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  • Olha para o lado
    Iniciado por cepticooucrente
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Na creche onde andava o Salvador ninguém gostava da mãe dele.

Todas as manhãs Maria do Carmo parava o Mercedes à porta do colégio e entrava para deixar o filho. Sempre elegante, bem vestida e cheirosa despedia-se dele à porta da sala com um longo abraço e muitos beijinhos e voltava a sair. Se encontrava a educadora era seca e breve na conversa e nunca se detinha em trocas de impressões com outras mães, que a consideravam pedante e antipática. A meio da tarde, fresca e linda como se o dia se tivesse esquecido de passar por ela, lá ia ela buscar o filho que corria para os seus braços assim que a via assomar à porta da sala. E saía no mesmo registo distante.

Arrogante, diziam umas. Tem a mania, diziam outras.

Nas festas da escola era quando o marido aparecia. Alto, engravatado, bem constituído, bonito e sorridente, encostava-se com a mulher num canto do salão e não trocavam uma palavra com ninguém, apenas um cochicho cúmplice e esporádico entre eles. A presença do casal suscitava sempre suspiros nas mulheres, pensamentos menos decentes nos homens e alguma inveja em todos eles.

Certa tarde, quando regressava a casa, Maria do Carmo teve um acidente. Nada de grave. Numa rotunda, a carrinha à sua frente travou subitamente e ela, distraída que ia nos seus pensamentos, reagiu tarde demais. Depois de verificar que estava tudo bem com o filho e consigo, saiu do carro para verificar os danos e acertar os detalhes do seguro com o outro condutor. Estava muito nervosa e isso refletiu-se nos seus modos e nas ofensas que dirigiu ao senhor contra cujo carro tinha esbarrado.

O assunto resolveu-se, mas atrasou-a e acabaram por chegar a casa mais de uma hora depois do habitual. O Mercedes entrou no portão do condomínio, com os grandes pneus a fazerem estalar as pedrinhas do caminho de acesso à moradia, despertando a atenção do jardineiro, que um pouco adiante regava o relvado comum.

O carro do marido já lá estava. Sem acordar o filho, que dormia na cadeirinha no banco traseiro, Maria do Carmo estacionou em frente da garagem e entrou em casa. Ao vê-la passar, o jardineiro mirou-a e apreciou a sua beleza.

Pouco depois Maria do Carmo surgiu de novo. Vinha um passo atrás do marido, que parou em frente do carro e cruzou os braços enquanto avaliava a amolgadela perpetrada pela esposa. Visivelmente irritado, ele gesticulava e fazia perguntas, visivelmente nervosa ela acenava e respondia. A certa altura ele voltou-se para ela, avançou o passo que os afastava e, sem mais uma palavra, enfiou-lhe uma bofetada que lhe projetou a cabeça contra o muro. Avançou um passo mais e logo desferiu outra que a deixou caída no chão.

Perante aquilo, o jardineiro paralisou, sem conseguir desviar o olhar.

Ao lado do carro, no meio da rua, o marido, instigado por uma fúria descontrolada, apenas comparável, talvez, à fúria de um homem que vingasse a morte de um filho, desferia pontapés a eito sobre a mulher. Sobre o peito, pernas, cabeça e rosto da mulher.

Mas quanto mais o marido lhe batia, mais envergonhado o jardineiro se sentia por estar a olhar.

Sentia que estava a intrometer-se na intimidade conjugal, que aquilo era a vida deles, que não devia estar ali.

Um movimento dentro do Mercedes desviou-lhe a atenção. Preso à cadeirinha, o pequeno Salvador chorava e gritava sem que alguém o escutasse ou prestasse atenção.

Impotente, perturbado, sem saber o que fazer, o jardineiro afastou-se.

Nessa noite jantou com uns amigos e, enquanto contava esta história, chorou. Devia ter feito alguma coisa, devia ter ido lá, devia ter salvo aquela mulher e aquela criança. Devia ter morto aquele monstro. Mas não fez. Não foi. Não salvou. Não matou. Nem sequer chamou a polícia.

Nessa noite, o jardineiro não dormiu.

Assim que o dia nasceu o jardineiro preocupado plantou-se de novo a regar o relvado comum. Precisava de ver que estava tudo bem, que tinha ficado tudo bem. Esperou.

Às nove em ponto, bem vestida, bem cheirosa e bem maquilhada, Maria do Carmo entrou no Mercedes e foi levar o filho à escola.

Marta Elias

sofiagov
cepticooucrente, iria  pedir-te para não escreveres os títulos com Maiúscula...
eu já modifiquei neste e noutros tópicos.
obrigado ;)



Peço desculpa, fiz copy/paste das notícias e não reparei... vou ter em atenção. ;)

Infelizmente os portugueses ainda sofrem dessa mentalidade estúpida de que "entre marido e mulher não se mete a colher"...

Que história que trouxe aqui! Infelizmente, estas situações, hoje em dia, não são novidade. A grande questão que se tem colocado é saber porque razão conseguimos ficar impávidos e serenos perante a dura realidade de certas vivências?

Será mesmo a sombra do ditado popular - "entre marido e mulher não metas a colher" - que nos impede de fazer alguma coisa? Não acredito. Acredito no grande egoísmo do ser humano... "desde que não seja comigo"... e até chegamos ao cúmulo de "ficar a olhar"... é lamentável!

Por outro lado, é importante compreender porque razão estas mulheres (e tantos homens, também) se deixam manter neste tipo de dinâmica conjugal extremamente disfuncional, destruídora e, muitas vezes, aterradora? Se bem que um episódio possa não criar padrão de comportamento... a porta ficará, certamente, aberta...
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334

Citação de: Faty Lee em 11 fevereiro, 2015, 13:44
Por outro lado, é importante compreender porque razão estas mulheres (e tantos homens, também) se deixam manter neste tipo de dinâmica conjugal extremamente disfuncional, destruídora e, muitas vezes, aterradora? Se bem que um episódio possa não criar padrão de comportamento... a porta ficará, certamente, aberta...

Concordo, para quem está de fora, torna-se difícil compreender a razão das vítimas aguentarem este tormento anos a fio, culminando muitas vezes (e cada vez mais), na morte.
Se reparar, este padrão de comportamento, começa sempre com um episódio... depois pedem desculpas muito meiguinhos, alimentando uma falsa esperança, depois outro estalo... enfim, uma bola de neve... vermelha. E preta. E roxa. E inchada. :(

Infelizmente as pessoas continuam a julgar as pessoas pela aparência. Este é um dos costumes que mais me mete nojo neste país.

Entre marido e mulher não se põem a colher, percebo, mas neste caso?! Por favor quando se vê alguém ser agredido, ainda por cima de uma forma tão brutal acho que faz parte do bom senso comum intervir e travar a situação.
I see now that the circumstances of one's birth are irrelevant, is what you do with the gift of life that determines who you are"