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  • A bacia vermelha
    Iniciado por Templa
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A bacia vermelha

O dia de trabalho chegar ao fim.
Beatriz preparava-se para regressar a casa, depois de aturar as birras do director da empresa e do seu assessor directo que enfrentava há vários anos.
O homem, com uma careca semelhante à de S. Pedro, esforçava-se por permanecer fiel, pelo menos ali, ao casamento, já um bocado morto pelos anos de convivência com a mulher, a quem, na empresa, nunca ninguém vira nem mais gorda nem mais magra.
Mas, como desde o início sentia uma forte atracção pela rapariga, para se proteger da tentação da carne, dedicava-se ao culto da ironia eximindo-se a custo à luxúria que o simples esvoaçar das saias de Beatriz lhe provocava. Numa lógica de trabalho é trabalho bagaço é bagaço, desviava os assuntos relacionados com a libido para horas mais avançadas da noite, onde se perdia em voos com outras morcegas.
O homenzinho nascera no seio de gente humilde. O pai possuía vários talhos, conseguidos à custa de muita luta e, desde bem cedo, o rapaz, no final do trabalho, para agradar ao progenitor, apesar de um bocado a contragosto, ia fazer a distribuição dos frangos e dos lombos de vaca pelos outros estabelecimentos. Era o mínimo que podia fazer, depois de o velho ter desembolsado rios de dinheiro com a educação universitária que lhe dera na velha Coimbra.
Depois de terem sido preparados no Primavera da Carne, no camião fechado, lá iam as peças penduradas naqueles ferros de bico aguçado, e as únicas funções do talhante de horas vagas consistiam em conduzir o carro, entregar as facturas e receber o dinheiro. Quem carregava a mercadoria era um empregado, resguardado por um carapuço de serapilheira colocado sobre a cabeça, no qual os restos de sangue dos animais mortos se alapavam com pendor e afinco.
Nesse dia, o homem, ou porque tivesse alguns assuntos de direcção pendentes ou outra coisa qualquer, resolvera levar o assessor, um homem de um amarelo seráfico mais sibilino e venenoso do que uma cascavel no cio. Devia ser para dar alguma naturalidade ao convite endereçado à pequena. A presença do homenzinho talvez fosse mesmo para refrear os ímpetos de quem, se não tivesse um controlo, mesmo que só psicológico, cortaria a torto ou a direito só para usufruir das benesses carnais da rapariga, ainda que fosse à força.
Quiseram as coincidências que Beatriz morasse perto do Primavera da Carne. E, como o assessor assumiria o papel de vela num romance de luz apagada, a rapariga resolveu aceitar a boleia. Quanto mais não fosse, para desacelerar o mau humor do seu chefe no dia seguinte e pacificar um pouco a sua existência, condenada, por falta de emprego, à convivência com aqueles brutos.
Então, os três − Beatriz no banco de trás do BMW da empresa - lá se dirigiram ao centro de distribuição de carnes frescas e enchidos.
Pelo caminho, o homenzinho limitou-se a proferir algumas palavras de circunstância, a que a jovem respondia quase por monossílabos.
Uma vez chegados, já o pai aguardava o filho para o giro do costume. O camião estava pronto a seguir viagem, parado numa rua cheia de buracos, feitos pelos empreiteiros da Câmara nas mais recentes perfurações petrolíferas a que a rua tinha sido submetida e onde uma tampa do tamanho da roda de um automóvel ostentava uma boca de rinoceronte, disposta a engolir qualquer coisa incauta que andasse por ali menos atenta.
Noutro tempo aquela tarefa era levada a cabo pelo magarefe, mas este começara a envelhecer e o filho resolvera assumir, em part time, o ofício e aliviar um pouco os ombros do pai. E, hoje, era mais um dia de distribuição.
Beatriz aproveitou, entretanto, para comprar um bife da vazia, enquanto o director e o homem de cera se sentavam no carro frigorífico. Este último, disfarçadamente, encostava ao nariz um lenço azul bordado com o seu monograma, de maneira a enganar o cheiro a sebo exalado pelo homem da serapilheira sentado a seu lado, como se estivesse a assistir à autópsia de um morto carecido de sepultura há vários dias.
Dessa vez, o trajecto sofreria um pequeno desvio. O director, no seu biscate de fim de tarde, foi incumbido pelo velho pai de levar uma bacia de azeite à mãe, a fim de ela meter lá umas linguiças. O fumeiro já estava a ultrapassar o prazo de validade e, depois, seria para fazer francesinhas, uma especialidade de um restaurante de que a senhora era dona havia vários anos.
Já na hora das despedidas, bem como do agradecimento pela boleia, estava o camião a arrancar quando Beatriz reparou numa bacia, vermelha e redonda, que ficara esquecida na rua perto da roda dianteira da viatura, do lado direito.
O homem, provavelmente a magicar nos passos seguintes tendentes à prossecução da suposta conquista de Beatriz, acabara por ser esquecer da incumbência referida à mãe: a bacia do azeite.
 Dr. Almeida! − chama ela freneticamente.
Preparava-se para o informar do esquecimento, batendo com vigor na traseira do camião, quando a bacia vermelha, arrastada pelo carro, se foi alojar certeira no buraco da rua, feito mesmo à sua medida, enquanto o azeite fazia umas ondas maiores do que verdade que vem sempre à tona.
Beatriz soltou uma sonora gargalhada e, quando se levantou da cama, continuou a rir a bandeiras despregadas.
Ela, por ver até através das paredes, já sabia que os dois magarefes da empresa não passavam de uns badamecos que tinham cometido um tremendo de um assalto ao poder e às mulheres. Nem precisava de um sonho para tal revelação. Mas, lá que foi divertido, isso foi...

Porto, 2003
Templa - Membro nº 708

 :D
muito bom!!!Parabéns Templa,adorei! ;)

#2
Olha, este conto é da minha inspiração onírica.
Templa - Membro nº 708


Este é da série, "inspiração nos sonhos"
Templa - Membro nº 708