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  • Nesta história a Coragem chama-se Júlia Santos
    Iniciado por cepticooucrente
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Corria o ano de 1971. Júlia, com 27 anos, exercia as suas funções profissionais de secretária e estava reunida com o seu chefe de então quando o estafeta da empresa interrompe a reunião:

– Menina Júlia, estão ali uns senhores que querem falar consigo e dizem que estão com pressa.

Júlia, que na clandestinidade lutava por um Portugal livre, que tinha estado na criação da intersindical e que já levava com anos e anos de uma luta que teimava em não acabar, nem desconfiou. Como andava no sindicato a negociar o contrato dos trabalhadores da IBM, olhou para os sete homens e achou que eram dessa empresa.

– Júlia Sousa? – pergunta um deles. Júlia responde:

– Não, Júlia Santos.

Ao que o mesmo inquire:

– Empregada do sindicato?

– Não, dirigente sindical.

Nesse momento, ele mostra-lhe o crachá da polícia. Júlia sai do seu trabalho com os sete homens a escoltá-la. Primeiro vão ao quarto que tinha alugado e onde vivia. Remexeram e viraram-no de pernas para o ar. Depois, levaram-na para a Rua António Maria Cardoso. Aí foi despida e revistada sem dó nem piedade, numa invasão total do seu corpo que mexe com a dignidade de qualquer pessoa. De seguida, foi enviada para Caxias para o isolamento. Seguiram-se sete dias de tortura do sono e mais três meses de isolamento. Foi julgada e condenada a 16 meses de prisão que cumpriu na íntegra. Nunca entregou ninguém. Nunca falou do seu sindicato. Nunca deu pormenores. Quando saiu, não era mais a rapariga que tinha entrado. Pausa para respirarmos e voltarmos um pouco atrás. Quem nos lê sabe o que é a tortura do sono? Hoje, passadas mais de quatro décadas dos acontecimentos, Júlia ainda possui o sistema nervoso central alterado. Treme constantemente e os sons repetitivos mexem com ela. O simples bater de uma porta provoca-lhe calafrios.

Quando uma pessoa não dorme, a cabeça estoira por dentro. É um desatino completo. Não se sente. A dada altura a dor é a de não se sentir um ser humano. E a ausência desse sentir é uma dor maior do que qualquer outra. É vácuo. É a inexistência viva. Há qualquer coisa no não dormir que mata o cérebro, que dilacera a pessoa, que rebenta com a cabeça como se fosse uma castanha assada «Depois, no fim da tortura do sono, quando nos permitem dormir, já não conseguimos. E a verdade é que nunca mais conseguimos dormir em condições», afirma.

Júlia nasceu numa aldeia perto do Vimeiro. Ficou órfã de mãe tão cedo que não se recorda dela. O pai refaz a vida com outra mulher. Leva a filha com ele para Peniche onde vive desde os 4 anos de idade. Nunca lhe falta nada em casa, mas ela cedo se incomoda com as crianças que têm de fazer quilómetros, algumas descalças, para irem à escola. Outras vão com fome. Júlia não entende que país é este que não cuida das suas crianças. O pai era um republicano convicto que tinha apoiado Norton de Matos. Júlia vai para Lisboa trabalhar e aí envolve-se verdadeiramente nas lutas políticas que se faziam pela calada da noite, entre segredos e cochichos diários, em pleno Estado Novo. Revolvia-lhe as entranhas as condições dos trabalhadores. Quando foi para dirigente cineclubista, os seus olhos ainda se abriram mais. «Um dia estava a organizar um colóquio sobre a origem da música Jazz e a PIDE arrancou tudo o que era cartaz impedindo-nos de chegar à cultura, ao debate. Aquilo não me fazia ter medo, pelo contrário, dava-me, se possível, ainda mais força».

Durante os 16 meses em que esteve presa, o que de físico restava da Júlia, foi-se aguentando de forma débil, sob uma cabeça cansada mas sem dar mostras de arrependimento «Só queria que os trabalhadores tivessem condições, só queria que as crianças tivessem acesso à educação, como poderia estar errada? Onde pode estar o erro nisto?» Um dia o pai foi vê-la. Aqui assomam as lágrimas aos belos olhos esverdeados de Júlia «Quase não falámos. Ficámos ali calados, um frente ao outro. A dada altura interrompi o silêncio para dizer 'Pai, daqui não vejo o mar de Peniche, mas ainda consigo ver o Tejo de Lisboa', mas o meu pai nem respondeu».

Quando sai da prisão de Caxias, Júlia vai passar uns dias à sua antiga aldeia. Lá vai dar uma volta de mota com um amigo. Nos pés levava umas socas. Em andamento o pé direito mete-se nos raios da roda da mota e começa a dilacerar-lhe o calcanhar. Júlia não sentiu dor. Apenas sentiram que a mota começava a soluçar, como se tivesse um pneu furado ou algo do género. Quando pararam, viram o estado do calcanhar e foram para o hospital. Quando a iam tratar, a irmã de Júlia entra de rompante e de forma ingénua diz «coitada da minha irmã, acaba de sair de Caxias e agora acontece-lhe isto». O médico olha-a e muda de atitude. Perante uma prisioneira, resolve tratá-la sem anestesia e, curiosamente, a ferida infetou a ponto de provocar uma deformação definitiva no pé. A Amnistia Internacional intervém levando-a para a Suíça. Três meses depois regressa. «Tinha de estar no meu país. A minha luta era aqui, não era na Suíça. Fui contatada para retomar a luta na clandestinidade, mas disse que não porque primeiro tinha de recuperar um pouco melhor do estado em que me encontrava». Entretanto, Júlia engravida e o filho nasce um mês antes do 25 de Abril. A vida continuou. Júlia sorri de uma forma incrivelmente serena. Olha-me e vai dizendo que não fez nada de mais. Pergunto se, sabendo o que lhe custou, voltava a fazer tudo de novo. E a última coisa que me diz é «pelo meu país? Claro que sim, sem a mínima sombra de dúvida».

Carla Rocha

Porque histórias destas têm mesmo de ser partilhadas... porque todas as homenagens nunca são suficientes para reconhecer o que estas pessoas fizeram por nós.

É pena que estes "guerreiros" sejam simplesmente esquecidos.
O ser humano é demasiadamente egoísta para sentir gratidão, por isso cepticooucrente, obrigada pela partilha e homenagem à Júlia Santos!
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334

Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

Se fosse a história de um jogador de futebol famoso  e cheio de dinheiro toda a gente conhecia, mas como se trata de uma história cuja a personagem não tem não sei quantos milhares no banco ninguém quer saber....

Tristeza...

Obrigado pela partilha
I see now that the circumstances of one's birth are irrelevant, is what you do with the gift of life that determines who you are"

Citação«pelo meu país? Claro que sim, sem a mínima sombra de dúvida»

mesmo por aqueles que não merecem...

foram estes "anónimos" os verdadeiros heróis que nos deram a liberdade... que entretanto nos tem vindo a ser retirada aos pouquinhos por estes parasitas que se aproveitaram da situação e nos governam desde então...

Obrigado pela partilha, bom tópico
a minha religião é a verdade...

Uma vénia faço á guerreira Júlia e a todas e todos que, como ela, lutaram e continuam a lutar.

Não me trates por VOCÊ!!!
Respeito mais tratando-te por TU do que tu a tratares-me por VOCÊ!