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  • Conto - Viagem no Tempo (tinha caracteres a mais ;D)
    Iniciado por dra_vany
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Espero que gostem! ^^

Com a inspiração de:
Turisas - Prologue for R.R.R. / Rex Regi Rebellis


     Sempre soube que tinha mais do que o simples fascínio pela espada. Sempre soube que tinha uma missão a cumprir, algo suspenso e intermitente que me assombrava todos os dias. Contudo, a cidade rodeava-me de betão, arcadas, passeios poluídos de sons fendidos e o marulhar do rio ao fundo. “Não pertenço aqui.” – Dizia-o muitas vezes, apesar de ser feliz. Ou talvez nunca tivesse sabido ser completamente feliz até àquele dia em que nem eu posso inteiramente explicar o como e o porquê. A minha história pode soar-vos monstruosa, não duvido. Nem peço que acreditem em tudo o que aqui lêem, simplesmente peço que acreditem em mim.

   Os meus melhores amigos cresceram comigo, antes da cidade, antes de me ter tornado rodeada pelas arcadas e o marulhar do rio. Lá, onde nasci, onde tudo é verde e cheira às coisas em que ninguém toca, é onde vagueávamos, incansavelmente; a floresta girava suspensa em tons de pinheiros e árvores que respiravam a humidade da terra e das colinas imensas. Era sempre tarde quando voltávamos e voltávamos sempre juntos. Mas naquele dia eu não voltei como os meus amigos, estranhamente, inevitavelmente. Lembro-me de correr. Lembro-me de correr tanto que deixei de sentir os pés sobre as folhas, deixei de sentir as minhas mãos que cortavam o ar húmido do fim de tarde, deixei de sentir os meus lábios que não queriam dizer-me porque raio estava eu a correr. Quando parei já não existia o fim de tarde. Existia uma falésia coberta de negro, a escuridão no fundo que era, para mim, já inevitável. Flautas, tambores. E uma voz. Aquela voz. Olhei para trás, admirei a imensidão da floresta com a qual cresci, como que numa despedida de lágrimas que não se querem chorar. O precipício gritava por mim num eco incalculável. Deixei que os meus olhos se fechassem, aguardando a queda. Devagar, desci, sem abrir os olhos. Senti o ar fresco de tudo aquilo que me parecia que não iria voltar a contemplar. As flautas e os tambores estavam mais perto, aproximavam-se calmamente, a voz sabia o meu nome e eu não me recordo de ter chegado a lado nenhum porque depois de muito tempo, quando eu abri os olhos, eu não era a mesma pessoa no mesmo lugar em que tinha caído, tão profundamente.

   Ergui-me do chão de terra ao som de protestos de pessoas cujas vozes não me eram familiares. Rebolei para um dos lados, evitando que um cavalo me atingisse o rosto e levantei-me, cambaleando para trás, atónita pelo cenário que me envolvia. As minhas roupas não eram as mesmas. Tinha os sapatos esfarrapados, a terra magoava-me os pés. Desviava-me constantemente de carroças e mercadorias que eu não sabia de onde vinham. Não reconheci as estradas, as casas. Não reconheci ninguém por quem eu ia passando, penetrando-lhes os rostos com o olhar. Houve apenas uma coisa que eu verdadeiramente reconheci. Ao debruçar-me sobre uma das fontes que se erguiam no meio das estradas, depois de o agitar da água que formei com a mão para levar a água à boca, reconheci o meu rosto. As minhas mãos eram as minhas mãos, sujas pela terra do chão onde acordei. Olhei mais uma vez o meu reflexo como que para ter uma certeza que fosse de que continuava a ser eu, num sono profundo eu que estivesse a sonhar. Esta hipótese deixou de fazer sentido quando a dor da fome me feriu o estômago e me fez sentar no rebordo de pedra da fonte. Soltei algumas palavras feias e tentei não desalentar. Quando ergui a cabeça, vi um homem à minha frente. Era grande, forte e olhava-me como se me estivesse a tentar reconhecer de algum lugar. “Ilvy.” Disse, baixando-se ao nível dos meus olhos. “Vinde agora. Não vamos perder mais tempo.” O meu nome não é Ilvy. Nunca foi. Contudo, não quis saber. Tinha fome, sede e os meus pés estavam doridos da terra dentro dos sapatos. Limitei-me a seguir o homem, sem dizer nada, sem saber para onde me levava. Tinha a esperança de que ao chegar, fosse onde fosse, pudesse comer alguma coisa. A estrada levava-nos por entre dois vales imensos, queimados e destruídos por alguma coisa que eu não tinha a certeza. Cheirava a fogo e a morte. “Onde estamos?” Perguntei ao homem, tentando acompanhar os seus passos. “Rohgor, pequena Ilvy. Tendes fome?” “Sim.” Respondi, esperançosa. O homem retirou de dentro de uma das bolsas castanhas uma carcaça e lançou-a no ar, na minha direcção. Ao apanhar a carcaça, meti-a imediatamente à boca. Enquanto caminhávamos, senti o estômago a aliviar gradualmente. Ao longe, um castelo. Imponente, alto como se beijasse o céu. Quando chegamos à entrada do portão, alguns cavalos saíram, rodeando-nos, parando em seguida para que os soldados descessem dos animais. “Eis a rapariga!” Exclamou um dos soldados de armadura cintilante. “Excelente trabalho, Nür.” Cumprimentou, outro dos soldados, ao homem que me encontrou. “Levai-a à casa de armas.” – Pediu Nür a um dos soldados. Outro deles pegou-me, inesperadamente, colocando-me em cima do selim. Rapidamente me vi chegar a uma pequena casa de pedra, dentro da muralha, onde o soldado me entregou uma carga pesadíssima, dentro de uma caixa de tamanho considerável. “Vesti-vos, menina. Vesti-vos e armai-vos. Não temos muito tempo… em poucas horas eles estarão aqui.” Palavras nebulosas. Palavras que eu não entendia mas que acatava, não sabendo exactamente porquê. “Porquê?” Perguntei. “Porquê eu?” O soldado aproximou-se de mim num só gesto. Ajoelhou-se, pegando-me numa das mãos. “Porque sois a única, menina. Sois a única que poderá trazer-nos a esperança outra vez… Rohgor foi destruída. As cidadelas foram tomadas. O vosso nome estava escrito para nos salvar. Não nos abandoneis, menina.” As palavras do jovem soldado. As palavras do jovem soldado sem sentido para mim. “Tomai esta espada. Esteve guardada para vós.” Segurei-a pelo cabo e apertei-a na minha mão. Era leve e reflectia o meu rosto na lâmina. O soldado correu em direcção à porta, olhou-me mais uma vez e saiu. Quando eu saí, tinha toda uma hoste a aguardar-me. Olharam-me como se me tivessem esperado durante tanto tempo, como se esperassem que eu fizesse um milagre. Naquele momento, eu, a Ilvy de uma terra que eu não conhecia, a Ilvy das pessoas que sabiam que eu ali estava por alguma razão, a Ilvy de armadura cintilante e espada desembainhada para lutar contra alguém, alguma coisa incerta, era eu. E não pude fazer nada para mudar toda a esperança que depositaram em mim, mesmo não sabendo se seria eu a pessoa suposta a cumprir esse dever ou se estaria a altura de tal feito ou se alguma vez iria voltar para casa.

   Nunca comandei um exército. Nunca estudei estratégia de batalha para além dos jogos de computador. Nunca peguei numa espada fora de uma feira medieval. Nunca matei ninguém. Embora todos esses factos fossem verdadeiros não existia alternativa para mim. Eu estava ali. Eu estava ali porque alguma coisa no mundo quis que eu estivesse ali, na frente de uma hoste de homens cujos rostos eu não reconhecia. E, de repente, o som longínquo de passos massivos e ritmados. Vozes e gritos de homens. O silêncio dos que me acompanhavam naquela hora. Senti medo porque naquele momento eu soube que não ia voltar a ver a floresta onde cresci. Ali, no topo do castelo, onde se avistava a noite vasta e os reflexos das tochas daqueles que vinham para tomar a terra e que eu não sabia quem eram. Enquanto se aproximavam os inimigos havia apenas o som do respirar do metal no movimento dos homens que afirmavam que eu os iria salvar. Havia o murmurar de rezas e pequenas esperanças. Havia o murmurar da minha esperança. “Preparar arqueiros!” – Gritou uma voz no fundo, fazendo obedecer os homens que me acompanhavam, sem sorrisos e sem lágrimas. “Não temei as hostes de Tin’ver! Temos a menina do nosso lado e é por Deus que lutamos! Por Deus vencemos!” Os homens vociferaram erguendo as armas. Senti-me fazer o mesmo pois era um deles, inevitavelmente. Quando as hostes inimigas se aproximaram o suficiente um dos soldados do meu lado segurou o meu braço “Comandai-nos, Ilvy. Levai-nos à vitória.” Sem nada que pudesse recusar, afirmei com a cabeça enquanto subi para uma das pedras da estrutura do castelo, desembainhando a espada. Sem mais nada a perder pensei, ao menos, oferecer esperança àqueles homens. Quando as hostes se aproximaram o suficiente da muralha, ergui a espada, instintivamente. Os arqueiros ergueram os arcos ao nível da cabeça. Quando fiz apontar a espada às hostes inimigas, uma salva de flechas rasgou o céu, como uma chuva de astros, alta e incansável. Quando desceram, muitos dos homens caíram. Os outros caminharam sobre o charco de sangue que se formou e fizeram voar uma outra salva de flechas. Muito dos meus homens caíram, do meu lado, violentamente. “Isto é uma batalha.” Pensei, estranhamente. Tal como eu tinha sonhado tantas vezes, mas de um modo diferente. As hostes de Tin’ver içaram enormes escadas, numa questão de segundos. Menos tempo levou a que ascendessem às torres, vociferando, atacando os meus homens e destruindo os balcões de pedra. “Às armas!” Gritei, montando num dos cavalos que se separaram dos falecidos soldados. “Às armas!” A minha espada cintilou a luz de todas as estrelas e eu avancei, entre os mortos e com os vivos, sentindo, cada vez mais, que estava exactamente onde deveria estar. Embati a lâmina contra as lâminas e contra aqueles que não me temeram naquela hora.

     Não sei quanto tempo passou. Os gritos eram já poucos e havia homens que fugiam e havia homens que procuravam, pelo chão, caras que reconhecessem. Havia homens que choravam a morte de alguns, outros suspiravam de coração pesado e sem as palavras que queriam dizer. Vagueei entre os destroços da batalha, os pés arrastados numa nuvem de poeira que cobria os corpos e o que restava daquele chão. Tinha-mos vencido. Contudo, a tristeza ecoava através dos silêncios da muralha. Sentei-me, por um momento, numa pequena rocha – admirei o Sol que nascia para além da planície de cadáveres, lanças erguidas e estandartes. Cerrei os olhos para sentir o calor do fim da noite gelada. Quis deixar-me adormecer. “Ilvy!” Uma voz soou, do meu lado. Nür olhou-me de semblante enquanto retirou o elmo e o lançou no chão poeirento. A face enlameada, sangue nas mãos – “Haveis conseguido, Ilvy. Haveis levado os nossos homens à vitória.” “Muitos caíram…” Lamentei. “Como em todas as batalhas, cara Ilvy. Ide para casa, descansai.” Casa – a palavra ecoou em mim. O sabor dos cozinhados da minha mãe. O jardim. A floresta e o cheiro das coisas em que ninguém toca. Os meus amigos. Senti uma lágrima a descer o meu rosto, ensanguentado e sujo da noite demorada. Senti saudade. E era tanta a saudade que quis voltar a trás. Quis não ter caído naquele precipício – deixar-me consumir pelo rufar espantoso dos tambores, as flautas suspensas e a voz que conhecia o meu nome. Nür afastou-se. Desvaneceu-se na poeira, ao fundo, enquanto caminhava por entre os caídos. Senti-me cair sobre a pedra, dentro do eco da palavra “casa”. O céu a reflectir-me e, ao fundo, a imagem longínqua da minha casa. Os tambores, do meu lado, iniciaram a canção. Seguidos das flautas carregadas da voz e do meu nome. A música levou-me, fez-me segui-la, adormecida sobre a rocha, assim, profundamente, como tinha sido, já, anteriormente.

     Quando abri os olhos era só eu. As folhas, as árvores e o fim de tarde. Levei a mão ao rosto para me sentir. Olhei as minhas roupas e eram as minhas. As jeans de que me lembro ter colocado de manhã, a t-shirt acinzentada pelo tempo com o logótipo de uma banda qualquer, as botas de biqueira de aço que o meu avô nunca gostou mas que eu nunca deixei de usar. Era só eu. As minhas mãos eram as mesmas, talvez ainda sujas pela terra do sonho, da viagem, da batalha. Ouvi os meus amigos chamarem por mim – ao longe – repetidamente. Sentei-me, arrastando as folhas secas com os pés, num movimento só. Os meus cabelos desalinhados tomaram a forma que lhes dei com os dedos, enquanto os meus amigos se aproximaram numa corrida. “Onde estiveste? O que aconteceu?” Perguntaram-me de uma vez, perguntas às quais eu não sabia ao certo como responder. “Não sei.” Respondi. “Estive por aí.” Os meus amigos entre-olharam-se; o meu olhar fitando o horizonte entre as árvores em meu redor. Os meus amigos levantaram-me do chão e caminharam do meu lado. Quando olhei para trás, entre as árvores e dentro das árvores, uma espada envolta em alvos laços, obedientes à brisa do entardecer. Afastei-me enquanto sorri. Os meus braços envolveram os meus amigos e caminhamos juntos pela estrada, pela estrada acima até à minha casa. O sabor dos cozinhados da minha mãe. O jardim. A floresta e o cheiro das coisas em que ninguém toca. A voz da minha mãe - “Joana, chegaste mesmo a tempo para o jantar!”
FIM

V. Caldeira, 2010
"There is no Death. There are no dead."

Já li, mas preciso de mais tempo, pois o conto é muito denso e para mim no mínimo, são precisas duas leituras.

Mas acho que vou gostar dele, depois de lhe desbravar a densidadade. É como uma mata verde, é preciso arredar arbustos para ver o que se esconde no interior.

Bjs.
Templa - Membro nº 708

Templa - Membro nº 708