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  • O escano
    Iniciado por Templa
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Nunca, até àquela altura, tivera a certeza de onde viera nem quem se tinha lá sentado ao longo da sua vida de madeira, um castanho robusto, feita sem dúvida pelas mãos de um carpinteiro da família. Eram todos carpinteiros, alguns especializados, e as profissões passavam de pais para filhos. Até que um dia, um dos mais jovens rapazes da terceira geração resolveu quebrar a tradição, levando os outros atrás. A partir daí, a plaina a enxó, a bancada, o torno, o formão e por aí adiante passaram a ser usados esporadicamente em pequenos trabalhos para consumo próprio. Até a ferrugem e o caruncho os arruinar para sempre, ao longo dos 90 anos seguintes, sem ninguém lhes atribuir sequer o valor de coisa histórica capaz de servir no futuro para contar o passado.
Devia ter sido o bisavô a fazê-lo, um tanoeiro afamado que, um dia, foi chamado pelo Escritor Guerra Junqueira para lhe fazer um tonel de 500 litros, a fim de lá guardar o Vinho do Porto que o escritor produzia nas margens do seu Douro, o Douro do narrador também. Sempre se lembrara de ouvir dizer que o bisavô paterno, mal casara, com uma profissão capaz de garantir o seu sustento e o da família, não quis viver na relativa abastança dos sogros, alimentados, ele os outros filhos e noras, à custa das terras que possuía, de onde saia o mesmo vinho que Guerra Junqueiro queria guardar no tonel.
Foi por isso que, quase ao lado da casa dos pais da mulher, tratou de perfurar o granito da pedra e construir uma casa de um piso, ao nível da rua, que afundava logo à entrada para dar origem a uma enorme cave e que, nas traseiras, lhe dava dois andares. O piso térreo era a loja dos animais e a oficina, divididos por tabiques para ninguém perturbar ninguém. E se, à frente, a casa, com uma rua estreita, quase emparedava com a outra da frente, do outro lado tinha uma vista magnífica, levando o observador a imaginar que, para lá daqueles montes, deveria haver horizontes fantásticos para descobrir.
Era o que pensava do escano, devia ter sido o bisavô a construi-lo juntamente com as camas, as mesas e os bancos de que precisava para sentar a mulher e os sete filhos que Deus lhe haveria de dar ao longo do casamento. E fê-lo especificamente para ficar na cozinha, onde, sobretudo no inverno, os miúdos pequenos se sentariam à lareira, à roda das saias da mãe, enquanto uma tijela da sopa não fosse servida a cada um.
Passadas 3 gerações, era na cozinha que ela, miúda a começar a fazer parte da 4ª, via o escano. Às vezes mudava de sítio, para tudo adquirir um ar de novo, mas depois regressava ao lugar de origem, quando a nova decoração já tivesse cansado. De madeira absolutamente virgem e sem tratamento, era frequentemente lavado com soda cáustica, que lhe dava um ar fresco e limpo. Em cima, costumavam estar umas almofadas redondas, feitas em palha de trigo, para lhe atenuarem um pouco a dureza, bem como outras feitas da flor macia de uma erva que se apanhava nos campos por alturas do verão.
Ela lembra-se de ouvir contar que era lá, sobre o escano, onde o irmão a seguir ao mais velho gostava de dormir a sesta sempre que podia. Três anos mais velho do que ela e sonâmbulo, um dia, ainda miúdo, adormeceu preocupado com a rega da horta. Era o dia da água, que não se podia deixar no poço. O verão ia demasiado quente e a hortaliça, um dia sem rega, não sobreviveria. Depois, o pai não ficaria contente se o rapaz se esquecesse da incumbência.
Foi quando ele se levantou estremunhado e calçou uma das botas, colocando a outra ao ombro.
Já a caminho, foi interpelado no largo da aldeia por ir com um pé calçado e outro descalço. Nessa altura acordou e, envergonhado, calçou a outra bota, sem admitir que era sonâmbulo. Na verdade, nem devia saber muito bem o que é que ele era e o que lhe acontecia com o sono.
Quando a eletricidade chegou, a cozinha sofreu uma remodelação e o escano desapareceu. Durante anos, ninguém se lembrou do seu destino e, em abono da verdade não fazia falta. A 4ª geração começava a partir e a habituar-se a viver sem o calor da lareira. Gente crescida, quando  os rapazes e raparigas regressavam à casa de infância por alguns dias,  sentavam-se na sala a ver televisão, primeiro na versão reduzida de dois canais,   depois aumentada para quatro,  mesmo antes da era do cabo ou simultaneamente.
Recentemente, ela voltou à casa do escano onde, por causa da última grande revolução técnica, deixou de haver televisão. Há mais de um ano, está ela silenciosa e, quem lá for por dois ou três dias, escusa de contar, quer com a televisão quer com a rádio. Uma porque está absolutamente cega e o outro por estar quase mudo e ao serviço da estática. Se quiser e tiver tempo, quem da quarta geração a  que a narradora pertence, lá for, pode folhear um dos livros da estante e recordar a época em que ela enganava os pais, lendo até altas horas da noite com o candeeiro a petróleo, cuja ranhura da torcida virava para si numa nesga de luz. Mas não precisa de regredir tão longe. A eletricidade ainda não foi cortada lá na terra deste conto.
Um dia, os três irmãos mais velhos - de um ramo -  da quarta geração encontraram-se na casa onde outrora havia um escano. E, sem televisão, nem rádio, nem vizinhos para conversar e saber das sempre velhas novas da aldeia, à lareira e enquanto secavam as roupas das chuvadas das vindimas, recordar o passado e os mortos fez parte do serão.
- Lembram-se do escano que havia aqui na cozinha? – pergunta o irmão outrora sonâmbulo?
- É verdade, nunca mais o vimos, respondem os outros dois. Que é feito dele?
- Vi-o há tempos em casa da Estela. E estava bem bonito. Conheci-o logo. Está a decorar a entrada da casa.
Ainda bem que alguém o aproveitou, pensou ela, alguém inteligente capaz de perceber a história. Um escano em castanho tem sempre muito para contar, basta interrogá-lo. Um pai, um Zé carpinteiro de profissão que o construiu, sete filhos, sete vidas, sete dificuldades que se multiplicaram noutros tantos lares, com ou sem escanos, outras tantas tigelas de sopa quando o tempo não era de abundância e o dinheiro acompanhava o ritmo constante da pobreza, onde, parece, se irá cair de novo, sem apelo nem agravo. E ela fazia parte daquela história.
Então, teve necessidade de saber quem eram os seus mortos e, junto com os irmãos, a alguns pode ainda dar um nome e vê-los imaginariamente a usufruir da vida de um escano que agora já não pertence à família. Gostava que tivessem sido felizes...
Templa - Membro nº 708