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  • Cenotáfios do cemitério São José
    Iniciado por TEOCIDA
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CENOTÁFIOS DO CEMITÉRIO SÃO JOSÉ




Tudo se passava a 25 km de Pinheiro, sentido noroeste, entre os povoados de Bandeira Branca e Campo Novo. Alto São José, em cujo cimo repousa um cemitério de mesmo nome, ou Lucrécia, como era chamado até a primeira metade da década de setenta. Aquele cerro tinha seu sopé, ao sul, contornado por um riacho subterrâneo, conduto de um fio d'água salobre. Ninguém bebia da água, exceto alguns cavaleiros porres.
O perímetro do Campo Santo era delimitado por uma linha imaginária, seguindo o círculo sobre o qual, um dia, o vigário espargiu água benta. O espaço bendito, o eliseu, era reservado aos puros, ou enrustidos, quem sabe?! Sobrava a periferia, o geena, aos impuros, ou estereotipados, talvez!?
Ao chegar o dia de finados, vinham romarias de todas as direções àquela necrolatria. Cada vivo trazia consigo: velas, e cofos cilíndricos sem a trança inferior. Tecidas com pindoba, aquelas peças artesanais tinham função de para-brisas para proteger as chamas das velas contra o sopro do vento. Só pessoas doentes ou mulheres "de macaca, de barco furado, na semana delas" não podiam participar da cerimônia; elas corriam risco de hemorragia.
Enquanto os mortos eram reverenciados, ouvia-se tiros, bem como catrapus de cavalos desembestados. Homens espritados pela mais pura "cana", montavam suas cavalgaduras para apostas em porfia de parelhas. O culto fúnebre propiciava uma ótima oportunidade para os jóqueis caipiras exibirem suas mais recentes aquisições bélicas: um trinta-e-oito, uma peixeira, um treçado... "o homem desarmado faz o outro confiado", dizia-se lá.
Do Campo Santo, podia-se vislumbrar algumas tochas mato adentro – parentes iluminavam as almas daqueles que em vida tiveram uma conduta em trevas. Assassinos, ladrões e estupradores constituíam a mortualha execrável. Os rostos dos seus não escondiam o constrangimento. Era comum um e outro murmurar: "fulano acende velas embrenhado, cicrano acende velas amontado!" Mais à frente havia um esqueleto ressequido, recostado a um jutaizeiro – tratava-se de um pai que praticara relações incestuosas com as filhas – por isso a terra  tê-lo-ia aflorado à superfície. Muitos curiosos iam contemplar aquela múmia macabra.
No centro da necrópole estava encravada a Santa Cruz, ali era um ponto de convergência, ou seja: o serviço de Perdidos e Achados dos correios sepulcrais. Se por um motivo qualquer, alguém deixasse de localizar a sepultura (a carneira) do seu defunto, teria que se dirigir ao pé da Santa Cruz, e lá acender suas velas. Em torno dela estavam as manes desassistidas à espera de luz. Mas o Cruzeiro, o outro nome da Cruz, também era buscado por parentes que não queriam ter suas imagens vinculadas aos falecidos de mau caráter, os que jaziam fora do núcleo sagrado.
Ao fim das oferendas lúgubres ocorriam freqüentes incêndios. Porque à medida que as palhas dos cofos iam secando, tornavam-se combustíveis ao fogo por elas circundado. Mesmo sendo um evento facilmente compreensível, ainda assim, os fideístas preferiam explicar a queima sob o ponto de vista teúrgico.
Também eram corriqueiros relatos de bolas de fogo pairando sobre o cemitério. O povo acreditava que aquilo fosse diabrura de "curaganga" ou de almas penadas. Hoje, à luz da ciência, focos incandescentes assim, não passam de fogos-fátuos; fenômenos físico-químicos. Eles resultam da inflamação espontâneo do oxigênio atmosférico combinado ao metano, à cuja mistura dá-se o nome de grisu. O metano é expelido por matérias em estado de putrefação, muito comuns nos pântanos e cemitérios. Isto só aumenta as margens às especulações fabulosas.
Quando se extinguia a última chama, as pessoas procuravam-se para as saudações de despedida. Uma vez que, nem só para os mortos, mas para os vivos também, ali era um ponto de reencontro transitório, enquanto o permanente não lhes fosse imposto. Sacudida a poeira, todos batiam em retirada. Chegando a seus lares, o próximo passo seria rumo ao poço, onde tomavam banho de descontaminação. E, a quem desse um espirro, estava-lhe assegurado mais um ano como acendedor de velas, senão ele seria mais um inquilino do subsolo. Em se confirmando tal superstição, a longevidade seria algo sustentado por rapé e sinusite.

SIBOLISMO

A narrativa supracitada, ao bom discernimento, é muito reveladora em simbologia. Com efeito, nela podemos identificar elementos literários que determinavam a etnologia, ou aliás, o rojão daquela comunidade aldeã:
Religioso – o poder que a Igreja tinha de estabelecer a fronteira entre o bem e o mal, um claro reflexo do dualismo maniqueísta. E a própria adoração ao mortos que também tem um cunho religioso.
Moral – a questão da divisão entre as tumbas dos "imaculados" e as dos "pecaminosos". E ainda o tabu do sexo entre parentes consangüíneos.
Épico – as proezas dos cavaleiros que apresentavam suas armas num estilo medieval. Ele reproduziam, no íntimo, a ingenuidade dos heróis românticos na conquista da musa almejada.
Alegórico ou Fantástico – o boi-tatá ou fogo-fátuo que gravitava em ziguezague, nos arredores.
Sobrenatural – os cofos que ardiam em chamas sob influência dos espíritos.
Ditirambo – festa em honra ao deus Dionísio, marcada pela embriaguez coletiva, tendo o vinho como agente inebriante. Ditirambo era o apelido de Baco, deus do sexo e da orgia, entre os gregos. Por vezes, o deus do vinho era personificado em Enos. Aquela farra carnavalesca, embora remota, já era o primeiro ensaio para se chegar à atual geração drogada que prolifera a humanidade. Aqui, nesta crônica, a aura grega está manifesta nas atitudes dos cavaleiros grogues. É como se diz em  latim: "In vino Veritas", no vinho está a verdade, ou então, o álcool é o soro da verdade.
Conclusão: o cemitério do Alto São José era a continuação post mortem do modus vivendi, local. A diacronia corrói os valores. Atualmente, não há mais discriminação entre defuntos naquele Campo Santo. Mesmo porque, ora, até a polícia tem dificuldades para classificar: honesto, coonestado e desonesto. Nestes dias, morro e asfalto respondem nas mesmas proporções em número de delinqüentes.
Os costumes foram globalizados antes que a economia. Eufemismos e sofismas estreitam cada vez mais o antagonismo entre antônimos e sinônimos. Caminhamos para um mundo unipolar, qual o significado da palavra universo. Aquele cemitério continua sendo uma maquete dos parâmetros dos viventes, só que, hoje, sem cara, visto que a hipocrisia vai, paulatinamente, cedendo lugar à banalização.

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