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  • A Maria Capaz lá de casa
    Iniciado por cepticooucrente
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A Maria Capaz lá de casa não teve direito a infância. Nasceu e cresceu pobre, numa casa minúscula onde uma sardinha era dividida por cinco pessoas. Numa casa onde, ou trabalhavam todos no campo, ou ninguém tinha trabalho. Tem a quarta classe, mas não fez o exame porque não tinha dinheiro para o caderno. Assim era a sua vida e a de todos os que conhecia na pequena aldeia onde cresceu, no tempo da outra senhora.

A Maria Capaz lá de casa viu-se alagada aos 12 anos, quando começou a trabalhar na cultura do arroz. Depois, mais crescida, foi servir. Mais tarde, já mulher, deu serventia a pedreiros e trabalhou no campo. Por fim, casada e com filhos, foi mulher-a-dias paga à hora, com pouco rendimento, já no tempo da Liberdade.

A Maria Capaz lá de casa sempre cuidou dos outros. Dos irmãos, dos sobrinhos, dos filhos. Casou tarde, para os costumes do seu tempo, mas bem a tempo, acertou e foi feliz. Teve um bom marido e três filhos tranquilos.

A vida da Maria Capaz lá de casa foi feita a trabalhar. Sempre. A trabalhar para sobreviver à pobreza e à miséria da infância, a trabalhar por um futuro melhor, a trabalhar para esquecer a solidão, a trabalhar para não chegar à doença.

A vida da Maria Capaz lá de casa um dia mudou.

Casou os filhos que construíram os seus ninhos dispersos pela geografia da vida... uns perto, mas longe dela, outros simplesmente longe. Morreu-lhe o marido, sem aviso nem explicação, e com ele tudo o que ela tinha por certo – a razão da vida, a casa construída, o dinheiro amealhado, o rumo a seguir. Vem a doença... na calada, no Outono da vida, depois da reforma. Não essa doença que agora impera, que tantos nem ousam nomear, não. Sofre sim de uma coisa má que lhe muda o resto da vida. Param-lhe os rins. Vê-se ligada a uma máquina horas a fio, horas que já não quer viver, às quais já não quer sobreviver. Nestas horas põe constantemente em dúvida o pouco que tem, o muito que trabalhou, o que a vida lhe roubou, o nada que tudo isto vale.

A Maria Capaz lá de casa vive hoje uma doença que a vai vencer, vive hoje onde não quer, tirada do seu espaço, por conforto, por comodidade, "porque a vida é mesmo assim", dizem os filhos.

Esta é a Maria Capaz lá de casa. É a minha mãe.

por Maria Barreto



A todas as Marias como esta. :)

Que lindo texto... acho que este é o retrato fiel das nossas mães. Não sei, se nós desta geração, alguma vez seremos Maria Capaz assim! É verdade... elas são capazes de tudo... e os filhos ainda dizem "é a vida!!"... emocionei-me.

Adorei!
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334

BlackMiau
Essa do "é a vida" irrita-me sobremaneira...

Muito capaz foi a Maria Capaz.
Parabéns pela escolha do texto.
Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

#4
Este texto, em grande parte, retratou a minha mãe. Não pude deixar de partilhar. :)

Este "é a vida"... parte-me toda... :(

No outro dia, passou no meu mural do Facebook a seguinte frase, como legenda de uma imagem de uma senhora de idade: "como é que uma mãe consegue sozinha cuidar de 10 filhos, e 10 filhos não conseguem cuidar de 1 mãe?"

Incrível, não é?... :-\

sofiagov
Citação de: cepticooucrente em 02 abril, 2015, 09:20
Este texto, em grande parte, retratou a minha mãe. Não pude deixar de partilhar. :)

Este "é a vida"... parte-me toda... :(

No outro dia, passou no meu mural do Facebook a seguinte frase, como legenda de uma imagem de uma senhora de idade: "como é que uma mãe consegue sozinha cuidar de 10 filhos, e 10 filhos não conseguem cuidar de 1 mãe?"

Incrível, não é?... :-\

incrível mesmo  :-[

É mesmo... e será que esses 10 filhos, nos tempos modernos, cuidarão dos seus da mesma forma que a sua mãe fez? Duvido :(
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334

Eu também duvido, ao que tenho visto à minha volta... :(

I see now that the circumstances of one's birth are irrelevant, is what you do with the gift of life that determines who you are"

A Maria Capaz, embora com uma vivência cruel a muito comum na primeira metade do século passado, retrata os sacrifícios que os pais tendem a fazer pelos filhos. As novas gerações, vivenciando outras oportunidades são sujeitas a outros sacrificios que, embora diferentes, não deixam de o ser. Os pais fazem tudo pelos filhos. Todavia, a vida "louca" e stressante que levam para que, também eles, tenham  uma vida melhor, leva-os  a esquecer esses pais que tudo fizeram por eles. Os lares estão cheios desses amorosos e sacrificados pais que tanto fizeram pelos filhos e que, hoje, apenas merecem uma curta e apressada visita de longe em longe ou um telefonema apressado porque o tempo não pára.