Bem-vindo ao Portugal Paranormal. Por favor, faça o login ou registe-se.
Total de membros
19.424
Total de mensagens
369.458
Total de tópicos
26.916
  • Os míudos da escola onde trabalho em peça de teatro
    Iniciado por MissTiny
    Lido 2.732 vezes
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
'Perar' aqui é fazer sexo. E neste palco chamam-se as coisas pelos nomes que o público conhece e entende – e que utiliza no dia-a-dia – porque a peça é para a comunidade e se não chega a ela perde o sentido da viagem. A mensagem tem conseguido chegar sem atropelos nos sinónimos ao Vale da Amoreira, um bairro social no concelho da Moita, através do grupo ValArt, cujos actores são precisamente filhos e netos desta comunidade, porque nela nasceram e cresceram.

São um grupo de jovens entre os 11 e os 20 anos que se reúnem duas vezes por semana, durante três horas, para ensaiar como se fala sobre sexo para um público, seguindo a filosofia (e com o apoio) do Teatro do Oprimido, uma ONG que usa as artes do palco para estimular a participação activa dos cidadãos na construção (e modificação) da sociedade – através da voz de quem melhor a conhece. Há dois anos que é assim. Os interessados juntaram-se, foram treinados e começaram a longa jornada da escolha do tema da peça. "O Teatro Fórum é feito a partir das vivências deles e a questão da sexualidade foi sempre uma das opções por ser uma questão com que eles se preocupam e que conhecem. As questões que eles trazem são reais porque moram ao pé deles, porque existem no bairro", explica Susana Vilhena, uma das formadoras deste grupo.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

"Pensámos em vários temas mas aos finalistas chegaram a violência doméstica, o sexo, a sida e a gravidez adolescente. Escolhemos o sexo mas incluímos a sida e a gravidez porque percebemos que estava tudo ligado e que assim ficava mais completo", explicam quase em coro Gisela e Cassandra, ambas de 17 anos e as primeiras a chegar ao grupo. A peça não tem bolinha vermelha – mas será para maiores de 12 anos. Já perderam a conta aos ensaios e às apresentações. Mas não perdem a postura nem se retraem frente aos intrusos. As personagens falam de sexo adolescente sem tabus, encenam os mitos da virgindade e dos métodos contraceptivos, revelam os medos da primeira vez.

Os protagonistas, interpretados por Vânia e Adriano, são no palco um casal de namorados. 'Lúcio' quer 'perar', 'Márcia' não. Há as amigas dela – da mais experiente à menos entendida; Os amigos dele – 'Ainda não 'peraste'? Eu cá só 'pero' damas virgens'; O núcleo familiar onde o pai não existe e cuja mãe distingue o filho da filha em matéria de saídas à noite e sexualidade adolescente.

Tudo foram ideias por eles sugeridas, das falas às situações. "Nós falamos da maneira que eles [público] falam, é uma linguagem diferente da das médicas ou enfermeiras por isso as pessoas sentem-se à vontade", contextualiza Gisela, filha do Vale da Amoreira. "Conheço-os a todos desde pequeninos, moramos ao pé uns dos outros e crescemos aqui". Mas o teatro aproximou-os. Também porque juntos, seis horas por semana, aprenderam a falar de sexo. De 'perar', portanto.

Aqui, o politicamente correcto não existe – há os bons e os maus exemplos, os bons e os maus conselhos, "com o objectivo de pôr os actores e os espectadores a pensar sobre o que vêem".

DESINIBIDOS

Aqui não há frases cortadas com censura – 'Levas a tua melhor cuequinha, abres a perninha e deixas-te levar' – nem rostos corados de vergonha. Aqui também se levam ao palco os estereótipos deste e de outros bairros, destes e de outros miúdos. "Antes de fazermos a peça, se eu via uma moça com vários moços dizia logo: 'Essa aí é cachorra'", confessa uma Vanessa envergonhada.

A desinibida Cassandra concorda: "Imagina que esta cena da 'Márcia' era na vida real. Quando eu antes via uma moça grávida dizia que ela era cachorra sem saber o passado dela, sem a conhecer". Adriano, um castiço de 20 anos, assume idêntica posição: "eu cá ia logo dizer que o filho podia não ser do namorado porque ela de certeza tinha andado com muitos. Dizia que não tinha cabeça, mas agora já não discrimino". Adriano também nunca se tinha alguma vez imaginado numa consulta de planeamento familiar – todos os membros foram a uma para esclarecer dúvidas individuais e para ajudar a peça.

"Eu dizia que isso era para raparigas, que não era de homens. Até para pedir preservativos era a minha mãe que ia à frente no centro de saúde". Passou a vergonha mas diz que ainda há muito para mudar. "Há muitos pais aqui no bairro com uma mentalidade retrógrada". A peça também trata disso. Do que os vizinhos falam e comentam nas esquinas do bairro, da desonra sentida pelos pais – embora se trate de comportamentos que muitas vezes passam de geração em geração. Eles querem mudar isso.

A maioria namora e aproveitou o debate sobre sexualidade que a peça incentivou para falar sobre isso com os pares. "Ya, falei com o meu namorado sobre a peça e ele já nos foi ver", diz Gisela, com quem "os moços do bairro gozam, mas na brincadeira. Porque na peça faço de gajo e eles imitam as cenas que eu digo, como aquilo de só 'perar' virgens e tal. Mas até deram conselhos para ficar mais real". A namorada de Adriano "só não achou muita piada no início, porque tinha ciúmes de eu andar agarrado à Vânia".

ENSAIAR A VIDA

Mas nem só de 'perar' se fala nos ensaios. Há jogos de mímica e até uma variação do jogo do assassino – o jogo do líder. Também assim se desmontam estereótipos e preconceitos. A formadora pede que cinco dos jovens façam o retrato da família- -tipo do Vale da Amoreira – sem palavras. Os que ficam de fora têm de adivinhar quem são. "O pai é traficante, a mãe é empregada de escritório para disfarçar e a filha é mãe adolescente", concordam todos. Alguém grita: "e o Adriano é o empregado, que está a limpar o chão". Kiko, o benjamim do grupo, de 11 anos, contesta: "Mas como é que pode ser, se ninguém do Vale da Amoreira tem empregados?".

O grupo também os pôs à prova quando uma das raparigas ficou grávida. "Foi estranho. Já estávamos a falar de sexo para decidir como seriam as falas e de repente ela contou". O fim da peça de teatro que criaram é esse também – a 'Márcia' engravida. Mas neste palco dá sempre para voltar atrás – é o público que apresenta uma solução. Na vida, não.

"ISTO NÃO É OCUPAÇÃO DE TEMPOS LIVRES"

Susana Vilhena, 26 anos, do Teatro do Oprimido, é formadora do grupo ValArt desde o início, 2008. "As coisas levam o seu tempo, tudo isto é um processo em que quanto mais aprofundarmos o trabalho, maior é o raciocínio. A ideia é que os públicos com quem trabalhamos se apropriem desta técnica e se tornem eles próprios formadores no Teatro Fórum".

Foi o que aconteceu com Reginaldo Spínola, de 23 anos, que começou por ser actor no grupo da Cova da Moura, do qual é líder, e é hoje também formador. Susana reforça que isto não é só teatro. "Isto não é ocupação de tempos livres. É empowerment comunitário – o objectivo é que a discussão dos temas comece no grupo mas chegue à comunidade. Por isso é que no Teatro Fórum, no fim do espectáculo, os espectadores são chamados a apresentar soluções para os problemas que aparecem. Do género: 'Anda, vem tu tomar uma atitude, não sejas passivo, não fiques só a ver'".

NOTAS

'X-PERAR'

É o nome da peça. 'X-Perar' significa esperar pelo momento para 'perar'. Uma dualidade de vontades.

BAIRROS

Grupo de Teatro do Oprimido existe desde 2005 – "e desenvolve o trabalho nos bairros críticos".

JOVENS

Têm entre 11 e 20 anos e reúnem-se na Escola Secundária da Baixa da Banheira, no Vale da Amoreira. São todos estudantes.

PARCERIA

Com as associações dos bairros. "Não é chegar ao bairro e dizer: 'Meus amigos venham cá fazer teatro que é muito giro'".

Fonte:CM