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  • Emparedadas ( Apontamentos do Porto em 2003)
    Iniciado por Templa
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Emparedadas

Há já algum tempo que Beatriz andava com vontade de caiar alguns lugares do Porto. Só esperava um pequeno estímulo para dar as desejadas pinceladas e colorir o cinzento da cidade, de dia para dia a resvalar para o averdascado musguento. Mais até para o negrume da morte.
Um dia, lá veio o tão desejado empurrão, cheirando a podre e mijo, os mesmos odores cheirados pelo vizinho João, enojado, numa das muitas ruas da cidade, mas que, apesar da sua recente crise de identidade, continuava, no entender de Beatriz e com grande sentido eclético, a movimentar-se bem no seu nome.
A rapariga, há dias, por causa de uma aselhice métrica, acabou por ter de mandar para o hospital dos carros, vítima de um risco algo profundo, o Huguinho, nome com que baptizara o seu carro. E a seguir o remédio foi andar a pé e transformar o sofrimento da viatura em algo que, a ela, lhe desanuviasse o espírito e lhe branqueasse os remorsos pela arranhadela do pobre carrinho. Andar a pé até fazia bem, pensava entretanto.
Vagueando pela cidade, qual turista na sua própria terra, observava atenta o passado recente e as transformações sofridas pelo burgo, numa lentidão tão acentuada que as obras denotavam estar com uma tendência de Santa Engrácia.
Testemunho disso eram os montinhos de pedra existentes por todo lado, as ruas esventradas, como se sobre elas tivesse passado um milhão de cavalos a galope, os buracos do metro, os 101 parques de estacionamento subterrâneo com aquelas bocas estreitas,  dando a entender que a vida, toda ela, estava com vontade de se mudar para debaixo da terra.
Mas, o que verdadeiramente suscitava a curiosidade de Beatriz era a arquitectura da cidade. Depois de andar anos e anos distraída, sem reparar na beleza de muitos edifícios existentes por todo o lado, andava agora de pescoço esticado a admirar o traço urbano, com mágoa, é certo, por grande parte dos prédios ter um aspecto mais deprimente do que prostitutas velhas e desdentadas,  de quem a juventude há muito se tivesse estatelado no chão.
Contudo, apesar de moribundas, algumas dessas casas ainda permaneciam de pé, como as árvores, talvez na esperança de que seiva nova lhes fosse injectada nas veias dando-lhes alguma dignidade.
Já outras, coitadas, jaziam ao lado de estruturas recentes, como se fossem estropiados de guerra que tivessem sido bombardeados com os potentes mísseis do tempo e do abandono, estando agora reduzidas a escombros. Não bastando isso, tinham sido emparedadas, quais portadoras de lepra contagiosa, numa tentativa de impedir que a doença alastrasse através ocupações clandestinas perpetradas pelos deserdados da sorte.
Beatriz questionava se não seria preferíveis as casas, em vez de albergarem o probo lixo da limpa vizinhança mais os ratos seus seguidores, dessem guarida à miséria deambulante da cidade. Mas, isso iria, talvez, contra as especulações imobiliárias da família. Com pessoas dentro, os pobres esqueletos das velhas habitações sempre prolongariam a sua própria agonia, nem que fosse à custa de plásticos colocados no tecto para estancarem o céu cinzento de chuva, já que o sol dessa pobre gente nunca brilha.
Em boa verdade, muitos dos senhorios eram quase tão pobres como os inquilinos. A única riqueza advinha-lhes de uns títulos de propriedade ainda sem cotação na bolsa. Por isso esperavam paulatinamente os esgares do tempo até à derrocada final dos seus imóveis.
Beatriz, perante tanta lepra emparedada, não pode deixar de sentir uma enorme tristeza pele profunda degradação,  a proliferar na urbe que tanto amava.
Então, numa tentativa de se furtar aos cinzentos e pretos que lhe pincelavam a alma, imaginou-se uma banqueira rica, a negar, por um lado, empréstimos aos construtores de novos caixotes urbanos, enquanto era pródiga a concedê-los a quem pusesse mãos à obra de renovar o velho burgo,  dando assim  uma nova vida à cidade.
O Porto sorriu-lhe agradecido pela intenção e, tocando-lhe nas costas com carinho, acordou-a do sonho,  dizendo-lhe:
 Deixa lá, minha querida. Parte de mim é Património Mundial da Humanidade, outra parte é parte nacional de inanidade, e todos fazemos parte de uma grande pobreza de espírito. A começar, necessariamente, pelos políticos...

Porto, 6 de Março de 2003
Templa - Membro nº 708

um texto de grande qualidade,minha querida Templa,para quando um livro?

Citação de: Nita em 01 julho, 2011, 21:38
um texto de grande qualidade,minha querida Templa,para quando um livro?


Vamos ver se no próximo ano!!!! ;)
Templa - Membro nº 708

DiogoM
Bem...Este texto supera o outro, no entanto os 2 têm uma pitada "mistério"...
Parabéns! ;)

Templa - Membro nº 708