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  • A Senhora Morte- Dói que se farta
    Iniciado por Templa
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Há um tempo para tudo. Nascer em berço de oiro. ou de palha, crescer  na abundância ou à míngua,  até  de afecto, viver a vida, qual roda da fortuna, à mercê da sorte ou do azar... Enfim, há tempo mesmo quando já não há outro tempo senão o de esperar um "a posteriori" de tudo, da casa de onde nos retiram, daquilo que se deixa rumo ao último ingresso,  e onde vive a senhora morte.
Mas, antes do ir sem volta, antes da libertação e quando a alma se livra das endemias do corpo encarcerado em si mesmo à mercê da decadência, vem ainda e quase sempre a última prova. É aquela que talvez nos devesse envergonhar, não fosse o nosso complicado dia a dia a desculpar-nos. Chama-se ela Passagem pelo Depósito de Velhice. São os lares para a terceira idade, teoricamente criados com a melhor das intenções para o último dos fins
Enfim!
Chamava-se Luciana no passado, mas, no presente, dá até vontade de a tratar por Lucianinha. Agora parece mais do que criança, por causa do tino que já não tem e que lhe foi roubado por um tempo já demasiado longo que a deixou sem norte. Também já não sabe dar, nem curtas e, muito menos, longas caminhadas. Lucianinha no presente, vive no poente de uma vida, agora completamente à margem da razão. Tem 92 anos.
Lucianinha, no passado Luciana, foi, então, mulher de nariz empinado, casada e sem outros filhos que não a sobrinha, a quem criou com amor de mãe. Morou numa casa com muitas janelas que dizia estar assombrada, em zona chique onde reis e rainhas tinham veraneado. Era modista afamada e vestiu as senhoras da alta sociedade. Sobreviveu a muitas pessoas chegadas, mesmo à rapariga que criou como filha.
Depois de muitas voltas o mundo ter dado, o "genro", resolvera comprar por tuta e meia a casa onde Luciana morava e, após a morte da mulher, meteu lá o filho, um rapaz de vida sinistra, que vestia o quarto de negro e no qual guardava uma caveira, como se toda a sua vida fosse um ritual de morte...Diz-se, agora, que até batia à tia-avó... Fique-se com a dúvida sobre essa indignidade do rapaz, para bem da nossa consciência... Nessa altura, Luciana era, já, Lucianinha...
Enfim!
Um dia Lucianinha não mais voltou a casa. Teve de ceder a um conluio tecido pelo "genro" e, no final do passeio daquele dia, desembocou num depósito de velhice, onde um desconforto imenso se apoderou de mim quando a fui ver.
Numa sala grande, espalhados por todo o lado, viam-se cerca de trinta idosos, homens e mulheres, uns em cadeiras de rodas, outros de bengala, ainda outros deitados, esperando, sem sequer o desejarem, muitos deles por já não terem razão, a Senhora que há-de vir...
A senilidade passeava impudica nos rostos de onde a carne já fugira ao longo dos anos, os gritos de alguns ecoavam nos ouvidos de todos sem que, por entre tantos corpos magros e esquálidos, alguém se atrevesse a soltar um queixume. Uma lassidão sem retorno fizera daquela grande casa o mais expressivo baluarte da decadência humana, a antecâmara do definitivo. E, observar tudo aquilo sem nada poder fazer por aquelas vidas semimortas devolvendo-as ao amor da família para o seu último sol de fim de tarde, dói que se farta...
Entretanto, e enquanto os meus olhos se impressionavam e o meu coração contristava, olhando Luciana, agora Lucianinha, soltei um grito endémico, enquanto uma questão sem resposta me sacudia violentamente:
-   Meu Deus, o que fizemos aos nossos velhos?!!!
Abril de 2001



Templa
Templa - Membro nº 708

Infelizmente, isto é o retrato de uma realidade que, possivelmente, mais cedo ou mais tarde, todos iremos sentir na pele, os depósitos continuam a aceitar candidaturas.

Bom texto! :)

Citação de: Gawen em 20 junho, 2012, 20:38
Infelizmente, isto é o retrato de uma realidade que, possivelmente, mais cedo ou mais tarde, todos iremos sentir na pele, os depósitos continuam a aceitar candidaturas.

Bom texto! :)

É por isso que eu quero ir para os anjinhos antes de me tornar pesada aos diabinhos cá de baixo. ;D

Abraço

Templa
Templa - Membro nº 708


"Depósito de velhice" é a feliz expressão para a infeliz realidade. E mesmo acordados e gritando, não mudamos as coisas. Vieram para ficar... triste sina.

Muito bom. Parabéns.

Quem nao respeita os idosos escarnece da sabedoria e quem os "despacha" esquece-se que um dia pode estar no lugar deles.

Cs
"Fiquei magoado, não por me teres mentido, mas por não poder voltar a acreditar-te." - Friedrich Nietzsche
"There's one thing i couldnt do: sacrifice myself to you"

Na minha profissão, assisto com frequência, ao abandono de muitos idosos. A queles que abandonam serão um dia abandonados.
Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

Às vezes dou comigo a pensar por que se prolonga a vida aos idosos para lhes dar certos fins como o de Lucianinha...

O texto foi escrito em 2001, mas tem cada vez mais actualidade.

Obrigada pelos estímulos


Templa
Templa - Membro nº 708