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  • Pedro tem duas mães...
    Iniciado por Templa
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O quarto parecia-lhe cada vez mais povoado de sombras e vultos estranhos, vindos do nada, talvez de uma dimensão onde o tempo e o lugar não deviam existir.
Desde pequeno que o observaram constantemente, sobretudo em casa, quando,  sem a verdadeira noção do mundo, "eles" se erguiam na noite para o porem à prova nem ele sabia de quê. Como daquela vez, debaixo da sacada, a mãe ao lado para o tranquilizar se fosse preciso. Nesse dia, com sete anos, viu uma boa meia dúzia de criaturas esbranquiçadas, andando em círculo e rezando, até se desvanecerem.
Para ela, tudo não passava da imaginação fulgurante do filho, da sua cabecinha de menino demasiado influenciado pelos desenhos animados fantasmagóricos e alucinantes, cada vez mais transmitidos pela televisão. Era só. Por isso, nunca o levou a sério. O garoto cresceria e essas fantasias ficariam enterradas no passado, sem se poderem levantar um dia, nem contra nem a favor de ninguém.
Depois,  o filho casaria, dar-lhe-ia netos e rir-se-iam então dos fantasmas que Pedro inventava para colorir as histórias de almas penadas que a avó, duriense de pele curtida pelo sol, contava no verão, nas noites de calor, quando a família ia de Cascais até ao Douro,  inebriar-se com os encantos do rio mais lindo do mundo.
Foi assim que o rapaz cresceu, sozinho e em paralelo com um outro mundo,  só descortinado por ele,  com a sua visão de raio-x e ouvidos ultra sónicos em que aquela gente do outro lado se parecia com as películas negativas das velhas máquinas polaróide. Variavam entre o cinzento e o esbranquiçado, falando muitas vezes línguas que ele não estudara, acabando por compreendê-las não sabia através de que magia. Tudo era estranho. As ideias acudiam-lhe ao pensamento com uma clareza fora do comum, vindas de uma zona misteriosa do universo, para quem a ciência terrena devia parecer uma pequena e quase ridícula parcela do conhecimento.
E ele foi-se habituando a viver com medo e no medo, quantas vezes duvidando da razão, durante a infância e adolescência, com umas tréguas aqui e ali,   quando o outro mundo parecia não o ter como vítima principal das suas investidas do lado de cá. Sobretudo em casa, onde entidades incorpóreas o aterrorizavam ao sabor das suas vontades, sem ele ter direito a crédito,  por mais pequeno que fosse,  junto dos vivos. Com os amigos, da bola, da praia e das discotecas, não se atrevia a mencionar nada para além do entendimento comum, sob pena de lhe chamarem maluco e o aconselharem a internamento imediato num manicómio.
Aos 17 anos, as visões voltaram com intensidade, ainda ele não tinha criado anticorpos contra o medo que o consumira durante quase toda a vida. Como sempre, era o seu quarto o preferido para os fantasmas fazerem as suas aparições inusitadas, completamente a revelia da vontade de Pedro que, habituado a não ser levado a sério, se refugiou na negação dessas visões utilizando uma pouco eficaz violência contra os seres vindos do além.
A última visita fantasmagoria era uma mulher jovem, em camisa de noite branca e antiga, um rosto etéreo, que mostrava com desespero as partes íntimas ensanguentadas como se acabasse de ter um filho e não tivesse resistido. Tinha no regaço um livro antigo acastanhado,  para onde apontava  como se estivesse a sugerir-lhe para ele o abrir e ler o conteúdo. Estava sentada na cama, quase real, quando ele entrou, com um copo de água na mão para beber durante a noite, quando tivesse sede.
A reacção de Pedro foi atirar à mulher com o copo e este partiu-dr de imediato, enquanto ela se desvanecia no ar como fumo, esconjurada como uma coisa maldita.
Nunca Pedro tivera tanto medo. E,  quando apanhou os bocados de vidro, com a cama molhada, viu que faltavam alguns pedaços. Tinham sumido não sabia para onde, talvez levados pela mulher fantasma que lhe invadira a privacidade daquela maneira tão aterradora. O sangue abundante,  ao fundo da barriga, os cabelos acastanhados pelos ombros, o livro castanho e aquela língua estranha, tudo aquilo não passava de um pesadelo horrível que não gostaria de voltar a experimentar.
Foi quando os novos amigos, aqueles para quem Pedro não era o "maluco" carecido de internamento psiquiátrico, lhe deram a ajuda de que ele precisava desde a mais tenra idade, desde os sete anos e quando as figuras esbranquiçadas rezavam, caminhando em círculo sob a sacada da casa da avó, na altura em que a mãe lhe recusou um dos primeiros créditos sobre a sua capacidade para ver e sentir coisas para lá do entendimento comum.
Era preciso não ter medo, disseram-lhe os amigos, devia tentar falar com a mulher vinda do além, saber que motivo a impulsionava para ele, o porquê de tanto sangue, tanta dor, tanto desespero e o que continha no interior o velho livro. Devia ser importante, dada a forma zelosa como ela o segurava entre as mãos, junto ao sangue que lhe manchava a camisa de dormir branca escolhida para a visita naquela noite. Ou talvez a mesma com que partira para o outro mundo.
Era demasiado horrível, retorquiu Pedro apavorado, inventando mil e uma desculpas para nunca mais se deparar com aquela coisa horrível. Nunca mais a queria ver, ela que fosse embora para sempre,  lá para o mundo dos mortos,  de onde nunca devia ter saído para lhe atazanar a paciência.
Depois de vencer alguma da sua resistência, sempre incentivado pelos amigos, o rapaz decidiu,  a custo,  dar mais uma oportunidade à pobre mulher fantasma, convocando-a logo de seguida, embora, dada a língua estranha dela, temesse não a entender. E ela não se fez rogada.
Voltou de novo com a camisa de noite branca, desta vez sem sangue.
Talvez Pedro  fosse agora obter as respostas às perguntas que os amigos lhe tinham sugerido, agora sem aquele medo sinistro que a visão do sangue lhe tinha provocado. Quem era, porque o procurava e o que poderia Pedro fazer por ela para a ver descansar em paz?!
Com suavidade, já sem o impacto da primeira vez, a mulher, na nova aparição, disse-lhe algo que deixou Pedro atónito. Nem se atreveu a contá-lo aos amigos...
Por fim, depois de alguma reflexão, desembuchou:
─ Ela disse-me que foi a minha mãe noutra encarnação..., mas deve estar drogada, não acredito! Falou comigo, via-a mexer os lábios e havia uma outra voz que, posso dizer, traduzia o que ela dizia e eu ouvia nitidamente em português. Pelos vistos, eu chamava-me Dominik ... nem sabia como se escrevia tal nome.
Os novos amigos de Pedro, os da Net, quase nem acreditavam. A história de uma reencarnação quase em directo deixara-os entusiasmados e logo as sugestões surgiam em catadupa.
─ Como era ela?
─ Se não for a língua francesa, deve ser talvez russo. Dominik é um nome muito comum na Rússia.
─ Pergunta-lhe o nome.
As visitas da mulher de branco sucederam-se durante um ou dois dias,  com o rapaz ainda um bocado renitente, quando, finalmente, já a guardava quase com tanta ansiedade como os amigos que, com a maior curiosidade do mundo, seguiam o caso pela net.
─ E o livro castanho? Será que era onde estava o teu registo de nascimento?  
─ E não disse o nome da cidade?
─ Calma, amigos! – dizia o jovem . ─ Ela não me aparece quando eu quero. Têm de aguentar.
─ Que remédio!...

Não demorou mais do que um dia até Pedro voltar com novidades.
─ Ela voltou, mas não a vi. Disse-me que nunca mais iria aparecer-me para não me assustar...
─ E então?!...
─ Disse-me que fui seu filho e que morri com 17 anos, no tempo da guerra, na Rússia. Mas não me disse qual. Chamava-me Dominik Klepczarek e tive de perguntar a uma ex-namorada,  cuja mãe era russa, como se escrevia tal nome. Além de, depois de ela ter morrido, após o meu nascimento, eu ter vivido com o meu pai, Lucas Klepczarek. Até morrer então na guerra...
─ Provavelmente – disse alguém – o livro que ela trazia é onde está o teu registo de nascimento. Era bom fazer uma pesquisas...
─ Devias perguntar-lhe mais coisas...
─ Ela disse que vai proteger-me sempre ...
Era mesmo uma história fascinante e os amigos de Pedro lamentavam ele não ter feito mais perguntas àquela mãe fantasma que nunca se separara do filho. À distância de um clic, acabavam de assistir à prova de uma reencarnação, algo inaceitável para um céptico mas que talvez não fosse difícil de conseguir validar se Pedro, um dia, se desse ao trabalho de pesquisar a história dos vivos e mortos de um país tão massacrado como a Rússia. A mulher, aquela outra mãe de Pedro, tinha atravessado não se sabia quantas encarnações numa procura desesperada de um filho que não pudera criar, mas que, apesar de tudo, nunca abandonara. Nunca conseguira desprender-se da terra, nunca quisera, ou nunca pudera, atingir novos planos espirituais, só para o seguir de perto. O que não pudera fazer quando ele nascera e ela, tragicamente, tivera de partir para outros mundos, fazia-o em espírito, como um fantasma em busca de sossego.
Pedro serenou, então.
Entretanto, passado o primeiro impacto e já com alguma intimidade com a mulher fantasma, Pedro agradeceu aos amigos a força. Sem eles, confessou, nunca teria falado com aquela mãe persistente, sentindo agora que tinha duas: uma de sangue,  que o amava e a quem tinha de dar satisfações, e outra espiritual, que o amava igual e incondicionalmente, na sombra do seu quarto, no íntimo dos seus pensamenos, na flor dos seus desejos mais puros e em todos os lugares onde ele estivesse. Tinha partilhado o sangue de uma e de outra, da mãe desta vida e da mãe do outro mundo, noutra existência, antes da morte da mãe russa que tivera e do filho que fora noutros tempos. E ele nem lhe podia tocar, naquela dimensão etérea de fantasma maternal, até ambos se juntarem de novo um dia para a festa do reencontro...
Será daqui por muitos anos...
A mãe do Além disse ao filho que gostaria de tomar conta dele e dos netos por longos e longos anos...
Mas, embora Pedro possa sempre chamar pela mãe no seu quarto das sombras, talvez ela gostasse de ser chamada pelo nome... Quando muito, para se distinguir da mãe de hoje. ...
Pedro tem duas mães...


Templa.

PS:
Ainda que a história possa não ser real, obrigada ao ppppppppppppppp, por esta inspiração.



Templa - Membro nº 708

Um texto magnifíco, pena que o PP não esteja a dar o devido valor a quem assim o merece.
Kiduxa, há muito que não lia algo teu e tu sabes muito bem como admiro o teu trabalho.
Sei que levas tempo, mas quando o fazes, deixas-me sempre sem palavras.

Mais uma vez os meus parabéns

Margarida
Sou como sou, quem gosta, muito bem.
Quem não gosta, paciência!
Viva a liberdade de escolha!

Muito bonito Templa, Parabens!
Fiquei emocionada ;)

#3
Obrigada minhas amigas. Quando algo me toca, pode demorar tempo, mas nunca mais deixo sair a histáoria de dentro de mim.

Bjs para as duas, muitos.

Templa
Templa - Membro nº 708


Ficou muito bem. Um pouco de excelente imaginação e deu esta pérola.
Nada mais soubemos do assunto do Pedro. Terá havido mais interacção?

Ou será que algum dia houve alguma (interacção)!!!!????

Obrigada


Templa
Templa - Membro nº 708


Pois, pois... pelo menos tudo valeu pela tua história que nos encanta  ;)

Ficção ou realidade? Será apenas inspiração?

Foi baseada em factos que um membro daqui relatou...

Agora se os relatos eram reais ou fantasiosos isso já não sei!!! ;)

De qualquer forma, pelo menos para mim, valeu a pena por esta história que os factos me inspiraram...

Abraço

templa
Templa - Membro nº 708

Em noite de vigilia, ressuscito mais uma das minhas histórias. Que será feito do Pedro,  que nunca mais apareceu?


Templa
Templa - Membro nº 708

Sandrareginabr
Parabéns, querida Templa, qualquer comentário a mais se faz desnecessário.
:)

anokidas
Querida Templa é de irar o chapéu e dar mérito ao seu trabalho realmente nem sei o que dizer...

Está Fantástico!

Parabéns!

#12
Citação de: Sandrareginabr em 04 outubro, 2012, 02:19
Parabéns, querida Templa, qualquer comentário a mais se faz desnecessário.
:)

Olá, brasileirinha amiga. Obrigada. Gosto mesmo deste sítio aqui, onde há tanta gente maravilhosa.

Anokidas, obrigada igualmente. Agora é que ando muito preguiçosa. Ou melhor, tive um verão muito ocopado e, além do mais, estou sem o computador onde habitualmente escrevo...

Abraço

Templa
Templa - Membro nº 708

Excelente Templa  ;)

Em dimensões tão vastas, com ténue linha divisória ...

Obrigada pela prosa ...  ;)
Causa Debet Praecedere Effectum -  ( Não há efeito sem causa )

De Nihilo Nihil - ( Nada vem do nada )

Este conto, com um pequeno arranjo estilístico, vai ficar fantástico.
Templa - Membro nº 708