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  • Joana e Gabriel - Sem princípio nem fim Parte 2 de 2
    Iniciado por Filipa84
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Atenção:
Esta é a segunda parte de uma história.
A primeira parte está aqui:

https://portugalparanormal.com/index.php/topic,29174.msg267471/topicseen.html#msg267471


Joana e Gabriel - Sem princípio nem fim

Parte 2 de 2


Joana abriu os olhos e sentiu-se de imediato encadeada com a luz artificial que lhe batia directamente no rosto. Fechou-os com força e naquele segundo recuperou a memória de tudo o que tinha acontecido. Eram memórias confusas e enevoadas, mas sabia estava em perigo e que tinha de fugir. Apoiou os cotovelos e levantou o dorso repentinamente. Deu de caras com um rapaz de olhos arregalados a olhar para ela, mas não parecia perigoso. Aliás, parecia tão assustado como ela, se é que isso era possível. Instintivamente afastou-se dele e apercebeu-se que estava numa cama.

    - Onde é que eu estou? Não acredito que fui raptada!
    - Não foste raptada princesa, eu trouxe-te para casa para te proteger! - respondeu o rapaz com uma voz apaziaguadora.
    - Para me proteger? Eu tenho de me ir embora! - Levantou-se e agarrou na sua camisola verde que estava pousada ao fundo da cama, olhando para ele com uma expressão inquisitiva. Será que ele estava a despi-la enquanto dormia?
    Ele tinha um tom de cabelo louro escuro, não era o mesmo loiro que a tinha atacado. Este tinha uns caracóis largos que lhe pendiam até às orelhas, com o cabelo um pouco comprido, como aqueles desenhos de anjos a tocar harpa.
    Certamente não será anjo nenhum, tendo em conta o que se passou, só pode estar envolvido com eles – pensou desconfiada.

    - Cuidado, tens muitos espinhos na camisola, vais ferir os braços – alertou ele enquanto se aproximava com uma expressão preocupada.
    Joana olhou para os seus próprios braços e verificou que estavam completamente arranhados. Assim que olhou para os ferimentos superficiais, de imediato sentiu o ardor. Reparou que estava com a pele muito avermelhada. Parecia... Betadine? Será que também lhe tinha posto nas pernas?
    Como se lhe lesse os pensamentos, o rapaz respondeu-lhe:
    - Só tive tempo de te tratar dos braços e da cara.
    Joana levou imediatamente a mão à cara para sentir os danos, mas ele impediu-a, segurando-lhe o pulso.
    - Cuidado, tens um olho negro... Vai à casa de banho se quiseres, mas não toques nas feridas com as mãos sujas. Desinfectei os arranhões, deixa estar assim. – aconselhou, cuidadoso.
    Indicou-lhe o caminho para a casa de banho, que ficava à saída do quarto, mesmo em frente.

    Ao sair do quarto Joana pôde perceber que a casa não era grande. Parecia ter só mais duas divisões à esquerda, mas não tinha a certeza pois estava escuro, apenas uma luz fraca de um candeeiro iluminava a entrada. Fechou-se na casa de banho e dirigiu-se ao espelho. Não estava tão mal como pensava, os dois arranhões que tinha iam, perpendiculares, do lábio até meio da maçã do rosto. Já o olho... Estava inchado por baixo e a ficar mesmo negro. Ver-se assim acordou memórias indesejáveis.
   Tinha jurado a si mesma que nunca mais ia estar naquela triste figura por causa de um homem.
   E agora ali estava ela, com um aspecto miserável, assustada e com um olho negro. Outra vez.
   Sentiu vontade de chorar. De sentir pena dela mesma. Sentou-se na sanita, desanimada.
   Colocou os cotovelos nos joelhos, baixou a cabeça e enterrou os dedos no cabelo. Deixou-se estar assim um bocado, a assimilar tudo o que tinha acontecido durante a noite.

    Quase tinha sido violada, e quem sabe até morta. Os últimos momentos que  se lembrava era de ver o seu agressor engalfinhado com um rapaz de cabelo aos caracóis a desferir-lhe murros incessantemente.
    Espera... Seria este rapaz? Só podia, dado que no momento seguinte, após ter recuperado os sentidos, estava na cama dele. Se de facto era o mesmo rapaz, então significava que ele tinha dado porrada nos seus agressores, salvando-a sabe Deus do quê, e tinha-a levado para casa. Onde tinha cuidado das suas feridas. Vasculhou a memória daqueles últimos momentos à procura do rosto dele, mas sem sucesso. Só se lembrava do rapaz de calças de ganga claras e gastas sentado em cima do moreno, com a cara virada para baixo a esmurrá-lo. Nessa imagem que retinha, devido ao seu ângulo de visão e dada a posição do rapaz, os caracóis alourados cobriam-lhe o rosto.

    - Calças de ganga claras... - susurrou para si mesma. Tinha de tirar isto a limpo. Lavou as mãos, secou-as na toalha e saiu da casa de banho.
    Entrou no quarto devagar, sem fazer barulho. O rapaz encontrava-se sentado à beira da cama de costas para ela. Não lhe conseguia ver as pernas, apenas a camisola de malha cinzenta, que tinha um pequeno galho preso na zona do ombro.
    Sentindo a sua presença, ele levantou-se e virou-se para ela. Envergava umas calças de ganga velhas, claras. Joana engoliu em seco.
    - Estás bem? - Perguntou ele com voz trémula. Parecia realmente preocupado com ela.
    - Sim, estou – respondeu decidida. - Olha eu não estou a perceber nada. Eu quero saber onde estou, quem és tu, e o que fizeste. - Colocou a mão na anca como que para enfatizar que aquilo era uma ordem, e era bom que respondesse.

   Surpreso com a energia que ela imprimira nas palavras, ele não pode deixar de sorrir. Claro que ele lhe ia dizer onde estava, quem ele era e o que tinha feito. Quer dizer, esta última parte dispensava pormenores. A sova que dera aos dois marmanjos tinha sem dúvida sido intensa e provavelmente as criaturas ainda jaziam no bosque, ensanguentadas. Certificara-se apenas que não tinham morrido, mas tinha feito questão de os deixar em muito, muito mau estado. Tinha inclusivé partido ambos os braços daqueles delinquentes miseráveis, para se lembrarem sempre de como não tratar uma mulher.
    - Claro princesa, sempre às ordens. Estás no prédio em frente à paragem de autocarro que apanhas todas as noites depois do trabalho, sou o Gabriel, prazer, e ao ver-te a ser atacada por dois jovens com más intenções, bati-lhes para te deixarem em paz, como estavas desmaiada trouxe-te para casa e desinfectei-te as feridas. Queres comer alguma coisa? Tenho donuts no frigorífico. - Ofereceu com um sorriso divertido que lhe revelava uns dentes brancos e brilhantes.
    Este rapaz só podia estar a gozar... Donuts?! Com aquele sorriso gozão? Ela tinha de ir para casa! Não ia ficar a comer donuts com um perfeito desconhecido nem confiar nele assim sem mais nem menos.

    " Estás no prédio em frente à paragem de autocarro que apanhas todas as noites depois do trabalho" - Como raio é que ele sabia que autocarros é que ela apanhava?
    Andará a seguir-me? - pensou com um arrepio. Tentou disfarçar o nervosismo e parecer segura de si.
    - Não, obrigada. Agradeço as tuas atenções, mas agora tenho mesmo de me ir embora. Obrigada por tudo.
    Queria desaparecer dali para fora depressa antes que se visse metida em mais sarilhos, desta vez sem ter para onde correr.
    Espera princesa, não te vás embora, para onde vais? Ainda é de noite, não há autocarros!
    Joana percebeu a sinceridade na voz dele. Se calhar era mesmo de noite. Em todo o caso, lembrou-se que o seu último autocarro passava pouco depois da meia-noite.

    Dirigiu-se à janela e afastou as cortinas. Viu a paragem lá em baixo do outro lado da estrada. Ok, esta parte era verdade.
    - Preferes ir para a rua? - Perguntou ele ao vê-la colada à janela, aproximando-se. - Não há problema, eu percebo que estejas confusa, mas eu vou contigo. Não te vou deixar ir sozinha.
    Indignada com o paternalismo impertinente Joana virou-se e ficou a um palmo do rapaz.
    - Quem és tu para me impedir de sair? Não me podes prender aqui, se eu quiser ir-me embora, vou. E vou mesmo. - Decidiu.
    - Não te vou impedir princesa, apenas te estou a informar que vou contigo. Não há autocarros e não sei o que tencionas ficar a fazer na rua, mas é perigoso e não te vou deixar ir sozinha.
    - Porquê? E pára de me chamar princesa!
    - Ok, desculpa. Também não sei porque o faço. Vou tentar não te chamar princesa, mas para isso dava jeito saber o teu nome – disse com aquele sorriso trocista.
    - Joana – respondeu ela com maus modos. - Chamo-me Joana. E tu, disseste que eras... Rafael?
    - Gabriel – Corrigiu.
    - Gabriel – Assentiu ela com a cabeça. - Muito bem, diz-me lá então como é que sabias que eu estava ali, com aqueles dois?

    Ela parecia desconfiada, e, pensando bem, tinha os seus motivos para isso. Era natural que estivesse atordoada e assustada, e que quisesse saber como é que tudo tinha acontecido. Não queria que ela pensasse que ele era perigoso, ou um tarado, ou maluco, mas a resposta à pergunta feita era sem dúvida motivo suficiente para ela pensar que ele era maluco. No entanto, tinha de dizer a verdade, não ia mentir à rapariga...
    - Bom, antes de mais, quero que saibas que não sou nenhum tarado, nem maluco. Quero que mantenhas um espírito aberto.
    Joana assentiu com a cabeça. Ela tinha um espírito aberto.
    - Bem, eu costumo fumar aqui à janela. E já por diversas vezes te vi, por volta das onze da noite, a apanhar o autocarro. Não que me importasse, apenas reparava, porque a rua é deserta, e via-te muitas vezes. Calculei que trabalhasses aqui perto em qualquer lado e já percebi que Domingos e Segundas-feira não apareces, pois devem ser as tuas folgas.
    Joana não disse nem que sim nem que não, não era burra, não ia dar informações de mão-beijada sobre onde trabalhava e quais eram as suas folgas.
    - Continua.
    Gabriel respirou fundo. Agora era a parte difícil. Decidiu dizer uma meia-verdade, para facilitar.

    - Hoje, eu estava a fumar o meu cigarro, e vi o autocarro passar. O das dez e cinquenta, o que costumas apanhar. Reparei nas horas e pensei "Que estranho, hoje a rapariga não apareceu, é Sábado". Como sei que o próximo autocarro é só às onze e meia, pensei "Coitada, perdeu o autocarro e vai ficar imenso tempo à espera, ou então ficou a trabalhar até mais tarde". Foram só pensamentos, percebes?
    - Sim, e então?
    - Nada, era só para perceberes que não sou nenhum obcecado, foram pensamentos naturais. Especialmente quando se vive sózinho, temos pensamentos assim sem importância, pois não há nada de especial para pensar, então reparo nas pessoas na paragem.
    - Sim, ok, já percebi que, como vives sózinho, és um cusco – Retorquiu ela com ironia.
    - Gabriel riu-se. Continuava a adiar a parte difícil de explicar. Ela continuava atenta e expectante à espera da explicação.
    - Bom, talvez também devido a não ter nada para fazer, senti uma espécie de um mau pressentimento em relação à tua ausência, e decidi descer e dar uma volta por aquele caminho de onde costumas vir.
    - Espera lá – Interrompeu Joana, incrédula – Não me viste na paragem, até aí tudo bem, e de repente tiveste um mau pressentimento e decidiste ir à minha procura?! - Largou uma gargalhada falsa. - Só podes estar a gozar!
    - Mas não estou. - Respondeu Gabriel subitamente muito sério.
    - Então e se me encontrasses a meio caminho? Agarravas-me e trazias-me para casa à força?
    - Não sejas tonta rapariga. - parecia ofendido. - Provavelmente passava por ti casualmente, dava a volta por outro quarteirão e vinha para casa, aliviado por ver que estava tudo bem contigo.
    - Oh Gabriel, por favor, não sou nenhuma tolinha para cair nessa cantiga, não me digas que tens pressentimentos desses em relação a todas as velhotas que usam a mesma paragem, e sais a meio da noite à procura delas quando não aparecem nos horários habituais! - Joana riu às gargalhadas com esta imagem descabida.

    A rapariga era completamente tola. Então agora ria a bandeiras despregadas?! Mas não, não era nada burra.
    - Joana, não costumo escolher nem pessoas nem circunstâncias para os meus pressentimentos. Eles aparecem e pronto. E normalmente tento tomar alguma atitude em vez de ficar à espera que algo aconteça. - Engoliu em seco.
    Da última vez que não prestara atenção a uma das suas visões, veio a arrepender-se amargamente. Tinha perdido o seu cãozinho e ainda sentia muita culpa por isso. Desde então, sempre que era assolapado por aquelas sensações indizíveis, não era capaz de ficar quieto e procurava sempre a origem do perigo, com esperança de evitar o infortúnio que sentia e sabia avizinhar-se.

    Joana olhava-o perplexa. O rapaz estava tão sério que parecia estar a falar a verdade. Viu a indignação nos olhos dele. Sim, só podia estar a falar a verdade. Nunca vira um homem a assumir assim, sem pudor, o seu sexto sentido. Como se fosse a coisa mais natural do mundo. Sem qualquer vergonha ou desconforto.
  - Ok, vamos então assumir que isso é verdade, saiste para a rua a ver se me vias, e depois?
  - Depois? - Gabriel arregalou os olhos – Depois é óbvio rapariga, ouvi barulho no bosque, ouvi os gajos a rirem-se e percebi logo que coisa boa não era de certeza. Segui o som e fui dar com eles a quererem-te bater – Gabriel ocultou a parte em que tinha ouvido perfeitamente os planos de violação e os procedimentos a tomar a seguir – Imobilizei o loiro, e depois tratei do moreno. Entretanto tu desmaiaste e não te ia deixar ali, não achas? Trouxe-te, desinfectei-te as feridas e aqui estás tu! - De novo aquele sorriso.
    Mas desta vez não a irritou. Era um sorriso genuinamente bonito e ingénuo. Como se tivesse acabado de contar uma história muito bonita. Que sorriso desconcertante. No entanto, inspirou-lhe confiança.

    - Obrigada Gabriel. Muito obrigada mesmo pelo que fizeste. - Agradeceu Joana, desta vez com sinceridade e gratidão no olhar. Sentou-se na beira da cama e permitiu-se finalmente relaxar. Sentiu as lágrimas quentes a encher-lhe os olhos, eram lágrimas de alívio, de descompressão. Sentiu Gabriel sentar-se ao seu lado, sem uma palavra, mas mostrando o seu apoio com a sua presença silenciosa. Um pouco desconfortável com aquela situação, Joana exugou as lágrimas com as mãos e encarou-o:
    - Vamos dar uma volta?
    O sorriso dele abriu-se.
    - Claro, princesa. Joana.
    Ela sorriu e abandonou o quarto.

    Desceram as escadas e, chegados à rua, Joana estremeceu.
    - Estás com frio? Queres que vá lá acima buscar mais um casaco?
    - Não é isso... Será que eles ainda ali estão? - Perguntou Joana apontando na direcção das silvas escuras, que davam aocesso ao local onde fora atacada.
     - Não tenhas medo, eles já não te podem fazer mal nenhum.
     - Como podes ter tanta certeza?
     - Ora, porque eu tratei-lhes da saúde! - Soltou Gabriel.
     - Mas o que lhes fizeste exactamente? - Quis saber Joana, a recuperar da confusão mental que toda esta azáfama tinha criado.
    - Não te preocupes, que não os matei, não sou nenhum assassino. Imobilizei-os, e liguei para o 112 a relatar o sucedido. Se vêm buscá-los ou não, já não é da minha conta. Como cidadão, fiz o meu dever.
    - Como um grande amigo também. - Acrescentou Joana, com gratidão no coração. Espreitou pelo canto do olho, através das pestanas, e pôde vê-lo a sorrir.
    - Sim, gostava de ser teu amigo. - Estacou, olhando-a nos olhos. Parados no passeio, frente a frente.
    - Já o és, Gabriel, mesmo que não o quisesses. Foste meu amigo, não irei recusar essa amizade. Serei também tua amiga, com orgulho. - Enfeitou a frase com uma festa no rosto dele.
   
    Surpreendido com a manifestação de afecto e sem saber o que pensar, retomou a marcha.
    O seu rosto ardia, com o toque dela. Nunca tinha sentido isto. As suas mãos eram frias e macias, e no entanto, fizera a pele dele arder. Fizera-o querer mais.
    - Estava a pensar levar-te ao parque que há atrás destes prédios, tem bancos, parque infantil, e é um espaço agradável. Assim que queiras ir para casa, diz-me.  Olhou pra ela, era linda.  Só o olho negro destoava na sua pele delicada como pétalas. Sentiu uma vontade de a proteger para sempre, dos males do mundo, da violência, de todas as coisas más!

    Sentaram-se num banco por baixo de um pinheiro. Joana procurou a Lua no céu, e, quando a descobriu, brilhando em quarto crescente por cima da sua cabeça, sentiu-se confortada com a sua vigília.
    - Gabriel, desculpa se fui antipática contigo, estava confusa com tudo e não sabia se podia confiar em ti.
    - Podes sempre confiar em mim. Sempre. - Garantiu Grabriel, olhando-a com sinceridade e um ar solene. - Mas acho bem que sejas desconfiada. Há por aí muita gente com más intenções, e quanto mais cedo as detectares melhor.
    - Sim, é verdade, mas não penses que, por causa do incidente de hoje, vou andar por aí a desconfiar de toda a gente a ter medo de tudo! As pessoas estão habituadas a achar que há maldade em todo o lado, mas eu sei que há muita gente boa,  e não estou disposta a alterar a minha forma de ver a vida e a Humanidade só porque fui assaltada.

    Gabriel não pôde deixar de rir um pouco.
    - Rapariga tu não foste assaltada, por falar nisso, eu trouxe a tua mala depois tens de ver se eu apanhei tudo ou se falta alguma coisa. Continuando, tu por pouco não foste violada e espancada. Acho bem que não te tornes numa pessoa medrosa, mas se calhar podias aprender, com esta experiência, que não deves andar sozinha à noite em lugares longe de casa.
    - Discordo. Não vou deixar de passear, ou mesmo de trabalhar, de noite. Não vou limitar a minha liberdade porque isto aconteceu.  - Joana parecia exaltada, só por alguém conceber tal comportamento. - E acima de tudo, jamais vou perder a fé na Humanidade e olhar para cada pessoa que apareça na minha vida como uma ameaça.
   - Ainda há uma hora o fizeste comigo. - Troçou Gabriel.
    - Oh, é diferente. - Lá está, por haver pessoas como tu, é que me recuso a ver maldade em toda a gente.

    Gabriel nunca tinha conhecido ninguém assim. Esta rapariga ou era muito destemida, ou era uma ingénua, decidida a só vivenciar o bem. Ou talvez fosse as duas coisas.
    Apeteceu-lhe encostar-lhe a cabeça no seu peito e acariciar-lhe o cabelo. Deliciou-se com esta imagem de ternura, a vibrar na sua imaginação.
    - És linda – Susurrou, sem ela ouvir.
    Desejou que parte do seu poder fosse transferido para a princesa que tinha no peito. Uma vez que era impossível, corrigiu o desejo.  
    Espero que nunca venhas a precisar.
    Fechou os olhos, inspirou fundo e deixou-se inebriar pelo aroma floral que emanava dos cabelos de Joana, revolteados pela brisa nocturna.

    Não foi preciso muito incentivo para Joana começar a falar.
    A rapariga era bastante simpática e social, quando não se sentia ameaçada.
    Falou dos seus interesses, dos seus projectos de abrir uma loja de produtos naturais, falou das suas amigas, das suas viagens a França para a apanha da fruta. Acabou por falar no Samuel, ainda que o tentasse evitar. Era inevitável. Ele fora uma mancha na sua vida, mas a sua vida sem essa mancha não seria a sua vida. Contou-le como aquela relação doentia e abusiva a tinha moldado.

    Gabriel não teceu comentários, nem fez juízos de valor, sobre um homem que batia numa mulher. Um homem que em vez de a apoiar, a menosprezava em vários níveis, até a ver perder toda a dignidade e auto-respeito. Nada disse. Fechou os punhos com força, até os nós dos dedos ficarem brancos, e desejou com todas as suas forças que nunhum homem assim voltasse a atravessar o caminho dela.
    Dela, não sentiu pena. Apenas uma enorme vontade de a abanar pelos ombros, até ela perceber o seu próprio valor, e jurar que nunca mais iria deixar-se tratar assim. Mas não o podia fazer, é claro. Em vez disso abraçou-a de uma vez, sem pensar na reação dela.

    Joana correspondeu o abraço, apertou-o mais e surpreendeu-se com a necessidade que tinha daquele contacto. Como era bom! Sentiu o cheiro amadeirado de Gabriel entranhar-se nos seus sentidos, e por momentos, quase o beijava. Controlou-se.
   Talvez um dia.
    Necessitando urgentemente de mudar de assunto, retomou o discurso:
    - Não te preocupes, já passou, já sofri o que tinha a sofrer.  Diz-me lá então mas é como é que descobriste que eu estava em perigo, pois aquilo do pressentimento não cola. Mesmo. Diz-me a verdade.
    Joana olhava-o de frente, com os olhos sérios, escuros e muito redondos. Parecia analisar cada micro-expressão e Gabriel não achou boa ideia voltar a contar meias-verdades. Esta rapariga era perspicaz.

    - Ok... - começou, atrapalhado – Bom, a verdade é que eu tenho visões, flashes que me aparecem, e eu vejo como se fosse um sonho, de cenas a acontecer num futuro próximo. Eu sei, parece de doidos, provavelmente vais chamar-me de esquizofrénico, mas...
    - Não te vou chamar de nada, e não és doido. Eu acredito! Tiveste uma visão de mim no bosque? Como é que foi?
    - Foi horrível... Nem me apercebi se eras tu ou não, só vi uma rapariga, no chão, toda rasgada, a sangrar... despida. Felizmente cheguei a tempo de evitar o pior. Muitas vezes não chego a tempo, é uma agonia, saber que posso evitar certas desgraças, saber que vão acontecer caso eu não interfira, e não chegar a tempo... - uma lágrima solitária corria-lhe pela face esquerda, que Joana limpou com a ponta do dedo.
    - O que aconteceu?
    - O meu scooby... Foi atropelado mesmo aqui à porta. Uma noite que me escapou da trela, foi correr para o bosque, eu chamei-o e ele não vinha, vim a casa buscar comida para o atrair, e tive uma das minhas primeiras visões que incluiam alguém que eu conhecesse – pois muitas vezes tinha-as com pessoas estranhas e sítios desconhecidos – vi-o a ser atropela por um jipe, mas pensei que era apenas uma visão aleatória, ou que era a minha imaginação, e não liguei. Desci as escadas do prédio sem pressas, e lá estava ele, morto na estrada... Se eu tivesse corrido, tinha ido a tempo!

    - Gabriel não te culpes, não foi culpa tua, e não sabias se era verdade ou se ia demorar segundos ou minutos. Se tiveste a visão é porque ia acontecer. Estava escrito assim. - Apertou-lhe a mão, desejou poder tirar aquela dor do seu coração, aquela culpa injusta. O que ele tinha  era um dom, mas um dom capaz de provocar muita dor. Quis protegê-lo do seu próprio dom, quis apagar aquela responsabilidade injusta que ele carregava, cada vez que era assaltado por visões de eventos desastrosos.

    Não o podia fazer. Mas podia continuar ali, a seu lado, as mãos unidas, os corações em sintonia. Lembrou-se do sonho que tivera esta manhã, e num piscar de olhos tudo fez sentido. O patrão, a simbolizar o emprego, e o perigo que enfrentaria ao sair do expediente. O Gabriel, com todas as suas cores douradas, o seu salvador. Lembrou os seus lábios, como os necessitava no sonho, como os sabia de cor... Afinal, o pesadelo tinha sido um maravilhoso sinal! Tinha sido uma premonição de algo maravilhoso. Com um sorriso sábio, e com confiança no seu coração, sabendo o que era certo, tomou o rosto de Gabriel nas suas mãos frias. Mergulhou no seu olhar de mel, e sentiu todo o Universo, todas as energias criadoras fundirem-se naquele momento mágico.
    O Amor.    

    Beijou-o, como se o tivesse beijado milhares de vezes, como se soubesse o movimento de cada milímetro daqueles lábios perfeitos. Como se aquele beijo quebrasse todas as leis da física, do tempo e do espaço, e tivesse existido sempre, sem princípio e sem fim.



Filipa Baptista
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

Bom, tou sem palavras...mas tenho uma pergunta ;)

Como criaste esta estória? Tens alguma base? É só imaginação ou há alguma coisa de real?

:o
Não me trates por VOCÊ!!!
Respeito mais tratando-te por TU do que tu a tratares-me por VOCÊ!

Olá Ex3m

É engraçado perguntares isso.
A única coisa real nesta história é a personagem Joana, que na realidade é uma grande amiga minha, que teve uma relação abusiva, em que o namorado lhe batia. A personagem e a personalidade é real.
Tudo o resto na história é fruto da minha imaginação (ela nem sequer trabalha num restaurante).

Basicamente a criei a história como forma de expressar o meu desejo de ela encontrar um novo amor, num homem protector e corajoso  ;)
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

#3
a estória é fantástica - parabéns :)
Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

CRI(P)TICO
Citação''- Ora, porque eu tratei-lhes da saúde!''

Será... Betadine? ;D >:D 8)

Muito bom Filipa, continua!

Ninfa
#5
Citação de: Filipa84 em 09 abril, 2014, 22:24
Olá Ex3m

É engraçado perguntares isso.
A única coisa real nesta história é a personagem Joana, que na realidade é uma grande amiga minha, que teve uma relação abusiva, em que o namorado lhe batia. A personagem e a personalidade é real.
Tudo o resto na história é fruto da minha imaginação (ela nem sequer trabalha num restaurante).

Basicamente a criei a história como forma de expressar o meu desejo de ela encontrar um novo amor, num homem protector e corajoso  ;)

Encontrar homem corajoso e salvador? Então eles com quarenta anos nós mulheres temos que arranjar carro para eles, dinheiro, boa posição social, casa pronta, roupa lavada e comida na mesa...além de uma boa amante para a cama...
Onde é que está o protector que tanto as mulheres sonham...encontrarem um salvador?
O salvador está dentro de nós já dizia um amigo meu!
Agora ser mula de carga para um gaj***o...isso é que era bom.

A realidade é outra...não abram os olhos e depois digam que cá em Portugal não morrem mulheres assassinadas pelos maridos e namorados.

O nosso amigo, marido e namorado é o nosso dinheiro que temos guardado debaixo do colchão :laugh:


Sabes o que é que eu faço a um protector? Uso e deito-o fora ;)
Pessoalmente nunca me atraem e dos 18 aos 80 é vê-los babarem-se...para os dos 80 sou como uma obra de arte, os dos 18 sou como carne pendurada no talho ;D

sofiagov
#6
Filipa, para quando um livro

muito bom tens imenso jeito   ;)

#7
Obrigada Cleopatra!

Ninfa

Não sei se percebi bem o que disseste.
Quando eu digo um rapaz protector (não disse salvador), é no sentido de ser o oposto ao companheiro que ela teve.
Num amor como deve ser, protegemo-nos um ao outro, é um instinto básico. (os homens tendem a proteger-nos fisicamente, ou pelo menos teem esse instinto se estivermos em perigo, e nós mulheres protegemo-los de outras formas, tratamos de mil assuntos, para não os sobrecarregar-mos com preocupações, mantemos o lar um espaço acolhedor - uma casa sem uma mulher não é a mesma coisa, apoiamos os seus projectos, eles os nossos, etc.)

Não quero dizer que todas precisamos de um guarda-costas, nada disso, somos perfeitamente capazes e independentes, mas criei a história e o incidente no bosque para expressar como é mais correcto, e até natural, (na minha opinião, claro) um companheiro ser assim, e indignar-se com violência entre duas pessoas que deviam amar-se, e não atacar-se. Um companheiro sensível e corajoso que, numa situação crítica, nos protege, em vez de nos atacar quando se passa da cabeça (bruto e cobarde).

Quanto ao "abrir os olhos" e ter consciência que há muitas mulheres assassinadas, em histórias que começaram com uma simples chapada do marido, concordo contigo, ainda bem que ela o fez (abrir os olhos) a tempo, de nada de grave se ter passado. Mas não sou ninguém para a julgar, mesmo sendo amiga há 19 anos. O meu papel é aconselhá-la, apoiá-la e consciencializá-la, e ter sempre a porta aberta e o ombro disponível.

Obrigada Sofia =)
Um livro é muita areia para o meu camião! Vou fazendo contos, uns grandes, outros pequenos, até me dá mais gozo, pois não enjoam e não fico bloqueada das ideias a meio!
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

Citação de: Filipa84 em 09 abril, 2014, 22:24
Olá Ex3m

É engraçado perguntares isso.
A única coisa real nesta história é a personagem Joana, que na realidade é uma grande amiga minha, que teve uma relação abusiva, em que o namorado lhe batia. A personagem e a personalidade é real.
Tudo o resto na história é fruto da minha imaginação (ela nem sequer trabalha num restaurante).

Basicamente a criei a história como forma de expressar o meu desejo de ela encontrar um novo amor, num homem protector e corajoso  ;)

Muito bem e que a tua amiga consiga encontrar ( se é que ainda não encontrou) a calma e protecção junto de alguém que ame.
Não me trates por VOCÊ!!!
Respeito mais tratando-te por TU do que tu a tratares-me por VOCÊ!