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  • Contos, Lendas e Lucubrações
    Iniciado por lly0d
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Saudações a todos, como prometido, aqui fica a lenda da cruz de uma mão carinhosa que mensalmente muda as flores! :)
Este livro foi-me oferecido e existem 500 exemplares, autor é Adriano Ferreira.

Todavia, os contos O leproso, O Foragido e Os Pai do Presidente, foram inspirados na obra de Armando Monteiro da Câmara Pereira, Pedras de Santa Maria, editada em 1969, pessoa por quem nutri grande consideração e que, talvez, esteja na base da minha vida apetência para escrever, motivo pelo qual entendi chamar a atenção para a pertinência de nova edição da sobredita obra de Armando Monteiro, onde se podem ler várias lendas e alguns factos históricos da Ilha de Santa Maria, a fim de preservá-los devidamente. Infelizmente não encontrei nenhum exemplar na Internet para vós mostrar capa e contra-capa, mas caso estejam interessados de mais, irei postar novas lendas da ilha, obrigado pela atenção e compreensão.

                             
           
                                                                              Contos, Lendas e Lucubrações
                                                                                       (Ilha de Santa Maria)
                                                                                             O leproso

A meia encostada Serra Verde, onde se delimitam as duas freguesias de Santo Espírito e Santa Bárbara, das três que ficam situadas aquém dos Picos (Assunção, São Pedro e Almagreira), existe uma pináculo, entre as urzes rasteirinhas que, em parte a ocultam, uma pequena cruz de pedra coberta de musgo, ali colocada há séculos dando o nome ao lugar onde está implantada.
Os viandantes que não se preocupam com "velharias", embora estas recordem certos factor que marcaram uma época ou um acontecimento digno de ser rememorado, passam adiante, sem lhe despertar a curiosidade de saber o motivo da sua presença naquela sítio.
Outros, porém, de mais refinada sensibilidade, não deixarão de o investigar, quer por leitura de livros de história, quer interrogando pessoas sabedoras, que os possas esclarecer.
Então, estes últimos ficam conhecendo que, naquelas redondezas, algumas décadas depois do povoamento desta ilha, se desenrolou um drama comovedor, ainda não de todo esclarecido por marienses de certa idade ou por tradição de família.


O leproso, olhou em derredor. Naquele exíguo, isolado e húmido quarto, onde o tinham instalado no hospício de Vila do Porto, apenas uma lava mãos, uma cadeira desconjuntada e a enxerga, onde dormia, com o respectivo bacio debaixo, eram o mobiliário, que o compunha, Para ele, porém, era um luxo a que não estava habituado.
Sempre fora pobre e o facto de o terem acolhido, tinha sido grande caridade e uma prova de bondade de Deus, a Quem, contrito, agradecia, sem saber ao certo se lograria perdão.
Nos últimos tempos, pensava amiúde em Deus, o que nunca acontecera na sua mocidade, visto que a ignorância, rudeza e indigência, não lhe permitiam pensar em nada que não fosse a sua pessoa e a respectiva subsistência.
Os pais tinham-lhe morrido, quando ainda era muito novo e ficara sozinho no mundo, Para sobreviver, trabalhava, lá de quando em vez, para os lavradores mais abastados da freguesia, que o chamavam para os serviços mais sujos. Fazia tudo quanto lhe mandavam, como limpar pocilgas, desentupir fossas, cavar um quintal ou carrear sacos de trigo ou milho, a troco de míseros vinténs ou de um naco de pão, que lhe permitisse a subsistência daquele dia, Muitas vezes abusavam dele mas aceitava esses abusos, visto que a alternativa era passar fome.
Dormia no tugúrio, que fora a casa dos pais, único abrigo que possuía e, em certa medida, o livrava das intempéries em noites invernosas.
Sem eira nem beira, percorria Santo Espírito de lés a lés, à procura de algo que lhe matasse a fome. Misantropo por natureza, não tinha amigos e a sua figura andrajosa provocava nos outros certa repulsa e algum receio, pois sabiam que, para se alimentar, não hesitava em roubar o que quer que fosse. Tudo lhe servia, desde uma tenra maçaroca de milho, a amoras silvestres, figos de figueira ou figos de cactos, a que se convencionou chamar torneiras em Santa Maria ou qualquer fruto de pomar não vigiado, que roubada fugindo a sete pés, não fosse o diabo tecê-las a ser apanhado.
Para o seu casebre, levava os excedentes, depois de se saciar, que lhe servia, quando a fome apertava novamente.
Olhou-se com atenção. Do corpo podre, a carne caia-lhe aos bocados e o desgraçado percebia que o fim devia estar muito próximo. A doença atingira-o há pouco mais de um ano e rapidamente as pústulas e escamas começaram a alastrar-se por todo o corpo. Começaram a cair-lhe a ponta de quase todos os dedos, gangrenados das mãos e dos pés e o nariz quase lhe desaparecera, bem como as pestanas e as sobrancelhas. A cor avermelhada do rosto, onde tumores e fístulas abundavam, davam-lhe um aspecto monstruoso e repugnante.
Só à hora das duas frugais refeições que lhe levavam, via a mulher de meia idade, que o servia, sem quase lhe falar ou se aproximar dele. Deixava-lhe a comida sobre a cadeira e retirava-se pressurosa, não fosse o mal atingi-la. Apenas lhe permitiam um pequeno passeio no lado direito do fim do quintal hospício, em cuja fossa a céu aberto despejava os excrementos e a urina lavando, depois, o bacio numa pequena pia, também situada no fim do quinta, propriedade exclusiva dele, pois mais ninguém se atrevia a servir dela, desde que ali chegara. Só nessa altura, respirava o ar puro e desfrutava da paisagem quase desoladora que o circundava. E, se porventura ficava mais um bocado, não faltava logo quem o chamasse autoritariamente, a fim de se recolher.
No seu cérebro febril, bailavam-lhe as ideias díspares, enquanto se mantinha acordado. À noite, quando conseguia conciliar o sono, assaltavam-no, por vezes, os mais horríveis pesadelos. Não conseguia deixar de sonhar com a cara angelical da pastora Ana, por quem nutrira há muitos anos, que já nem sabia a conta, uma funesta paixão.
Quase todas as noites, os olhos dela, horrorizados, dardejavam-no acusadores. E cada vez que isso acontecia, acordava sobressaltado e encharcado em suor. Aguilhoado pelo remorso via, em cada dia que passava, cair-lhe mais um bocado de carne putrefacta.
Naquela noite, ao acordar em agonia, levou as mãos à cabeça e puxou os cabelos, que se desprenderam do couro cabeludo com terrível facilidade. Compreendeu, sem esforço, que a morte estava próxima e consequentemente, o seu martírio também estava perto do fim. Mas não se importava, Se Deus lhe perdoasse o nefando crime que cometera, dava por bem empregado todo o sofrimento dos últimos tempos. Tinha, porém, a impressão que estava para sempre condenado a arder no Inferno.
Tapou a cara com as mãos e derramou lágrimas pungentes, ao evocar aquela tarde horrível. A pouco e pouco foi acalmando e uma ideia começou a tomar forma no seu cérebro conturbado.
Com o olhar fixo na escuridão do quarto, viu os primeiros raios da alvorada entraram pela minúscula janela. Foi como um despertar do letargo em que se mantivera durante grande parte da noite. A decisão estava tomada !....
E quando a mulher lhe veio trazer a primeira refeição do dia, o leproso disse:
- Quero um padre! ...

Viu-a pela primeira vez à saída da missa. Naquele domingo, tinha ido para o adro, a fim de ver sair as raparigas e também para botar fala com um ou outros rapaz da sua idade, tão pobre e necessitado como ele. E havia sempre alguém com que trocasse dos dedos de conversa e o pusesse a par das novidades e das raparigas casadoiras.
Mas não eram amigos. Eram desgraçados como ele, que também necessitavam de algum calor humano.
Embora andrajoso e vagabundo, não percebia que a sua situação era um pouco propícia a arranjar quem com ele se quisesse consorciar. A sua juventude e condição humana clamavam por companheira e o rapaz entendia que mais dia, menos dia, havia de encontrá-la.
Os seus olhares encontrara-se e o pobre diabo ficou como hipnotizado com a beleza da rapariga, que rapidamente desviou o olhar tomou caminho de casa, na companhia dos pais.
Ficou parado no meio do adro, até vê-la desaparecer. Depois, dirigiu-se a outro desgraçado e perguntou-lhe o nome dela.
A partir dessa altura, Ana - assim se chamava a bela pastora - tomou-lhe o pensamento de tal maneira que uma paixão sem limites se acendeu naquela alma rude.
Durante a semana, deitava-se no casebre, mesmo de dia, e ficava horas a pensar na moça, masturbando-se várias vezes, até o cansaço o vencer.
O louco amor que ela lhe despertara levava-o, agora, todos os domingos para o adros da Igreja, onde esperava com a manifesta impaciência, pela saída da missa. E quando ela aparecia, mesmo que viesse no meio dos pais, olhava-a disfarçadamente mas com tal penetração que a rapariga lhe sentia o olhar incendiado pela paixão. Então, baixava a cabeça corando cheia de receio, não fossem os pais ou pessoas conhecidas perceber as intenções do andrajoso, cujo olhar cada vez mais a incomodava.
Ao vê-la a corar tão intensamente, o rapaz interpretava esse embaraço como prova de interesse que lhe despertava a jurava a si mesmo que lhe havia de falar. Só esperava a oportunidade para tal. Mas a oportunidade tardava e as semanas foram passando, sem ele lograr os seus intentos.
Não havia maneira de Ana se deslocar sozinha à missa ou de encontrá-la pelo o caminho, pois o Inverno rigoroso impedia a rapariga de sair de casa. Mas ele não desistia e todos os dias passava defronte da casa dela, a ver se a avistava.
Regressava ao casebre cabisbaixo, ensimesmado na sua obsessão, que crescia de dia para dia, enquanto lhe minguava a esperança de encontra-lá sozinha, primordial objectivo da sua desgraçada vida.
Roubando aqui, pedindo acolá, servindo este ou aquele, quando a isso era chamado, o rapaz nem se importava com qualquer aspecto da sua imagem, descuidando em absoluto qualquer tipo de higiene, que, na verdade, nunca fora muita.
Cada vez mais se afastavam dele, pois do corpo sujo exalava cheiro nauseabundo difícil de suportar.
E o tempo foi passando ! ... Quase no fim do Inverno, finalmente, a oportunidade, por que tanto esperara, surgiu-lhe. Ana entrara na Igreja sozinha. Por qualquer razão desconhecida para ele, os pais não a acompanhavam. Era agora ou nunca!
Esperou impaciente que os sinos repicassem, levantando a Deus e quando os ouviu, desceu as escadas do adro e meteu-se a caminho que sabia ia dar à casa de Ana. A meio da viagem, nunca curva sinuosa, parou e esperou escondido atrás de uma árvore.
Pouco depois, avistou-a. Baixando-se, deixou-a passar e então, estugando o passo apanhou-a, pondo-se à sua frente e quase a obrigando a parar para lhe fazer a declaração mais rude e ridícula, que imaginar se possa.
Horrorizada e com o coração aos saltos, a rapariga olhou-o e arranjando forças na sua ridente juventude, quase lhe gritou : - "Deixa-me nojento !", pondo-se em fuga, algo contínuo.
Perplexo, ficou parado a vê-la afastar-se. Não conseguia entender tão brutal recusa. Era como se lhe tivessem dado com um cacete na cabeça. A pouco e pouco, as ideias foram-se aclarando e o infeliz percebeu, então, toda a sua desventura.
Regressou ao casebre e deitou-se sobre a palha, assaltado por um turbilhão de ideias, que não conseguia afastar.
Horas depois, o estado febril em que se encontrava, obrigou-o a levantar-se, a fim de saciar a sede que o consumia. Pegou no sujo púcaro de barro, onde tinha ainda alguma água e bebeu até se fartar, Era a maneira como ele muitas vezes enganava a fome que o afligia.
Deitou-se novamente e assim se manteve o resto do dia e quando os últimos raios de sol foram engolidos pela escuridão, não conseguiu conciliar o sono, ficando acordado quase todo a noite, em elucubrações terríveis.
Progressivamente, uma raiva surda se foi apossando dele. Agora, invadia-o um desejo enorme de vingança
Havia de possuí-la fosse de que maneira fosse nem que para isso tivesse de usar a força. Mas como ? ... Como iria  encontrar oportunidade para satisfazer a sua paixão e vingar-se ao mesmo tempo ?...
E logo naquela noite, um plano maquiavélico começou a formar-se no seu cérebro conturbando e jurou a si mesmo pô-lo em prática tão depressa se lhe deparasse ocasião.
A partir daquela altura, todas as manhãs se levantava cedo, a ver se a avistava. Mas nunca se aproximava da casa dela e menos ainda pela estrada, não fosse Ana descobri-lo. Saltava as paredes dos cerrados que serviam de pasto ao gado e trepava a um cômoro, onde deitado no chão só a com a cabeça de fora a podia vigiar sem ser visto ou escondia-se atrás de uma árvore, a uma distância conveniente, num lugar estratégico, onde pudesse divisá-la.
Nem a chuva nem o vento o impediam. Obcecado como estava, nada era obstáculo. E quando porventura a avistava, nalguma tarefa no exterior da casa, ficava como fascinado, seguindo-lhe todos os movimentos, até a rapariga reentrar. Voltava, então, para o casebre, deitando-se na enxerga, que lhe servia de cama ou no monte de palha, um pouco mais afastado mas também com as mesas funções. Aí, um só pensamento o tomava - a vingança.
O Inverno chegara ao fim e num belo dia de sol, já em plena Primavera, viu-se a sair com um pequeno pau na mão tangendo algumas ovelhas.
Sempre de longe e escondendo-se, num ou noutro lugar mais descampado, seguiu-a. Pelo caminho, outras raparigas, se lhe juntaram também com algumas ovelhas e ele viu-as afastarem-se do centro da freguesia e dirigirem-se a um cômoro, onde se sentaram a cantarolar, enquanto os animais pastavam em sossego e bebiam a água de pequeno regato que ali passava perto.
Mesmo ao longe e não obstante o desprezo que por ele demonstrara, ele continuava a exercer nele uma paixão sem limites. Só que agora, a paixão misturava-se em torvelinho com o forte desejo de vingança, que quase o enlouquecia. Mas quando a carne se acendia, era como ela que sonhava. Nenhuma outra rapariga lhe ocupava o pensamento nem sequer por breves instantes, pois a beleza de Ana absorvia-o totalmente.
Perto do meio dia, as raparigas tiraram o farnel da cesta de vime e almoçaram com a alegria que a hora da frugal refeição sempre proporcionava, completamente alheias ao espião que, de longe, não as perdia de vista.
Ao vê-las saciar a fome, o rapaz percebeu-se que p seu estômago também reclamava por alimento. Nada tinha, no entanto, que o pudesse satisfazer e à sua volta, só pastos e silvados se avistava. Afastou-se do seu improvisado esconderijo e dirigiu-se para as primeiras casas da freguesia, a ver se encontrava qualquer coisa que comesse.
Rondou-as, sem se atrever a bater à porta a pedir um naco de pão, pois via nitidamente que os donos não podiam ser abastados e certamente o afugentariam com duras invectivas.
Revoltado voltou ao esconderijo e pacientemente, mordiscando pequenos pedacinho de erva, esperou que as raparigas regressassem a casa. Quando isso aconteceu, seguiu-as novamente, sempre de muito longe e sempre com muito cuidado para não ser descoberto.
Só quando Ana recolheu as ovelhas no curral e entrou a porta de casa, voltou ao seu tugúrio, não sem antes passar por um quintal e surripiar uma maçaroca de milho seco, que lhe serviu de alimento naquele dia. Mas não se importava muito. Desde que pudesse enganar o estômago com qualquer coisa, dava-se por feliz, pois até parecia que a sua paixão o alimentava de certa maneira.
Nos dias imediatos, concluiu que lhe seria muito difícil pôr o seu plano de prática, pois Ana vinha sempre acompanhada das amigas. Tinha de engendrar qualquer coisa que lhe permitisse ficar sozinho com ela mas nenhuma solução lhe surgia.
Passaram.se algumas semanas com ele sempre a magicar um plano exequível, que tardava em aparecer. Até que, finalmente, uma ideia luminosa lhe atravessou o cérebro e um largo sorriso lhe apareceu no gosto magro, como se tivesse achado um tesouro.
No dia imediato, pôs-se a caminho para a vizinhança do pequeno regato. Era cedo e as raparigas ainda não se encontravam lá. Esperou pacientemente, enquanto ia aguçando um pau com a navalha ferrugenta, a fim de passar o tempo. Lá de quando em vez relanceava o olhar pelas redondezas, a ver se as avistava. Por fim, viu-as ao longe, tangendo as ovelhas para o lugar do costume. Sentarem-se, certamente cansadas da caminhada que tinham feito, enquanto ele tratava de se pôr completamente a coberto, em lugar donde as podias divisar.
À tarde, quando nada o fazia prever naquele dia primaveril, o céu escureceu com nuvem pesada. Era como um presságio anunciado naquele crime medonho. Pouco depois, um fortíssimo aguaceiro desabou sobre as raparigas, que fugiram do montículo onde se encontravam para perto dum lugar mais abrigado, oposto do sítio onde se encontravam as ovelhas. Era a oportunidade que ele tão pacientemente, durante dias e dias, esperava.
Rápido, enfrentou o aguaceiro e correu em direcção às ovelhas que sabia serem dela, enxotando duas com o auxílio do pau aguçado, que preparara com a sua navalha e conduzindo-as para bem longe das raparigas.
Quando viu que já não havia perigo de o verem, amarrou as ovelhas a um arbusto e voltou completamente encharcado para o poiso habitual.
Quando estiou, pouco tempo depois, as raparigas regressaram do seu abrigo, E como a atmosfera se mantinha ainda pesada, foram buscar as ovelhas para regressarem a casa.
Maldizendo a sua sorte, Ana verificou que lhe faltavam duas. Participou o facto às amigas, que durante algum tempo a ajudaram na tentativa vã de encontrarem os animais. Mas o tempo foi passando e a busca revelou-se infrutífera.
Acabou por se despedir das companheiras, dizendo-lhes que ia continuar à procura dos animais tresmalhados. Tentaram convencê-la a regressar a casa com elas, pois a hora já era tardia mas, obstinadamente, a rapariga respondeu-lhes que as havia de encontrar, visto que duas era perda de monta e não queria sujeitar-se a uma possível reprimenda dos pais.
O seu destino estava traçado ! Partindo sozinha, calcorreou as redondezas, subindo a uma elevação, a ver se as via. Em vão! Quando, já sem esperança, se preparava para regressar, viu-o à sua frente. Petrificada, sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo esbelto, enquanto o coração lhe queria saltar do peito.
O andrajoso fintou-a com um sorriso de troça estampado no rosto, onde sobressaíam duas fileiras de dentes maltratados. De um salto ficou colado à jovem, enlaçando-a, ao mesmo tempo que lhe apontava à garganta o pau aguçado. Sem cerimónias atirou-a ao chão, rasgando-lhe a roupa, até a desnudar da cintura para cima.
Ao ver os belos seios da rapariga, envolveu-a na labareda libidinosa do seu olhar louco de desejo e preparou-se para lhe tirar o resto da roupa. Debalde, a pastora tentava impedi-lo por todos os meios ao seu alcance, que ele lograsse atingir os seus intentos mas as forças iam-lhe faltando.
Mesmo assim, a luta prosseguia e, por fim, também ele começou a dar sinais de cansaço Mas nenhum desistia. Ele arranjava forças, na repugnância que ele lhe causava e na angústia da perspectiva da perda da sua virgindade; ele arranjava-as no incêndio da sua paixão.
Mais forte, porém, o rapaz ia conquistando terreno e a pouco e pouco foi-lhe arrancando todas as peças do vestuário, até a deixar completamente nua.
Quando ele a viu quase imóvel, arfante e de olhos fechados, preparou-se consumar a sua vingança, violando-a. Só que a rapariga, ao ver uma pedra ao alcance da sua mão direita, num esforço titânico, agarrou nela e com toda a força que lhe foi dado arranjar, bateu-lhe na cabeça, abrindo-lhe uma ferida no couro cabeludo.
Com os olhos injectados de sangue, devido à fúria que o invadiu, ergueu o braço direito, armado com pau aguçado e cravou-o no peito da infeliz Ana que, depois de um estertor horrendo, assim perdeu a vida na flor da juventude.
Ao vê-la inerte, esbugalhou os olhos e permaneceu fixando-a, como se estivesse hipnotizado, durante algum tempo, sem perceber bem o que acontecera.
Toda a força naquela insana paixão se foi esvaindo lentamente, perante o horror do crime que acabara de cometer.
Levantou-se e apertou a cabeça escaldante com ambas as mãos, circunvagando o olhar pelos arredores.
Não vendo ninguém, desatou a fugir na direcção da freguesia mas logo se arrependeu e correu em sentido contrário. Quando estava suficientemente longe rumou, então, a casa. Se o vissem, pensariam que vinha de outro lado e não do lugar onde a matara.
Era noite cerrada, quando entrou na sua choça !...

                                                                                                       *****

Ainda horrorizado pela confissão, que acabara de ouvir, o padre olhou o corpo pustulento daquela mísero farrapo humano e com as lágrimas nos olhos, fez o sinal da cruz.
Poucos dias depois, a morte veio libertar o leproso do seu sofrimento !...


                                                                                                        *****

Quem sobe os Picos, mais precisamente na antepenúltima curva, antes de chegar à descida que dá para a bifurcação das duas estradas Santo Espírito/Santa Bárbara, pode ver um morro à direita, que ladeia a estrada, um espécie de pedestal em pedra, a qual nos últimos anos, está engalanada com grinalda de flores plásticas, ali postas por mão caridosa desconhecida.
Não obstante haver quase a certeza que ali morreu por acidente, em 9 de Agosto de 1754, vítima de um tiro da sua própria espingarda, um jovem fidalgo de Vila do Porto, de nome Teotónio José e ainda porque alguns defendem que não é esta a cruz de pastora Ana mas sim outra, não muito distante daquele lugar, a verdade é que para muita gente, quando alguém pergunta o significado daquela cruz, a resposta é:

 - Dizem que mataram ali uma mulher !...

Os teus segredos mantêm-me pacifico, as tuas mentiras mantêm-me seguro, estás satisfeito com a minha ignorância?


Citação de: anascorpion em 07 janeiro, 2015, 11:11
Bonita mas triste história  :)

Lá isso é verdade, penso sempre nessa história quando passo pela cruz!! Beijinhos Ana! :)
Os teus segredos mantêm-me pacifico, as tuas mentiras mantêm-me seguro, estás satisfeito com a minha ignorância?

Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem