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  • Mais uma história que fui buscar à velha arca das letras
    Iniciado por Templa
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O espanta-espíritos

Era o último som sussurrado quando Henrique, médico, saía de manhã e o primeiro que ouvia mal metia a chave na fechadura, à noite, ao chegar a casa. Pendurado na porta, cantava uma melodia suave em tons de azul e prateado, o colorido dos seis sininhos e, afora o rádio e a televisão, o espanta espíritos era a única voz da casa, onde habitava com as suas memórias de homem dissidente que nunca casara, por acaso ou vocação, nem ele sabia muito bem.
Por isso, sobrava-lhe tempo para relembrar as suas histórias,  entercruzando-as com outras que lhe contavam e que gostava de recriar se, por qualquer motivo, lhe tocassem nalguma corda da sua sensibilidade solitária.
Foi o que aconteceu pela tardinha de um dia, depois de ordenar a sua existência doméstica.
Olhando o espanta espíritos sentiu, de súbito, uma vontade de inverter-lhe a função e de encher a casa de gente ou, pelo menos, trazer até ela alguns espíritos onde vagueassem as lembranças de pessoas, amigas por eleição e sufrágio directo.
E, agora,  era uma coisa simples, uma história de amor que lhe fora contada havia já algum tempo, não sabia quando, mas, em todo o caso, o tempo suficiente para a gestação estar completa. Nesse dia apetecia dar ao mundo essa história, com dor e amor, como se se tratasse de experimentar uma sensação de paternidade da alma.
Começou, então, a rolar na história, tal como rolavam pelo mundo os anos 60 em que os Beatles estavam em projecto de germinação das suas canções.
Os beijos, que até aí eram dados entre as sombras do pecado a coberto de um qualquer portal, saíam do seu esconderijo. O cinema italiano estava no seu auge, recheado de actrizes de peito grande e ar apetecível. Os rapazes e raparigas perdiam o medo de mostrar os seus sonhos, desafiando a moral vigente e adoptando uma nova maneira de viverem a vida e de encararem o amor. E, assim, lhe contaram:
 João, vem depressa! Chegou à cidade a Gina Lollobrigida.
João era um estudante que queria ser pintor, um rapaz de dezoito anos.
Alto, magro e bonito, de cabelo acastanhado, tinha, na opinião dos colegas da escola, todos os atributos e prestígio suficiente para ser o candidato vitorioso no coração da jovem Mariana.
Era assim que rezava a carta de um amigo e João, no final das férias grandes e da vindima, mal pôde esperar para o seu primeiro encontro com o amor.
Mariana tinha catorze anos. Acabara de deixar a pequena vila, adensando-se agora na cidade onde ia estudar para professora.
Mal chegou, logo os rapazes entenderam que a beleza da jovem não aspirava senão a um Adónis, do qual João era a reencarnação, em pessoa. Por isso, o seu melhor amigo se apressou a escrever-lhe.
Depois, foram os olhares que se cruzaram, foi o Cupido que lançou setas em vice-versa e as palavras, os beijos jurados, faziam a vida parecer sem sombras até à eternidade...
Decorria timidamente o tempo, numa relação inversa à velocidade da paixão que crescia nos corações de João e de Mariana.
Até que, quando chegaram os vinte anos da rapariga, chegou também o dia em que puderam dizer, depois do casamento: enfim sós!...
Não demorou muito tempo até nascer Sofia, uma menina de Fevereiro, a primeira filha de João e de Mariana, a quem, passados cinco anos, se juntou Susana.
Foi Sofia, já mulher e mãe, quem contou a história onde rola esta narrativa e onde o carro do amor acabou por ficar para trás, perdido no tempo dos encontros e desencontros.
Mariana foi professora, João professor e é, sobretudo, um pintor numa busca incessante das cores e das formas dos seres, onde os seus olhos de artista perseguem a estética da perfeição e do belo que o tempo insiste em atingir com marcas de envelhecimento, esboroando a carne que veste os corpos e as almas das suas musas.
Conta Sofia que o pai lhe chama a atenção quando uma insípida penugem toma o seu natural lugar num buço de si próprio pouco ostensivo, enquanto, do artista que teve como progenitor, colhe opinião sobre a decoração da casa na esperança de aprovação.
 Tens aí um pelito...Fica-te mal... Eu quero a minha filhinha sempre bonita....
E do tempo que decorreu, a João, homem e pintor, ficou-lhe a vida onde a família é traço de realidade que não pode alterar com os seus pincéis de artista. Mariana é mais uma cor, a primeira, que lhe pintou o corpo e a alma com a marca indelével das filhas a quem se seguiu Sara, a neta, mais o menino já a caminho na barriga de Sofia.
Depois, o mundo, ao mesmo tempo belo e perverso, o amor que teceu na juventude de João e Mariana desfê-lo com a dor dos dois, enrolando a vida de ambos noutros novelos.
Mariana voltou a casar. Mas, nos seus recobros, aquece a alma com o lamento de mulher adulta que, se pudesse recuperar a juventude, teria lutado para que o seu amor de adolescência e de sempre permanecesse a seu lado.
Por seu lado, João, pintor, no seu papel de professor, cruza-se, por dever de ofício, com raparigas no alto de uma jovialidade semelhante à de Mariana outrora. E o amor, primeiro, segundo ou terceiro, aloja-se no seu coração inquieto de artista na busca de perfeição, vivendo-o, como sempre, com a mesma intensidade de menino em que habita uma intangível inquietação, numa luta constante pelo ideal dos ideais.
Depois, soçobra a desilusão por tudo que é mortal e fenece. Então, restam-lhe as telas onde escreve a vida com as cores e formas do seu pincel de artista e o que do amor acabado sobrou nas suas recordações.
Quando tão forte sentimento se esvai, ferido de morte, surge a necessidade imperiosa de dar eternidade aos seus matizes de alma, de maneira a pendurá-los num quadro de parede para que o mundo os possa contemplar, mesmo que não entenda a razão do seu traço e o requiem das suas cores.
Aconteceu isso quando se esfumou o afecto pela jovem e bela mulher com quem viveu um dia.
Mais uma vez João confiava à tela a sublimação das suas horas inquietas e tristes, recorrendo a todos os símbolos que lhe emergiam da alma, de novo a braços com uma dor cuja cura urgia encetar.
Foi quando um coração, pendurado nuns fios assentes em postes de electricidade, onde a corrente que neles viajava queria significar a paixão e o encantamento, se deixou pintar, desboroado e com cores desmaiadas, caindo... caindo... O amor que fora alimentado por uma energia tão forte como a que corria naqueles fios, depois de muitos choques, estatelara-se no chão, com um novo adeus, sempre repetido, sempre renovado por outros corações...
É assim que João, pintor, vive a vida e espanta os espíritos, enquanto, a uma qualquer tela, confia os encontros e desencontros da sua existência, olhando depois o quadro como a única eternidade onde o amor pode viver eternamente...
Caminhando pela vida que se estende à sua frente, já um pouco mais tranquilo e conversando com a filha, desabafa:
 Sabes, Sofia?!... Os netos são uma doce sobremesa da vida....

Porto, 17 de Março de 2003
Templa - Membro nº 708


Bonito  ;D

gostei particularmente da frase«os netos são uma doce sobremesa da vida»


:-* :-* :-*


Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

E foi inspirada em factos reais. Todas as personagens existem e o espanta-espíritos também, pois está à entrada da minha casa,na porta.

Obrigada, raínha cleopatra
Templa - Membro nº 708

Sandrareginabr

Vale sempre a pena reler ou ser lida em "primeira mão" pelos membros que aqui chegaram mais recentemente.

#6
Citação de: oculto em 19 janeiro, 2014, 21:06
Vale sempre a pena reler ou ser lida em "primeira mão" pelos membros que aqui chegaram mais recentemente.


Olá, Oculto, obrigada. Há por aí outras histórias mais recentes minhas, mas, se calhar, não tão bem conseguidas como esta. . Ando a reuni-las numa colectânea, onde esta também consta, que talvez publique dentro em breve, depois de decidir hoje publicar o meu primeiro livro que, por sinal, está escrito num registo completamente diferente. Chama-se "Cãodómino" e brevemente virei aqui dar notícias.
Obrigada,

Abraço

Templa
Templa - Membro nº 708

A menina tem um dom especial para a escrita. Como disse, é sempre um prazer ler ou reler os seus "contos". vá em frente e publique o seu livro. eu sou seu fã.

Templa - Membro nº 708