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  • As partilhas - inspirado em factos reais
    Iniciado por Templa
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Era uma vez um homem que tinha três filhas.
Depois de muito andar driblando os inúmeros obstáculos que lhe foram surgindo pela vida, tendo conseguido algum pecúlio, o pobre do homem acabou por morrer perante a dor das raparigas, inconsoláveis cada uma à sua maneira.
A mais velha das três chorava muito menos o desenlace do que a sorte que lhe cabia por ser a cabeça de casal, competindo-lhe por isso a repartição da herança que o homem morto, transformado agora em de cujus por causa dos tarecos acumulados, lhes deixara.
Já a rapariga do meio, muito mais pragmática do que a burocrata primogénita, derramava lágrimas abundantes, com pena de que ao pobre do pai não tivessem cabido mais uns anos de vida, de forma a engrossar a massa dos bens que ela haveria de herdar um dia.
Quanto à mais nova, nunca tendo quebrado os laços afectivos que a ligavam verdadeiramente ao pai, lamentava profundamente a sua morte apesar de, o pobre do velho, nos últimos tempos e instigado pelas filhas mais velhas que então assumiram um papel semelhante ao das bruxas dos contos de fadas, não tivesse reconhecido o carinho e a atenção com que sempre o presenteara.
Ora, logo após a morte do homem, Purificação, a irmã entremeada, temendo por parte da ladroagem uma ladroeira desenfreada à casa onde o pai sempre vivera, ainda o padre rezava os últimos responsos, qual ave de rapina disposta a saciar-se até à exaustão nos despojos do defunto, já ela delineava a estratégia para deitar a mão aos potes de ouro que o progenitor teria enterrados no quintal.
Foi assim que, na mais completa surdina, conferenciou com Aldina, a irmã mais velha, sugerindo-lhe que fossem imediatamente à caverna, idealizando logo ali uma senha para que a porta se abrisse, à semelhança do que fizeram na históriaAli Bá Bá e os quarenta ladrões.
Então, ficou combinado que o mote para a entrada seria: um para ti, dois para nós.
Partindo do pressuposto de que a grande riqueza estaria algures debaixo da terra, no jardim, convenceram Daniela, a caçula da família, e as três foram até lá.
Para a pobre rapariga não desconfiar, começaram por admirar umas roseiras onde parte das rosas já estava em estado de avançada murchês. Não descuraram contudo um exame minucioso ao local perscrutando um eventual espaço remexido, que seria o melhor indicador do sítio onde a fortuna estaria talvez escondida.
De repente, aperceberam-se de uns barrotes de madeira que o velhote lá mandara colocar a fim de restaurar um casebre onde guardava as alfaias do campo. Eram nove.
Então, a mais velha achou por bem começar logo ali a divisão, até para disfarçar os verdadeiros intentos da caça ao tesouro.
 Um para ti....dois para nós...
Daniela, no fim da distribuição, verificou que passou a haver três lotes: um de um barrote e os restantes com quatro barrotes cada um.
Não ligou ao assunto. Afinal nunca lhe tinha passado pela cabeça crucificar fosse quem fosse nos madeiros divididos. E, por outro lado, em madeiro sem pregos não há cristo que consiga aguentar-se...
A seguir, dirigiram-se à cozinha.
Sempre com o mesmo intuito simulatório, as duas continuaram a divisão. Desta vez foram repartidas as colheres de pau, que se encontravam numa gaveta perto do fogão. Agora, a distribuição estava a ser equitativa e a mais jovem das irmãs entendeu perfeitamente:
 Se nem sempre há cristos para crucificar, estrugidos todas nós fazemos mais ou menos regularmente...  pensava com ingenuidade.
 Uma para ti, outra para ti e uma para mim...  foi assim a cantilena.
Por sorte não havia senão três colheres, pois, de outro modo, a mulher arriscar-se-ía a ficar com a voz rouca, como se estivesse a cantar para a família os números do loto na noite de consoada.
Depois, foram à cozinha rústica existente no quintal.
Entre os vários utensílios que por lá havia  umas panelas de ferro, umas tenazes para remexer as brasas da lareira  a atenção das duas irmãs centrou-se em três peneiras. Outrora, quando era cozido no forno o pão de milho, elas eram utilizadas para peneirar a farinha. Esse hábito há muito que caíra em desuso. Contudo, as peneiras tinham ficado por lá e estavam agora penduradas sobre a chaminé, decorando o espaço a que davam um ar artesanal.
Aldina e Purificação de imediato demonstraram interesse nas três peneiras, prontificando-se a compensar Daniela com três vassouras de piassaba. Propunham-se atribuir-lhas com o argumento de que as vassouras delas tinham já uma técnica muito mais moderna que lhes permitia uma maior velocidade de varrida...
Daniela aceitou sem pestanejar. Não observara o piscar de olhos entre ambas quando elas cochicharam sobre os crivos. Eles – diziam  seriam muito úteis para peneirar a terra do quintal, onde encontrariam, quando não as moedas de ouro e prata tão desejadas, ou até diamantes, pelo menos as pepitas de ouro, perto do regato, no terreno que circundava toda a casa.
Até ali a divisão tinha incidido nos objectos de madeira e as duas cozinhas, tal como o quintal, não foram muito profícuas em pistas para o almejado tesouro. Talvez o homem não tivesse dado ainda o passo moderno, do colchão para o banco e talvez o ouro e a prata estivessem lá guardados...
Imbuídas desta lógica de Sherllok Holmes, com a maior cautela dirigiram-se aos quartos, sempre discretas e dissimuladas para Daniela não se aperceber das suas verdadeiras intenções.
Debaixo das camas existiam ainda, do tempo em que não havia casas de banho, uns penicos de esmalte, daqueles que até faziam tlim se por acaso um sapato ou um soco lhes tocasse. Havia quatro, um em cada quarto, tendo então calhado um a cada uma. E sobrava um, no quarto do pai morto....
Com esta última divisão surgiu o primeiro grande problema da partilha. O pobre penico transformou-se de repente numa espécie de "mon cherie", suscitando imediatamente a interrogação de: como dividimos?...
Foi então que Purificação teve a ideia de leiloar o penico.
Aldina concordou sem resistências. E Daniela, subordinada à regra da maioria, não teve outro remédio senão participar nos lances, não sem antes ter pensado como é que um peniquito,  cuja vida sempre tinha sido de mijo e trampa, podia ser objecto de valor tão elevado como eram os 160 euros com que Purificação veio a arrematá-lo.
Depois da resolução deste problema, percorreram o resto da casa.
No armário da sala de jantar havia um pequeno paliteiro.
Não existindo um para cada uma, foi então decido procederem como com o penico.
Quanto aos palitos que havia dentro, depois de terem chegado à conclusão de que eram 37, deliberaram distribuir uma dúzia por cada. E, como sobrava um, na melhor das irmandades, ficou acordado que Purificação, aflita com um pedaço de carne que à hora do almoço se lhe alojara num dente cariado, poderia utilizá-lo sem que o palito entrasse nas partilhas.
Mas os esforços não estavam a dar os resultados pretendidos. O pote continuava sem aparecer.
De novo se dirigiram à casa das alfaias, passando por cima das enxadas, picaretas, tesouras da poda, baldes e sacos. O tesouro tinha de estar certamente guardado naquele local.
Purificação e Aldina, numa atitude pragmática para  levar a bom termo a missão a que se propuseram, num gesto decidido,  arregaçaram as mangas do casaco de antílope que começavam entretanto a limpar o pó das prateleiras onde uma data de quinquilharias repousava, indiferente à procura desenfreada das duas irmãs.
Depois, desataram a vasculhar todos os saquinhos que pesassem mais de cem gramas e nos quais poderiam eventualmente estar dissimulados os diamantes, o ouro e a prata tão cobiçados.
Foi quando Purificação, à semelhança do que outrora aconteceu com Arquimedes quando descobriu o seu princípio, deu um pequeno grito de eureka!
Por entre a urdidura da serapilheira, nuns sacos pequenos, luzia algo que poderia ser as moedas de prata, possivelmente do tempo das múmias incas das ruínas do Macchu Pichu. O peso do achado era de molde a confirmar a hipótese. E, tão rapidamente quanto o nó que guardava o saco o permitiu, Purificação abriu-o cerrando um pouco os olhos, não fosse o brilho do tesouro encandeá-la.
Porém, ó desilusão das desilusões! O conteúdo do saco não passava de milhares de pregos que ali estariam certamente para pregar os barrotes de madeira, já divididos pelas três irmãs.
Já que estavam em maré de partilhas, tinham forçosamente de proceder a mais uma divisão. Mas, agora, levantava-se um problema: tratava-se do método e da técnica de contagem. A mais simples seria sem dúvida contá-los um a um e depois distribuí-los equitativamente pelas três. Purificação e Aldina tinham a esperança de que a quantidade dos pregos fosse um número múltiplo de 3 pois de outra forma subsistiria a questão do "mon cherie" e lá teria de se voltar ao leilão.
Aldina, enquanto cabeça de casal, não vislumbrava contudo uma solução mais credível do que inventariar a totalidade dos pregos à vista das três herdeiras e dividi-la a seguir. Tratava-se de um método trabalhoso, até porque implicava quatro contagens: a inicial e as três subsequentes. Mas, não havia mais nada a fazer e, assim, começou:
1, 2, 3.........2005, 2006..... dêem-me um copo de água! Já estou com a garganta seca!...
Purificação, solicita, foi à cozinha buscar um púcaro de esmalte com o precioso líquido, enquanto a contagem era interrompida.
Logo que a irmã regressou,  depois de beber, Aldina convenceu-se de que o processo era muito cansativo. Então, sugeriu às duas irmãs que fossem ao hipermercado comprar uma balança de precisão para pesarem os pregos.
Lacraram a casa e lá foram.
Quando regressaram e procederam à pesagem dos ditos, mais um problema teve lugar: conseguiram fazer dois lotes com 1,800kg cada. Porém, o terceiro, em consequência da calibragem dos pregos variar, pesava 1,799kg, subsistindo assim mais um obstáculo.
Daniela, já farta daquela lotaria de números que em vez de sorte grande se assemelhavam a terminação, resolveu a questão, dizendo:
 Eu fico com o lote dos 1,799kg. Assim já tenho pregos para a crucificação das duas prendas que me tocaram na rifa, dizia interiormente, fulminando as duas irmãs com o olhar.
A questão ficou solucionada, ao menos por ora.
Contudo, havia ainda mais um saco suspeito.
Foi, como sempre, Purificação a abri-lo. Ela esperava, finalmente, que do saco saísse algo interessante. Porém, a magia não foi além de 15 rolhas de cortiça que Aldina dividiu pelas três, tão irmãmente quanto o exíguo valor do achado o permitia.
Daniela já tinha um madeiro para crucificar alguém, uma colher de pau para mexer o estrugido, três vassouras de piassaba para varrer a casa, um penico, uma dúzia de palitos, 1,799kg de pregos mais cinco rolhas e, não tendo mais paciência para aturar as duas irmãs, mandou-as meterem as rolhas num certo sítio para estancarem a trampa invejosa que lhes jorrava do cérebro. Saindo dali a toda a pressa, Daniela foi apanhar um bocado de ar e desentupir as narinas, a braços com o cheiro pestilento de uma  ganância que inundava a atmosfera.
Porto,  2003
Templa - Membro nº 708

#1
Conheço um parecido, mas no meu, começaram a discutir ainda o Homem não estava "a fazer tijolo"!

Mas excelente texto!!!
Continua...
Homem!... Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses.»


Infelizmente um relato muito usual nos dias de hoje!

Os sentimentos são aniquilados pela ganancia do poder, :(

o dinheiro destrói a parca harmonia existente nas famílias >:(

:-*


Uma excelente maneira de expor a mesquinhez que tantas vezes anda associada às partilhas.
Continuas com uma prosa fluída, cativante. Parabéns.

#4
Isto é tudo real. Só o "penico" substitui uma arma de caça e o paliteiro foi também  invenção minha. De resto, fui tudo como conto, incluíndo as rolhas de cortiça. Agora imaginem os problemas que o resto da herança deu, incluindo uma bela casa, na Serra da Estrela,  que os pais, enquanto vivos, sempre tinham prometido à filha mais nova!!!
Templa - Membro nº 708



;D ;D ;D ;D Isto de trabalhar em tribunais permite saber muita coisa da vida alheia  ;D ;D ;D ;D

#6
É verdade. Algumas bem escabrosas!!!, Outras dramáticas, algumas hilariantes... Mas não foi o caso. Foram mesmo as partilhas de uma amiga... ;D

Dos processos mais interessantes por onde já passei os olhos, foram mesmo o do Zé do Telhado e o de Camilo Castelo Branco..., numa exposição... Espero ainda ter tempo para consulrar alguns para as minhas escritas.

Abraço
Templa - Membro nº 708