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  • Mãe, até ao fim.
    Iniciado por Filipa84
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Mãe, até ao fim

  - Mãe, acreditas em fantasmas? - Perguntou João, levantando a cabeça dos exercícios de matemática, para observar a mãe, que deambulava de um lado para o outro da cozinha, largando panos e pegas em todas as bancadas.
  - Não querido! - respondeu a mãe rápidamente enquanto, num gesto carinhoso, lhe passava a mão nos cabelos loiros, deixando-o despenteado.
  Parecia um pequeno géniozinho, o petiz assim despenteado, a expressão pensativa e os rabiscos matemáticos no caderno gasto.
  - Porquê, viste algum? - perguntou, meio a brincar.
  - Não, nunca vi nenhum, mas perguntei porque a professora Kyara hoje disse que não existem fantasmas, e a minha colega Susana acha que há.
  - Pois se calhar há, respondeu Marisa, parecendo feliz com o aspecto do frango, acabado de sair do forno.
  - Então, mas acabaste de dizer que não acreditavas! - João estava confuso, e algo indignado com a contradição da mãe.
  Marisa era uma mulher decidida, bem resolvida, e muito terra-a-terra. Como mãe solteira, desde cedo aprendera a ser assertiva. A doce e ingénua jovem não tivera outra opção senão tornar-se uma mulher cheia de garra, para fazer frente, sozinha com uma criança nos braços, a todos os desafios que a sociedade lhe impunha.
  João estava habituado a uma mãe despachada, sempre com respostas concretas na ponta da língua, e um carinho nas pontas dos dedos.
  - Sim, meu amor, eu não acredito, mas não sei se há ou não fantasmas! Como eu nunca vi, não acredito, mas isso não significa que não existam.
  - Mas a professora Kyara...
  - A professora Kyara – interrompeu Marisa, levemente irritada – sabe muitas coisas, mas não sabe se os fantasmas existem, porque ninguém sabe! Devemos ser humildes e aceitar simplesmente que há muitas coisas que não se sabem.

20 Anos depois

  João foi crescendo, e, para grande orgulho de sua mãe, tornou-se médico.
  Embora ainda bastante jovem, era dos melhores profissionais que aquele hospital empregava. Não havia diagnóstico ou medicação que falhasse, nem queixa alguma sobre o tratamento aplicado. O único defeito que se lhe poderia indicar, seria uma certa frieza e distância que mantinha dos pacientes. Nunca fora um homem muito simpático, mas ultimamente nem uma palavra se ouvia da sua boca.
  Desde a morte da sua adorada mãe, fechara-se ainda mais, como se achasse indigna qualquer companhia ou conversa. Vivia para o trabalho.
  Sentindo-se à beira do esgotamento, teve o discernimento de falar com um colega, da área de psiquiatria.
  - Dr. Morais, como está? Ouça, quando tiver uns minutos livres, gostaria muito de falar consigo, a titulo pessoal, digamos.
  - Estou a ver, tenho reparado que anda muito deprimido, deseja que lhe passe qualquer coisa?
  - Sim, acho que não estou a lidar muito bem com a morte da minha mãe. Não tenho conseguido dormir, está a ser um inferno – confessou, já com um nó na garganta.
  - Bem sei como é, bem sei, quando acabar o seu turno passe no meu gabinete ok? - Despediu-se com duas palmadinhas nas costas, e um sorriso paternal.
  Embora buscasse apenas uns anti-depressivos e qualquer coisa para dormir, João não teve sorte nenhuma com o Dr. Morais, que insistiu que tivesse consultas de psicoterapia para lidar directamente com a dor.
  - Dr. João Serra, tenho o seu trabalho em alta estima, e, muito embora poucas palavras tenha trocado consigo, sei que é um indivíduo sério, honesto, e com muito bom carácter. Não ando cá a ver navios – disse, afagando as barbas brancas, como quem afaga respeitosamente a sua idade e sabedoria. - Acredite que tenho tido pacientes completamente devastados com a morte de familiares próximos, e, normalmente, isso acontece não porque as pessoas são fracas, mas porque a relação que mantinham com os familiares eram fortissimas, ao ponto de se tornar dificil seguirem com a sua própria individualidade após a perda do ente. Eu faço questão que faça a psicoterapia, e lide com o seu luto. Não conte comigo para mascarar a sua dor com medicação. Você é uma pessoa extraordinariamente saudável.

  João seguiu as indicações do Dr. Morais e não falhou nenhuma consulta. Foi um alívio contar a alguém como se sentia abandonado e sozinho, explicar porque nunca aprofundara grandes relações, pois caía sempre no erro de, inconscientemente comparar as mulheres à sua mãe, um exemplo difícil de igualar... Aprendeu a gerir as suas emoções, as recordações, e, acima de tudo, a dissociar a imagem das mulheres em geral, da imagem da sua mãe.
  Sentia-se agora em paz consigo mesmo e em paz com a falta da mãe, embora tivesse muitas saudades, não se deixava corroer pelo sentimento de perda, aprendera a substituí-lo pelo sentimento de gratidão. Ter tido aquela pessoa como sua mãe, ter tido a sua companhia tantos anos, ter sentido a sua alegria e o seu amor, era algo por que estava realmente grato. Tinha sido uma honra ser seu filho.
  Certa noite, ainda não adormecera, quando sentiu uns dedos longos e frios na sua testa, percorrendo uma suave e fresca carícia até aos cabelos. Sentiu-os levantarem-se por entre aqueles dedos, enquanto cada centímetro do seu corpo se retesava num arrepio. Sentiu o impulso de abrir os olhos, mas forçou-se a estar quieto. Aquilo não era normal. Aquela carícia era por demais conhecida.
  Na sua pequenez, quando Marisa acabava de lhe ler as histórias para adormecer, passava-lhe sempre as mãos no cabelo, que ela dizia ser o mais macio do mundo, e terminava com uma festinha no rosto, com as costas da mãos.
  Com o coração desenfreado, forçou-se a respirar calmamente, enquanto esperava se ia dar-se , ou não a carícia no rosto. Se tal acontecesse, não havia dúvidas de que era a sua mãe, em espírito, ou então estaria irremediavelmente louco.
  A esperada carícia chegou, flagrante e nada subtil, gelando-lhe o rosto do queixo à têmpora. De seguida, por entre o zumbido que lhe ecoava nos ouvidos, distinguiu a palavra "vive" soprada baixinho e devagar, quase imperceptível, naquele timbre, tão terno e feminino. Um ligeiro sussurro, como se fosse um segredo "viiveeeee..!"
  Desta vez, não conseguiu manter a imobilidade. Saltou da cama e colocou-se de pé num só movimento, e olhou a toda a volta, enquanto tocava no lado esquerdo cara. Tinha sido real. Ele tinha mesmo sentido aquela festinha, feita e repetida milhares de vezes, reconhecê-la-ia nem que vivesse mil anos.
  - Mãe? - tentou, sentindo-se à beira da loucura.
  Silêncio.
  Um silêncio total e absoluto.
  Um silêncio tão vazio, como estava o seu coração há poucas semanas atrás.
  Um silêncio negro, carregado de expectativa.
  De repente, vindo da sala, um barulho atrai João, para ver o que teria sido.
  A sala de estar, impecavelmente arrumada e poucas vezes usada, apresentava um livro caído no chão, virado para baixo. Tratava-se de "The Family Man", a história tristissima de um homem que, após ser confrontado com um últimato pela namorada, escolheu a vida da carreira, em vez de uma vida em família. Agarrou no livro, com cuidado para verificar em que página estava aberto.
  Leu.
  Estava na página em que o personagem principal se arrepende amargamente da decisão que tomara no passado, ao ver a ex namorada com outro, feliz e com três crianças, a fazer um pic nic num jardim. A forma como as gargalhadas daquela família, que podia ser a sua, o magoavam. A consiência crua de que tinha trocado aquele som, pelo som do dinheiro, a tilintar nos seus bolsos.
  João fechou o livro e respirou fundo.
  - Obrigada mãe, percebi a mensagem. - disse, baixinho.
  Sem dúvida que tinha de mudar um pouco a sua atitude.
  Sem dúvida que tinha de perder o medo de se abrir para as pessoas.
  Sem dúvida que não ia ser um processo fácil, sair da casca.
  Mas, sem qualquer sombra de dúvida, ia valer a pena, encontrar uma mulher, amá-la pelo que ela é, construir uma família.
  E neste momento, sozinho na sala fria, decidiu partilhar a sua vida com amor, tal como a sua mãe fizera, consigo, até ao fim...

Filipa Baptista
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

sofiagov
Filipa sem duvida amei esta história de coração, fiquei presa até ao final...obrigado por esta partilha maravilhosa  :-*

De nada! :) Ainda bem que gostaste!
Obrigada eu, pelo comentário.

Beijinho.
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

Já posso fechar a boca?  :o
Muito bem escrito, fiquei colado...e um beijinho á professora  :P
Não me trates por VOCÊ!!!
Respeito mais tratando-te por TU do que tu a tratares-me por VOCÊ!

Muito bonito Filipa84 :)
Muito emocionante...

Obrigada!

Fiz o conto de propósito para o fórum, por isso fico muito contente que tenham gostado  ;)
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

Citação de: Filipa84 em 03 abril, 2014, 19:51
Obrigada!

Fiz o conto de propósito para o fórum, por isso fico muito contente que tenham gostado  ;)


Parabéns, gostei mesmo muito.

Continua, que a página tem andado muito tristinha.

Abraço

Templa
Templa - Membro nº 708

a estória é muito boa, parabéns
Iei Or (faça-se luz)
Shalom Aleichem

Obrigada a todos :)

Citação de: Templa em 03 abril, 2014, 22:53
a página tem andado muito tristinha.

Templa
Essa frase inspirou-me, já estou a magicar uma história nova, beijinho e obrigada pelo apoio!
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

sofiagov
aguardamos por ela (história) .... :D :D

Citação de: Filipa84 em 04 abril, 2014, 10:59
Obrigada a todos :)

Templa
Essa frase inspirou-me, já estou a magicar uma história nova, beijinho e obrigada pelo apoio!


Já vi e gostei.

Vamos alegra a página ( esta) vou-te fazer companhia.
Templa - Membro nº 708

VoyeuR
Lindo e muito emotivo.