Depois dos últimos pingos de chuva - Bernardo Soares

Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir. Passeava de um lado ao outro do quarto e sonhava alto coisas sem nexo nem possibilidade — gestos que me esquecera de fazer, ambições impossíveis realizadas sem rumo, conversas irmes e contínuas que, se fossem, teriam sido. E neste devaneio sem grandeza nem calma, neste atardar sem esperança nem fim, gastavam meus passos a manhã livre, e as minhas palavras altas, ditas baixo, soavam múltiplas no claustro do meu simples isolamento. (...)
E, com as mãos nos bolsos do casaco póstumo, eu fazia a avenida do meu quarto curto em passos largos e decididos, cumprindo com o devaneio inútil um sonho igual aos de toda a gente. (...)
Era ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente.

Bernardo Soares in Livro do Desassossego

Lindo texto desse livro fabuloso. 

Quantos de nós nos sentimos trapos húmidos deixados esquecidos algures ?
Quantos de nós vivemos numa ânsia desconhecida, numa falta da sensação de estarmos vivos ?

lindo, puro, verdadeiro.

Já sentia falta desta tuas partilhas

Até eu sinto falta às vezes...
Estas palavras preenchem-me

Bolas Sara, estas são palavras que caem como uma luva!
Obrigada por partilhares!

Obrigado pela partilha!