecho novamente os olhos, esfrego-os com violência. O cão desapareceu. Viro-me para trás. Algum deles quer conduzir? Estou cansado demais, tenho sono.
     Voltámos a casa. Cada um está no seu quarto. Aproveitei a casa de banho privativa para tomar um longo e bem merecido duche, a água quase a ferver. Saio para o quarto escrupulosamente desorganizado e procuro qualquer coisa seca e quente para vestir. Chove, ainda. De nariz achatado contra a vidraça, as mãos em concha a rodearem a minha cara, contemplo tranquilamente a rua adormecida, as grossas gotas de chuva a estralejarem na calçada. Ouço, vindas do andar de baixo, três pancadas secas. Atordoado pela modorra do cansaço e do duche quente, desço as escadas e atravesso um corredor longo e sisudo. Na sala de jantar, o Rui tenta acender a lareira. Acende um fósforo, leva-o à papelada enfronhada no meio dos troncos. O fósforo apaga-se, risca outro. Desta vez, o fósforo parte-se. A caixa sai a voar para o outro lado da sala. Rui vira-se e vê-me encostado à ombreira da porta, com um ar que desconfio ser divertido.
    – Não consigo acender esta ~porcaria~. Tens aí o isqueiro?
Peço-lhe, com um gesto, que espere. Volto a atravessar o corredor e a trepar, a custo, a estreita escadaria. Já no quarto, arranco o isqueiro das calças ensopadas e volto à sala. As chamas despontam, emprestando um tom alegre e dourado à quase penumbra da sala.
    – Já se almoçava, não? Vou pôr qualquer coisa a grelhar, avisa o Fernando. Já deve ter aterrado, ou então está a tomar duche.
    – Boa ideia – a voz sai-me a muito custo – eu digo-lhe. Mas, se calhar, vou ver se durmo, estou estafado. A corrida na praia rebentou comigo. Quero que o cão azul se lixe. Vou dormir.
    Subo. À porta do quarto, Madame Júlia espera-me, o semblante numa apatia marmórea. Mal reprimindo um grito, estremeço, tento recuar, escapar àquela figura terrível. Perco o equilíbrio e caio sobre a carpete azulada, levando comigo a mesinha que adorna o corredor. Quando consigo voltar a olhar para cima, Júlia já lá não está. Fecho os olhos, o coração a vibrar rápidas pancadas no meu peito, um calor insuportável a comprimir o cérebro.
    É uma alucinação. Uma alucinação provocada pelo sonho atroz que me tem visitado sem a permissão do sono. Continuo a sonhar acordado, mais nada. Mais calmo, respirando fundo, entro no quarto, atiro com a porta, abato-me sobre o colchão e afasto, num gesto pesado de sono, a roupa pesada de água.
    Adormeço.






    – Acorda.
    Não consigo abrir os olhos. Não me consigo mexer.
    – Que horas são?
    – Quase dez. Vamos à praia dar umas guitarradas?
    – A esta hora? Vamos amanhã. Já jantaram, vocês?
    Finalmente, consigo abrir as pálpebras. A luz é pardacenta, baça, muito diferente do amarelado eléctrico do candeeiro. Fernando está encostado à parede, o canto da boca repuxado numa careta trocista.
    – Se quiseres, dorme, acordamos-te para almoçar. A sério, se ainda tiveres sono...
    Procuro o maço de cigarros.
    – Viste o meu tabaco?
    Inclina levemente a cabeça para o lado e retorce ainda mais o rosto.
    – O teu tabaco.
    – Sim, estava aqui na mesa.
    – Na mesa… Voltaste a fumar?
    – Não sejas... Na primeira noite em que estivemos aqui, acabei por... Esquece, esquece.
    – Primeira noite?
    – Esquece. Já me levanto. Tomo duche e saímos logo.
    Estamos os três na rua, revigorados pelo farto pequeno-almoço. De guitarras às costas, seguimos, num passo lânguido e tranquilo, por um caminho estreito, ladeado de camarinhas que vão dispersando um perfume doce e macio pela neblina matinal.
    A manhã passou, rápida e agradável apesar do friozinho húmido que se fazia sentir. Antes do regresso a casa, decidimos ir ao café comprar pão para o almoço e, apesar dos protestos dos meus amigos, um maço de cigarros. Há apenas duas mulheres no cafezito. Estão sentadas à mesma mesa – noto que uma delas, a mais nova, está grávida. Conversam.
    –... porque às vezes sai de casa a meio da noite, ninguém sabe, não diz para onde vai. Já falei com o psiquiatra, contei-lhe tudo. Ele diz que se resolve. Apanhou a mania de insistir em ser tratada por Madame, imagina. Deve ser dos livros que lê, ou dos filmes, sei lá... Mas há pior. Passa os dias a andar para cima e para baixo na bicicleta, vai parando no cemitério. Tive de a proibir de ir lá. Dei com ela aos murros, às cabeçadas ao túmulo do pai, a gritar: “Acorda, acorda!”. Foi horrível. A miúda inundada em lágrimas, tresloucada, a berrar pelo pai. Ah, um dia quis matar o cão. Imagina, ela adora-o. Pois o bicho foi contra uma mesa, deitou abaixo um castelo de cartas que ela tinha passado a manhã a fazer. O diabo da garota pegou numa faca e desatou a correr atrás do cão, aos berros, aos berros... Foi uma confusão. Tropeçou numa lata de tinta que o meu marido deixou no corredor, é tinta espalhada pelos móveis, paredes, carpete... até o cão ficou salpicado.
    – Estás a pintar a casa?
    – É para o quarto do bebé.
    – Olha lá... achas que a miúda vai reagir bem quando o irmão nascer? Não gosta do padrasto, não é?
    – Tem de ser internada, pelo menos por alguns meses. O sanatório é bonito, fica perto do mar. Os pacientes podem andar quase em liberdade. Têm jogos, actividades. Alguns até podem ir à praia, com acompanhamento.
    – Espero que ajude. – olhou o relógio – Tenho de ir. Foi bom ver-te, não davas sinal de vida há quase um ano. E isto é tão pequeno... É verdade, que nome vais dar ao rapaz?
    – Júlio… Júlio e Júlia. Fica bem. Vamos lá ver se o rapaz tem os gostos da irmã. Estamos a pintar o quarto de azul-turquesa, depois colamos umas estrelas no tecto e nas paredes. A irmã também gostava de azul.







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Muito bom.  Parabéns. És professor, não és?!!!
Templa - Membro nº 708

Obrigado, Templa! Sim, sou, mas a minha profissão não vem ao caso. :) Escrevo desde miúdo, principalmente coisas esquisitas.

Gostei muito! Parabéns! ;)

Gostei :)

Gostei mesmo muito, eu que nao gosto muito de ler textos deste género fiquei impressionado com o quanto gostei.
I see now that the circumstances of one's birth are irrelevant, is what you do with the gift of life that determines who you are"