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  • O último copo de vinho (inédito baseado numa história real)
    Iniciado por Templa
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Há famílias condenadas à desgraça, não sei por quê ou por quem. Ninguém sabe se é destino, maldição ou praga de gente, mas lá que há gente para quem certos dias nunca deveriam ter nascido, é verdade. O dia do nascimento, do casamento, do baptismo de todos os membros... Eu sei lá! Há pessoas, famílias inteiras, a quem a desgraça nunca abandona. A não ser no dia em que Deus, ou o Diabo, lhes bate à porta e os leva a todos.
Talvez seja Deus a actuar, condoído por tanto infortúnio... Talvez a morte seja para Ele a verdadeira libertação, ou talvez seja, finalmente, o outro que os vem buscar por inteiro, depois de lhe ter levado a alma. E eu até costumo dizer que cada família tem, no mínimo, um amaldiçoado.
Excepção à regra era a família M em que os verdadeiros amaldiçoados eram dois. O resto talvez tenha sido apenas contágio, pois custa a aceitar a cegueira da desgraça, mais do que a cegueira da justiça. E, assim, aceitemos dois membros como os verdadeiros escolhidos do demónio, os grandes amaldiçoados.
Isaura era uma rapariga rica, única filha no meio de dois irmãos, a quem os pais tinham para deixar uma imensidão de terras. Era baixota e miúda, mesmo no dia em que se casou e, recatada, raramente saia de casa, o que lhe rendeu uma pele branca, sem praticamente sintoma de sol.
Depois, ficou assim pálida até ao final da vida, a menina Isaurinha, mais tarde dona, e foi assim que, com o marido, um homem jovem não tão afortunado como ela, teve dois filhos, João e António, os nomes dos dois avós.
Até que a morte do marido, poucos anos mais tarde, a deixou, uma viúva precoce com dois rebentos a quem, desde cedo, se revelou difícil cortar o cabresto. Especialmente a João.
E os dois miúdos por lá foram crescendo, criados numa terra com muita gente, rapazes e raparigas de outros tempos, um sítio onde Cristo, se lá passou, quando muito, foi talvez para beber um copo de vinho. Apesar do trabalho, o vinho, ao menos aparentemente, estava mais disponível do que a água do fontenário, recolhida no verão pelas mulheres durante a noite, quase a conta gotas, para dentro dos baldes de lata, na altura da seca. Por isso, Cristo, se passou por ali, quando muito deixou os planos de um milagre agendado para, décadas mais tarde, o líquido preciso chegar finalmente às torneiras das casas.
João desde cedo se revelou um rapaz cordial. Puxava ao pai, diziam, e não trazia o rei na barriga, como sempre fora apontado à família de Isaurinha. Ambientava-se bem na escola e falava com toda a gente, de quem aprendia hábitos bons e maus.
Já António era um rapaz estranho. Metido consigo próprio, mesmo tendo da mãe, como o irmão mais velho, autorização tácita para frequentar a taberna onde Cristo teoricamente bebera o copo, nunca lá ia. Antes ficava, sempre que podia, a fazer companhia à mãe, no casarão azul construído pelo pai mal casara, numa esquina de terra roubada ao quintal dos sogros, em que eles tinham igualmente a casa da família. Tudo tinha sido implantado nas bordas da ladeira que serpenteava o ribeiro e onde já havia mais casas, tão velhas como o mundo. E era o que António fazia, depois de os dois irmãos regressarem dos campos onde, como meninos ricos, orientavam os trabalhadores do campo nas lides da terra, se não tivessem ainda de aprender alguma coisa com eles. Tinham herdado isso da tuberculose que lhes roubara o pai ainda jovem, ao contrair a doença com muitas chuvadas no corpo e quando cuidava de todos os vinhedos herdados pela mulher entretanto.


João, esse vadiava mais um pouco, saindo da cerca onde a viuvez da mãe quase impunha aos filhos de mais de vinte anos que se mantivessem à roda das saias dela, solteiros e disponíveis para todas as suas vicissitudes. Ninguém conhecia namorada nem a um, nem a outro, até porque a mais ou menos nobreza da mãe no mundo rural era de alguma maneira impeditiva de os rapazes casarem com quem lhes apetecesse, uma rapariga do povo.
O filho mais velho de Isaurinha e do falecido Simão, entretanto, não se coibia de frequentar as tabernas da sua preferência, de que havia duas ou três espalhadas pelos quatro cantos de aldeia. Era onde os homens, depois da última rega da horta, se fosse verão, ou do toque das trindades, no inverno, enquanto esperavam pela ceia da mulher ou da mãe, iam cumprir o hipotético ritual de Jesus, levando à risca, mais do que uma ou duas vezes, a metáfora do copo.
E se João apreciava o convívio da rapaziada, jogando com eles à malha ou às cartas, no largo da terra, debaixo do velho choupo ou na tasca, António, o filho mais novo, nunca gostou dessa convivência. Sobretudo, tinha de todos esses lugares uma má impressão e o estranho pressentimento de que, muito mais do que Jesus Cristo, por lá tivesse andado o Diabo a traçar para o futuro um triste desfecho. Embora fosse mais robusto do que o irmão, mais parecido com Isaurinha na palidez, António temia ser agarrado pelo Demónio quando este se misturava com o vinho e fazia os homens comportar-se como animais raivosos por causa dos marcos num pedaço de terra agreste.
Era por isso que preferia ficar no quarto, na casa azul construída pelo pai, a ler os jornais, quando o carteiro levava as cartas e as notícias do resto do mundo à aldeia com dias de atraso.
Se a vida a Deus pertence, houve um dia em que Deus não se importou com a de João. Ao ponto de permitir ao Diabo entrar nela de uma forma sem volta.
Desta vez, o motivo a que o demo se agarrou para fazer das suas, foi a água de um mesmo poço, com que dois homens, ainda parentes, regavam um pequena leira. Terças, quartas e quintas era um, nos outros dias era o outro. Era o que dava ter muitos filhos. No dia das partilhas, tudo ficava reduzido a cacos, um caco a ti, um caco a mim...Até á revolta final de todos os cacos ...
Normalmente, isso acontecia nas tabernas, onde afinal Cristo não tinha ido beber nenhum copo. Quem lá tinha andado sempre disfarçado era o Demónio, a emborcar com os frequentadores, a dar-lhes palmadas nas costas e pagar-lhes, inclusive, mais um e outro caneco. Até, como verdadeiro Mefistófeles, que nunca se embriaga, os ver perdidos de bêbados e os levar para o inferno.
Foi o que aconteceu naquela tarde.
De repente os gritos ecoaram pela aldeia em peso, ampliaram-se até aos montes, atravessando ainda o rio até à montanha circundante que, finalmente,  os abafou.
Depois, de dentro das quatro paredes da taberna, o drama saiu à rua trazendo a morte pela mão.
João, no calor da discussão entre os primos bêbados e zangados por causa das águas que regavam a pequena leira, foi o inocente apanhado por uma navalha cega que o mandou para o outro mundo no carro dos amaldiçoados.
António sempre tivera razão. A taberna era um lugar maldito e o vinho, desde que não fosse bebido com a parcimónia de Jesus, era igualmente uma coisa maldita. E era essa coisa maldita que o pai e mãe lhe deixaram para ele cultivar sozinho, daí para a frente, sem o irmão a quem sentira a necessidade de igualar, fazendo-lhe,  em surdina, sobre o caixão,  uma promessa:
 A minha morte será ainda pior...
O diabo pareceu ficar contente com a alma do João, enquanto António e a mãe prosseguiam, de dia para dia, mais isolados, com a criada velha a fazer-lhes a comida a troco de pouco mais de nada...
António, hora a hora, tornava-se mais sombrio. Envelhecera, ficara careca e comprara um carro ultimo modelo da época. Sem nunca ninguém lhe conhecer uma única namorada, andava sozinho na estrada de terra batida e tornara-se o protótipo dos avaros. Nunca dava uma esmola, nem boleia a ninguém e, se alguma criança lhe admirava o carro, através das grades da garagem onde o guardava, atirava-lhes pedras afugentando-os.
Os miúdos detestavam-no. A história macabra da vida dele tinha ficado para trás no tempo, era desconhecida da miudagem e nenhum deles se sentia obrigado a dar-lhe qualquer desconto pelo passado de que ele também fora vítima, depois de ter perdido o irmão. Nem eles, nem ninguém.
Os anos foram passando, a velhice aproximava-se a passos largos e mais uma vez o Diabo quis beber um copo, na companhia do seu eleito.
O problema era que António, apesar de produzir muito vinho nos vinhedos herdados da mãe, sempre detestara as tabernas e quase não bebia. A não ser, de vez em quando, um pequeno cálice de Porto Velho, pouco, porque a avareza não o deixava deleitar-se com os prazeres da vida.
Um dia, de novo os gritos ecoaram pela aldeia, ampliaram-se até aos montes, atravessando igualmente o rio até à montanha circundante que, finalmente, os abafou os pela última vez. O Diabo estivera na adega onde ambos tinham bebido o último copo de vinho E,  numa grande trave de madeira, balouçava-se o corpo de António, enforcado na sua promessa...
Tinha acabado de partir o último dos amaldiçoados...

Templa
Templa - Membro nº 708

Templa, tens mesmo de publicar esse livro!!! Estou em pulgas para o ler. :D :D :D
Homem!... Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses.»


Obrigada pelos estúmulo, meus meninos,


Um dia será,  o tal livro, ou livros...
Templa - Membro nº 708


E ao dom da palavra, acrescento o da escrita  ;)

Um prazer ler as tuas prosas. Sempre encantadoras. Uma pena se não virem o prelo, para que os olhos de todos possam ver .

Abraço.

Pois Arpinho, Obrigada, Embora hoje esteja tão lerdinha que não consiga corrigir ao meu conto uma pequena gralha.,,,

Abraços e bom fim de semana. Hoje vou dedicar-me a estudar o regulamento das construções e edificações, pois em cães já tenho o curso de direito ;D ;D ;D. O meu prédio está em ebulição, ainda bem que não estou lá...
Templa - Membro nº 708

nómada

Templa, só hoje li,tenho andado afastada, mas digo que, para a publicação do livro:
Ontem, já era tarde.
Parabéns
Lisboa

Obrigada. Por que é que eu não consigo corrigir uma coisinha que precisava??? Sou eu que estou azelha, ou o tópico já não o permite???
Templa - Membro nº 708


Templa - Membro nº 708