Bem-vindo ao Portugal Paranormal. Por favor, faça o login ou registe-se.
Total de membros
19.427
Total de mensagens
369.473
Total de tópicos
26.918
  • Crónica de viagem - Tormes - de "A Cidade e as Serras"
    Iniciado por Templa
    Lido 3.347 vezes
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
Com residência fixa sobre águas mais a sul, há tempos que não me embrenhava no serpenteado da estrada junto ao Douro, entre a foz e a fatídica ponte de Entre-os-Rios, onde agora, lado a lado, vivem como pacíficas vizinhas duas travessias, que evocam entre si, aos pés do anjo, alado, amarelo e sereno, um mudo memorial às vítimas. Foi no dia 4 de Março de 2001, que a corrente do rio esculpiu a sua maior tragédia, 59 mortos.
Frequentemente, no sinuoso percurso de curvas adocicadas pela sombra das árvores, o castanho dos montes assemelhava-se a um caixão gigante, puxando para a terra os troncos esquálidos que emergiam do solo, de um lado e de outro, como mortos vivos à espera de sepultura.
Era o rasto de fogo dos últimos incêndios, era parte das ruínas de uma oficina onde se tem feito a civilização desde que Jacinto a deixou encaixotada e perdida algures em Madrid, mais concretamente em Alba de Tormes, numa terra homónima que lhe rebatizara a barbárie da Quinta de Vila Nova, em Santa Cruz do Douro, na sua mítica e doce Tormes.
Quase desde o Porto, as estradas, por todo o lado, assemelhavam-se a peles degradadas por bexigas doidas que deixaram buracos na maior parte do asfalto, de onde há décadas fugiu o negro alcatrão capaz de as alisar minimamente, como a peles de mulher sulcadas pela voragem do tempo.
Por todo o país, a febre das auto-estradas alastrara, vergada ao peso da velocidade e rasgando a paisagem, donde emergiam, aqui e ali, como cobras a arrastarem-se por entre o arvoredo do novo Portugal político,  colorido alternadamente pelo rosa e laranja, mas sempre com a mesma pressa de chegar não se sabe aonde.
Era por isso que as pobres vias se apresentavam andrajosas e rotas, com o rótulo da pobreza colado à testa e a estender a mão aos viajantes, enquanto mandavam recados urgentes ao poder central, no sentido de este lhes tapar tantos buracos.
Apesar de tudo, Baião recebeu, no dia da minha viagem a Tormes, os turistas em festa. Os cartazes de propaganda eleitoral eram visíveis por todo o lado e cada figura, numa frase apelativa ao voto dos munícipes, adoptava o seu melhor ar de eficácia para levar a cabo quatro anos de mandato, depois de mais umas autárquicas.
Valeu, então, o café tomado na estratégica confeitaria de esquina, onde faltava um docinho como especialidade regional. Foi uma pausa que soube a oásis, por entre o calor, enquanto o dia nos liquefazia sob os seus vinte e oito graus de temperatura
Tormes borbulhava na minha imaginação como literário espumante de festa, com o qual esperava dessedentar a minha curiosidade sobre uma das musas em que Eça de Queiroz bebeu inspiração e génio.
Depois, ali, na confeitaria onde se entrecruzam caminhos e se tecem alternativas, procurei uma tabuleta que me indicasse o meu próprio caminho, escrito, quando não a letras de ouro como os livros de Eça, ao menos como uma vulgar placa de estrada onde luzissem as palavras "Fundação de Eça de Queiroz " ou, simplesmente, Tormes.
Contudo, na ausência da preciosa inscrição, valeu-me a boca de romana, com que indaguei sobre o meu destino.
 É por ali – disse o meu interlocutor, ao mesmo tempo que um dístico amarelo assinalava uma via com piso degradado – Até lá, são cerca de sete quilómetros.
O automóvel desviava-se como podia das mil e uma crateras, e ei-lo a subir, enganado no trajecto, um monte, aos pés do qual a paisagem, a perder de vista, se estendia com um véu de neblina acinzentada sobre os ombros, penetrada pelo sol do meio dia num mosaico grandioso de cor e sombras.
Foi no fim da estrada, encimada por outra na perpendicular, que a primeira tabuleta insinuava, medrosa e com a cara à banda de quem já sofrera um viril  entorse provocado por uma viatura, a útil indicação:
Fundação de Eça de Queiroz  dizia, orgulhosa, a placa, embora torcida como o rosto de quem tivesse sofrido há algum tempo um enfarte que lho tivesse deformado.
Inversão de marcha feita, eis o trombinhas a fazer gincana sobre os buracos da via, enquanto nomes como Santo Tirso e Gaia lhe faziam lembrar, como se os homens gostassem de copiar-se uns aos outros, terras limítrofes do Porto, de onde partira cerca das onze horas desse dia, à procura de um pouco de bucolismo.
Tormes, por fim, surgia do lado direito, num caminho de paralelo granítico, pedra abundante na região, enfeitado do lado esquerdo por robustas videiras alinhadas, quais roseiras num nectarado jardim, já sem cachos depois da recente vindima, que os transformará num delicioso vinho branco engarrafado com o nome "Tormes".
Mais ou menos agrupadas, havia algumas casas modernas, reconstruídas a partir dos casebres de outrora, onde a miséria do século XIX acobertava a alma dos trabalhadores da quinta, homens, mulheres e crianças, de quem Jacinto se condoeu, mal soube da fome e da tísica que devorava os corpos dessa pobre gente que lhe amanhava a terra que nunca pisara.
A casa surgiu, por fim, juntamente com a pequena capela do lado esquerdo, exterior a um amplo pátio de granito onde, numa reentrância da fachada principal, sobressaía uma arcada, abrigada pelo tecto da mansão. Acedia-se a esta, de um lado e de outro, por umas escadas convergentes num patamar, em que a porta de entrada ficava ao centro. Duas janelas românticas, com dois banquinhos em granito no interior, vim a conhecer ao longo da visita, completavam a parte frontal, agora livre das heras abundantes que, como um cabelo selvagem e hirto, lhe tinham ocultado o rosto nos últimos tempos.
Parte do encantamento na recepção dos viajantes foi proporcionada por uma música que se espraiava pelo vale, esgueirando-se dos beiços de uma gaita de foles, a que se juntava toda a orquestra da natureza, com os seus múltiplos pios de aves dançando sobre as árvores, por entre o som da folhagem que gemia por todo o lado ao sabor do vento já com a nostalgia amarelada do outono, ensolarado mais do que era costume.
Aromatizei, entretanto, as mãos no alecrim do jardim contíguo à casa de Jacinto. Espreitei a horta mais ao fundo, em socalco. Já lá tinha estado em livro, juntamente com o dono, quando este, quase com horror, se desviava da copa das árvores e quando, depois, sulcava com prazer a terra onde as favas e as ervilhas cresciam de dia para dia, após constatar com pena o quanto uma árvore de grande porte demorava a crescer.
O estômago já pedia uma refeição que o tranquilizasse de uma pequena arrelia íntima. Então, foi a hora de arrepiar caminho e percorrer de novo os buracos da estrada até ao restaurante mais próximo, onde um lombo de porco assado se assemelhou a um manjar de Deuses acompanhado a água. Era para prevenir azares do asfalto. O verde fresquinho de Tormes, com doze graus, teria de ficar para a calma e silêncio da noite...
Depois, a linha do caminho de ferro, lá ao fundo no Douro, beijando o rio, surgiu mais uma vez, evocando o mítico encontro de Jacinto com a terra na atribulada vinda de Paris, e a Régua parecia um destino ao alcance da tarde. Era só preciso que o trem passasse a horas decentes de um encontro com os barcos de recreio na marginal.
Mas, ó azar dos azares!... Eu desconhecia completamente um tipo de transbordo em que se tem de andar para trás para depois andar para a frente...Teria de regredir até Mosteirô e apanhar uma outra composição directa para o Peso da Régua.
Nesse aspecto, mais sorte teve Jacinto no seu tempo, quando todos os comboios paravam em Aregos, mesmo antes de a estação ter escrito na frontaria, ao lado do nome baptismal, a designação de Tormes que granjeou à custa dele. Contudo, a minha vantagem, relativamente  à personagem, situava-se entre um burro ou um cavalo e o carro, que a mim, paulatinamente, me ajudaria a subir a encosta e a ele o obrigou então a caminhar, quase sempre a pé, no meio de um calor primaveril que lhe fez dilatar os poros e ensebar o colarinho da camisa, deixando-o sem uma muda de roupa e completamente à mercê de um alfaiate do fim do mundo, bem diferente do de Paris que o aperaltava até ao mais chique pormenor.
O gato da minha caça turística, já que não havia comboio, lá foi de novo o trombinhas.
Outra vez, pôs-se ele a caminho, por mais umas quantas mantas de retalhos das estradas da região, semelhantes a teias de aranha por onde a pobre viatura seguia em dolorosos solavancos.
A Régua, desde a última visita, tinha um ar de senhora, bem diferente da provinciana e campónia vila de outros tempos onde eu passara férias de juventude, na Vila Rosa, em cuja casa a caseira, uma velhota de oitenta anos, resmungando contra a doidice dos jovens, punha a marmelada a secar ao sol, nos parapeitos das janelas pintadas de vermelho.
Os barcos no rio, hoje em dia, dão à cidade, um ar cosmopolita de república italiana da Idade Média, em que os mercadores de vinho foram substituídos por turistas de toda a espécie, de carteira a abarrotar ou de bolsos mais ou menos vazios. O turismo chegara ao auge da democratização. E as três viajantes do último fim-de-semana, ávidas de tudo quanto pudesse seduzir a alma, por lá se deliciaram, experimentado uma pequena parte da sublime democracia de viajar no tempo, no espaço e na história, enquanto visitavam locais como o magnífico Solar da Rede.
A seguir, já o crepúsculo avermelhado do fim da tarde se insinuava na cúpula dos montes, foi a vez de retomar, do lado de lá do rio, o percurso de regresso, por estradas idênticas em que os buracos são uma pictórica imagem de marca da região.
À chegada, o mesmo som de gaita-de-foles ecoava pela encosta. Desta vez, ampliado por um trio de jovens Andarilhos, o nome do grupo, disseram eles, que de novo davam música à paisagem e empolavam o misticismo da casa de Jacinto, agora um local de culto ao génio do mestre da escrita que, sobretudo através do romance "A Cidade e as Serras", se tornou intemporal.
Depois do jantar, a casa do Silvério, restaurada num jeito simples, lá estava, serena, confortável e bucólica, para nos acolher, mostrando-se simpática logo na cozinha, do lado direito e à entrada, com o forno a lenha restaurado, onde outrora se cozia o pão e se assavam os cabritos nos dias de festa.
Ao descer as escadas  um melhoramento da pequena casinha, já que a parte de baixo fora a loja de recolher talvez uma mula, uma égua ou um cavalo e pequenas alfaias agrícolas, julgo eu  deparámos com a efígie em bronze de Eça de Queiroz, pendurada numa parede, atrás da qual foi incrustada uma lareira onde dormiam umas achas prontas para o frio de Inverno. E não digo mais nada... Vão lá e saboreiem...
Quando acordámos, lá estavam, em duas garrafas termus, o leite e o café, a manteiga, as torradas mais uma compota de cereja deliciosa e tudo isso nos deixou preparadas para o que se seguiria.
E seguiu-se a visita guiada à casa, onde tive o prazer de me sentar na cadeira de Jacinto e tocar numa das penas de que saíram os magistrais romances do escritor, colocadas então sobre um escrivaninha alta, onde ele – vejam só – escrevia muitas vezes de pé.
Perguntei-me o porquê desse hábito e cheguei à conclusão, quiçá falaciosa, de que a inspiração vem como relâmpagos que é preciso aprisionar rapidamente na cadeia de um livro, sob pena de se perderem para sempre deixando apenas um rasto já com pouco a ver com o rastilho que a tenha desencadeado.
Por outro lado, todo o artista, seja qual for a arte onde pincele, nasceu com o direito de ter manias e excessos, incompreensíveis ao comum dos mortais.
Só faltava percorrer, senão todo – o dia já levava um bom cotejo solar – ao menos parte do caminho de Jacinto.
Eis-nos então encosta abaixo, colhendo, aqui e ali, um respigo de uvas esquecido na vinha, enquanto contemplávamos as casas senhoriais das redondezas, algumas semi-abandonadas mas com uma vocação notável para recriação da história do Portugal rural, sobretudo do século XIX. Só falta audácia – talvez dinheiro, também – aos proprietários dessas mansões e ao poder político para, uns e outros, investirem nesta forma de turismo bucólico. Sobretudo, no caso da Fundação Eça de Queiroz, falta, por da parte da autarquia de Baião,  um maior apoio, um melhor aproveitamento e divulgação da mesma, já para não falar nas estradas. Num futuro próximo, não deviam ter buracos e deviam ser um convite ao viajante para voltar incondicionalmente.
Em tempo de eleições autárquicas, quando os candidatos se desunham na caça ao voto, lançar este repto não me parece nada despiciendo. Sobretudo porque sou uma munícipe sem interesses instalados no concelho. A cruzada a mover-me, por detrás deste desabafo, é apenas de índole cultural.
Adorei Tormes. Hei-de voltar brevemente e, desta vez, se não for ousadia desavergonhada da minha parte, gostava de ouvir contar histórias do escritor... Ah!...E a gaita-de-foles é, manifestamente, uma boa aposta na recepção aos visitantes.


Templa, 2  de Outubro de 2005

Templa - Membro nº 708

Oi, mon chérie. Estás aqui tão esquecido?!!!

É meu

Será que, apesar de velho, ainda estás em bom estado, apesar de relativamente mal escrito?. Muito barroco...
Templa - Membro nº 708

Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

Citação de: cleopatra em 07 dezembro, 2012, 15:31
está escrito com criatividade

Muito adjectivado e com períodos demasiado longos. Se o fosse a melhorar cortava-lhe muita coisa. Mas vai "morrer" assim.

Beijo

Templa
Templa - Membro nº 708

Citação de: Templa em 07 dezembro, 2012, 22:37
Muito adjectivado e com períodos demasiado longos. Se o fosse a melhorar cortava-lhe muita coisa. Mas vai "morrer" assim.

Beijo

Templa

Então vai "viver" bem, está bem escrito. Não seja muito crítica contigo...
Após ter sentido o gosto de voar, você há de andar para sempre na terra com os olhos voltados para o céu, pois esteve lá, e, para lá, sempre há de desejar voltar.
                                        Leonardo da Vinci

Templa - Membro nº 708