Bem-vindo ao Portugal Paranormal. Por favor, faça o login ou registe-se.
Total de membros
19.509
Total de mensagens
369.625
Total de tópicos
26.967
  • Vida de Matrioskas - O Mundo nas Mãos
    Iniciado por cepticooucrente
    Lido 1.309 vezes
0 Membros e 1 Visitante estão a ver este tópico.
A "maldita", como lhe chama, é a droga que, infelizmente, entrou no lar desta mãe. Chovem lágrimas de dor. A certeza de que todas as experiências podem ser o fim de uma vida. Mesmo quando o mundo nos cabe nas mãos.



Lá fora, chove. As gotas acumulam-se no vidro do teu quarto e eu, na tua cama, embarco em lembranças que me consolam da tristeza destes dias que, sendo ímpares ou pares, nada têm de diferente. Desde que te foste. Desde que já não estás aqui. Mesmo aqui.

Fixo o olhar na matrioska que trouxeste da Rússia há dois anos. Pensando bem, a boneca russa manteve-se sempre no mesmo sítio, estrategicamente colocada entre as enciclopédias de arte que tanto apreciavas. Lembro-me que quando chegaste da viagem me disseste que o ser humano era uma matrioska em construção. Indignei-me com os teus comentários requintados e não te dei a devida atenção. Talvez, agora ao olhar da luz, me aperceba de que os teus pequenos sinais de indiferença eram apelos captativos à minha ávida vontade de controlar tudo o que me rodeava.

Tinhas razão, meu querido. Desenrosco uma boneca da outra. Mais uma. Outra. E, por fim, a última. Pequenina, simples; tão suave que quase dá vontade de acalentar no colo e de abraçar. Aquele abraço que ficou por te dar. Recordo também que passavas, no início, muito tempo a falar da maneira como estas lembranças russas eram feitas. Falavas sempre com perícia, manipulação de gestos, entusiasmo, vontade. A arte de te expressares que sempre foi marca em ti.

Eras jovem. Anos de luz e ao serviço de mil e um desejos. Recuso-me a ver o futuro. Lá, onde estiveres, manterás os teus vinte e quatro anos e a tua sede de viver a descoberta incessante. Quase que sinto o teu beijo no meu rosto e a sussurrares-me ao ouvido "dorme em paz". E, na verdade, é agora por ti que nem sonho em adormecer. Nada me separará das tuas lembranças. Dou por mim a cair de cansaço entre os teus lençóis e a acordar com lágrimas que, em breve, não passarão de presença marcada no meu rosto frágil.

Olhos firmes, verdes, cor de céu vibrante em lírios de alegria. Alto e magro, de porte sereno. Sucessos de mil tons e orgulhos que nunca soube agradecer. Sinto agora, já tarde, que nunca te elevei um obrigado pelos sorrisos que me proporcionaste. A realidade é que nenhuma pessoa precavia um cenário destes; uma dor tão profunda e uma revolta tão grande nas teias deste mundo veloz que te arrancou de mim ferozmente.

Eu não suspeitava. Os teus amigos não acreditavam e tu, só tu, vivias essa luta entre o bem e o mal; entre o querer e o deixar; entre ti e o mundo. Foi ela (e recuso-me a dizer o nome!) que te levou a um hospital, que me fez ver-te entubado, incapacitado de respirar. Sei que abriste os olhos quando estava sentada ao teu lado, naquela cadeira cor de laranja. Não acreditam em mim, mas não foram alucinações. Bem sei o que digo. Olhaste-me quase a pedir ajuda e, nesse momento, gritei, gritei...e gritei tanto que não ouvi o teu último suspiro. O da paz. O que te conduziu ao Céu. A um Deus que te levou sem eu entender. Injusto. Todos podiam ir, eu mesma, menos tu.

Morreste. Quatro horas depois de teres sido encontrado nas escadas do jardim a tua vida terminou. Assim, sem nada nem por nada. Como que por magia tu deixaste de existir, eu deixei de acreditar e o mundo desabou entre nós. Neste momento não grito. Não tenho forças nem me aliviam os berros desmedidos.

E eu sei que não foi "ela" que te matou. Não foi esse pó destruidor e incapaz de trazer felicidade. Não foi a detentora, a cruel, a demolidora. Foi o sangue que corria em ti. Foi a vida que tu querias percorrer a passos largos; foi a tua coragem de, como matrioskas, te desencaixares do que eras, passo-a-passo, e recomeçares. De um tamanho ao outro, de uma forma à outra, extensivamente ambivalente esse teu querer.

Recordo, neste instante piamente massificador, como me dizias muitas vezes que gostavas de passar a vida a calcorrear percursos. Nunca te entendi bem e, ingenuamente, pensava que a idade dar-te-ia a paz e a serenidade que tanto falta a alguém na flor da idade. Erradamente enganada. E como isso me entristece. Muito. É a dose de culpa a denotar-se no meu rosto gelado e num corpo que se apresenta em fragmentos – entre a vontade de gritar constantemente e de silenciar esta voz que sustenta um corpo que já não quer existir.

Sempre foste diferente. O teu silêncio era sempre o teu escape de dúvida e de encontro. Entendo-te tão bem agora. Nem tu sabes como. Sabes, filho meu, ainda me deito a ouvir o teu sorriso e a sentir os teus paços no corredor escuro, quando, pé ante pé, te ias deitar fora de horas. E como as tuas gargalhadas eram vivas, cheias de sol e de garra; quase que esvoaçavam entre ti de um modo brilhante.

Agora, nesta dor, já nada vale. Compreendo que o teu desejo de vibrar neste mundo levou até ti a vontade de experimentar a maldita. Em doses erradas, em momentos incorretos, tudo aconteceu pelo pior. Não te culpo e também não desconfio um minuto de ti, pois bem sei que apenas querias viver esse momento e nunca mais o repetir. Não, não te recrimino e não me zangarei contigo. Aliás, de que me valeria isso? Perder um filho e zangar-me com ele... ridículo, não é?

E agora, sim agora, quem é que me vai ligar e perguntar como estou; quem é que me vai dar um beijo na testa; quem é que vai ser alma neste mundo escuro?

E se eu te pedir muito, muito, mesmo muito, para voltares pelo menos umas horas? Só para te dizer que fizeste toda a diferença neste mundo onde todos são amados mas pouco recordados. Dizer-te que és a água viva, a fonte que brota a paz em mim. Volta. Vem.

Sabes, junto à tua fotografia estará sempre esta matrioska... para a qual não me canso de olhar. Sei o quanto simbolizava para ti. Era a vida em momentos, em construção, em etapas, em crescimento. Eras tu figurado. Eram os teus encaixes, plenos de sementes a brotar num chão vivo.

Entendo, hoje, que só morre o que está para além do entendimento. E, por mais que me custe, entendo a tua sede de desbravar mundo. Era o teu caminho e, como te prometi à nascença, acompanhar-te-ei sempre. No céu, talvez, em breve.

Morreu, esta mãe, dias depois. Morreu de amor. Ainda se morre por amor!



João Baptista

Muito triste.

Fez-me lembrar a Krokodil a droga que "come" os consumidores..

ATENÇÃO este vídeo tem cenas muito chocantes. Se for sensível NÃO VEJA:

https://youtu.be/AtFCSdVK4xM
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334