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  • Como me transformei num fantasma
    Iniciado por Templa
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          Numa das últimas arrumações cá de casa, perdidas entre o pó e o tempo, fui encontrar duas fotos em que sou, mais ou menos, a protagonista. São ambas da Era "Arroz de Quinze", quando muito, Vinte". Isto para não dizer que já me pesam uns anos em cima dos ossos, já um bocado mal-humorados comigo. Recusam-se a trabalhar, a servirem-me de estaca, pregam-me partidas, enfim, mas são meus e tenho por isso de me haver com eles.

         Mas, voltando às fotos onde estou, ainda sem nenhum mal a apoquentar-me, são as duas minúsculas, 7x5cm, talvez, a preto e branco, claro, a moldura da imagem é igualmente branca e picotada.

         Agora vou falar dos artistas, principais e secundários.

         Nas duas pequenas fotos, se, apesar de antigas, estivessem inteiras, ver-se-ia, numa delas, uma das minhas tias-avós que já morreu há mais de 30 anos, com uma saia escura e uma blusa às pintas. Assim tem a cabeça um bocado cortada. A minha mãe é jovem e bonita nos seus 26 anos e eu estou no colo dela, toda vestida de branco, a fazer-lhe festas no pescoço. Eu devia ter 9 meses, ou por aí.

          Ao meu lado está a minha tia, irmã do meu pai, seguida da minha avó paterna, trajando de escuro como sempre a conheci, desde que foi forçada a separar-se do meu avô. Era muito magrinha e a na foto já só se vê metade. A minha mãe usa um vestido castanho com rendas verticais no peito e botões. Sei que era castanho porque me lembro de ter crescido e de o ver lá por casa. Era muito vaidosa a minha mãe e eu sou um pouco – talvez muito – como ela.
Já da minha tia, vejo apenas que o seu vestido tinha uma grande gola branca e quadrada. Os botões são claros, como o cinto. Não sei a cor dele porque ela, entretanto, foi para África.

        Colado às saias da minha mãe e num plano inferior, escondido entre a cabeça de duas mulheres, vejo um dos meus irmãos, o mais novo.

          Finalmente, o fundo da fotografia é uma parede escura, de pedra, e o local é uma terra onde hoje só é permitido construir casas de raiz com essa mesma pedra por a aldeia onde nasci pertencer a uma zona classificada como Património Mundial da Humanidade.

          A outra foto parece-me que foi tirada no mesmo sítio, na mesma parede típica. Mas alguns anos depois. Era a varanda da nossa casa, uma parte soalheira aonde, no inverno, se concentravam as vizinhas a costurar durante as tardes e, talvez, quem sabe?,  falar da vida alheia , se algum vizinho ou vizinha dessem motivos para isso. Certamente deveria havê-los. De contrário, seria uma vida triste, porque a má-língua sempre foi uma boa diversão para quem não sabe, não quer, ou não pode ter outra.

         O meu pai está sentado num banco pequeno, do meu lado direito, perto de uma janela, onde está pendurada qualquer coisa clara com alças. Tem aspecto de ser roupa feminina e, um pouco mais à frente, a sair da porta ao lado da janela, está uma silhueta de homem. Não sei quem é, talvez tenha sabido um dia mas, entretanto, esqueci-me e também não interessa para a história do dia em que me transformei em fantasma. Aqui devo ter os meus 6 anos.

         Ao meu lado vê-se a minha irmã mais nova, talvez tenha 4 anos, ou melhor, o corpo da minha irmã, porque as fotografias, desde o tempo em que foram tiradas até ao momento em que as encontrei nas minhas arrumações, sofreram grandes vicissitudes, ao ponto de ela ter perdido a cabeça e de eu ter ficado só com meia avó. Só eu, porque na foto onde a maioria dos fotografados são mulheres, a primeira a que me referi, a minha irmã ainda não era nascida.

        Como devem imaginar, as fotos originais estão um caco. Há gente sem cabeça, de meio corpo, falta papel, há riscos e dobras e, depois, há as habilidades modernas no mundo do restauro, tando de obras de arte como de fotografias, graças à maravilhosa ajuda dos computadores.

         Foi o que eu pensei.

         Eu às vezes faço as coisas e só depois penso, mas aqui foi ao contrário, dirigindo-me, na primeira oportunidade, ao fotógrafo mais próximo e a quem já conhecia credenciais no âmbito da normal foto a cores da era da informática. E pedi um orçamento.

         Um dia acordo com o telefone. Era uma senhora a querer falar com a D. Maria. Era engano – disse eu, que não me dou por Dona Maria e até tenho um nome engraçado –

         Depois de ter sido acordada por engano, pensava eu, era melhor ver de que se tratava.
       
        Afinal era do fotógrafo e o restauro custava 45,00 Euros. Ou melhor, duas novas fotos,  a partir das antigas custavam isso.

         Meu Deus, era uma fortuna, mas era melhor do que ter aqueles dois pedaços de papel mutilado que não podia mostrar a ninguém se um dia quisesse ilustrar a minha infância com imagens, ainda que a preto e branco.

         Um dia telefonaram-me de novo,  o trabalho estava pronto.

         Não sei porquê, não fiquei com curiosidade acerca do assunto. Adiei a ida ao estúdio por mais de duas semanas, ao ponto de, a dado momento, ter de ligar justificando-me, não fosse o homem pensar que eu não passava de uma vigarista armada em gente fina mas sem dinheiro para mandar tocar um cego.

         Quando me apeteceu tirar o assunto das minhas preocupações, lá fui eu. Tinha-me preparado para o meu regresso ao passado e estava pronta para ver quem saíra dali, como era eu nos meus 9 meses e seis anos, sem dores nas costas e com a vida inteira pela frente, agora que ela estava cada vez mais para trás. Até já imagino o dia em que baterei em retirada, indo lá para o outro mundo onde os mortos podem ser fantasmas, bons ou maus, tudo dependendo do seu desenvolvimento espiritual e do que andaram por aqui a fazer.

         Imbuída destes pensamentos, logo ali, em frente à menina que acabara de me entregar a encomenda, olhei para mim, na foto onde estava com a minha mãe e, tanto a mim como a ela, achei-nos aceitáveis. Afinal o tempo poupara-nos bastante. Eu, no original, só tinha na cabeça uma espécie de orbe branca, resultante de uma pequena rachadura do papel, mas quando olhei para a avó inteira da nova foto, reconstruída pelo fotógrafo, não foi a ela que eu vi, mas sim um fantasma com uma cara de fuínhas assimétrica e sem olhos, o que me causou algum pavor.

       Com a minha tia passava-se o mesmo, embora me parecesse que ela, igualmente sem olhos, estaria a usar uma máscara em que os contornos eram demasiado nítidos para aquilo ser uma cara.

         O resto das pessoas tinha saído de cena, apesar de a fotografia ter agora 15x10cm, vendo-se apenas as pintas da roupa da minha tia-avó, embora eu tenha ficado apenas com meios-pés onde dois carapins estavam prestes a cair.

        Graças a Deus a minha mãe tinha olhos e eu também. Eu não os mostrei à máquina fotográfica, uma vez que estava a fazer-lhe festas no pescoço.

        Agora já sabia como seria a minha avó se um dia viesse lá do além dizer-me qualquer coisinha que pudesse contribuir para a minha felicidade. Também ficava a saber como seria o fantasma da minha tia mas, felizmente, ela ainda não atingiu o patamar em que poderá mostrar-se nessa condição. Ainda anda por cá a saltar varandas de um lado para o outro, quando tem de fazer limpeza nos dos apartamentos que arrenda a estudantes, apesar de já ter mais de 80 anos.

        Era tempo de me voltar para a outra foto, onde estou com o meu pai e com a minha irmã de cabeça desmantelada.

       Só fiquei eu, ele, a peça de roupa branca a sair da janela e a parede lá atrás. A miúda desapareceu por completo e a silhueta do homem também, apesar de nunca lá ter feito falta. O meu pai está um bocado baço, tremido, mas, ainda assim, vê-se que é gente. Sobretudo no sorriso.

        Devia ser verão quando tirámos a foto, estávamos todos descalços. Talvez tivéssemos já apanhado sol ao mesmo tempo que as vizinhas costuravam, mas Oh horror dos horrores, os meus pés assemelham-se a uns medonhos pés de cabra e nem parece a minha postura desde que me conheço. Tenho as pernas afastadas por de baixo do vestido e faço-mo lembrar uma daquelas velhas antigas que, não usando cuecas, as abre para urinar. Além de parecer que o que esta ali à mostra é o tarso e o metatarso em osso, como se aquela parte do meu corpo fosse um prenúncio do meu cadáver. Suspeito que, além do mais, o que na nova foto é o meu pé esquerdo seja, de facto, o pé direito da minha irmã, que estava encostada a mim e entretanto fora  removida do cenário.

        Mas, o maior problema tem a ver com os olhos. Não os tenho, sou pois como um fantasma de 5 ou 6 anos, um nariz abatatado e com um vestido cheio de folhinhos à frente e atrás que se abrem no ombro,  como se fossem a capa de um pastor de ovelhas.

         Resumindo, parecemos, sobretudo eu e a minha avó, obra da D. Cecília, a senhora espanhola que fez do ecce homo um verdadeiro chimpanzé. Embora, no meu caso, não possa culpar o fotógrafo que, depois do trabalho concluído, descontou até no preço 15.00 Euros. Era difícil fazer melhor e a mim melhor fora estar quietinha quando quis roubar as fotos ao tempo e ao pó para lhes dar uma nova vida que hoje em dia me parece uma vida de sombras, uma vida de túmulo.

         Agora sei como serei no meu estatuto de fantasma. No sítio dos olhos terei dois buracos negros, o nariz será abatatado, terei pés de cabra e, além de tudo,  serei uma criança o que, só por si, é um crime. Eu sempre desejei que se, um dia, lá da tumba, tivesse de aparecer a alguém por qualquer motivo, havia de ter o mesmo ar dos meus 25 anos, quando era linda e maravilhosa...

          E foi assim que fiquei a conhecer o meu futuro no além, pela módica quantia de 30 euros e a partir de umas fotos que encontrei em tempo de arrumações. Nada mau... ;D :laugh:

Aveiro, 27 de Outubro de 2012

Templa

Templa - Membro nº 708

hahahaha ...

Excelente Templa,
Não sei se o objectivo seria a parte humorística, mas a mim deu-me para sorrir, com a descrição ...  ;D

Eu por 30€, também não me importava de saber o meu futuro .. mesmo vindo do além ...  ;)
Causa Debet Praecedere Effectum -  ( Não há efeito sem causa )

De Nihilo Nihil - ( Nada vem do nada )

Citação de: Seth em 27 outubro, 2012, 20:35
hahahaha ...

Excelente Templa,
Não sei se o objectivo seria a parte humorística, mas a mim deu-me para sorrir, com a descrição ...  ;D

Eu por 30€, também não me importava de saber o meu futuro .. mesmo vindo do além ...  ;)

Sim era a parte humuristica, sim. Foi o que me aconteceu no instante em que vi as fotos... Sorri

Abraço

Templa
Templa - Membro nº 708

Sandrareginabr
As palavras são uma arte maravilhosa, transportam-nos para mundos diversos. Também me ri com o texto, não haveria como não fazê-lo, porém o que me sobressaiu à alma foi a vontade de perpetuar o tempo, guardar aqueles instantes imortalizados no papel e deparar com a frustração de encarar a realidade de tal impossibilidade, de que o que passou passou e já não volta...

Citação de: Sandrareginabr em 28 outubro, 2012, 00:58
As palavras são uma arte maravilhosa, transportam-nos para mundos diversos. Também me ri com o texto, não haveria como não fazê-lo, porém o que me sobressaiu à alma foi a vontade de perpetuar o tempo, guardar aqueles instantes imortalizados no papel e deparar com a frustração de encarar a realidade de tal impossibilidade, de que o que passou passou e já não volta...

É verdade Sandrs ;D ;D ;D

E o teu braço? Já está bom?

Se calhar foi algum espirito malvado que te empurrou... Estou a brincar, embora muita gente afirme já ter sido vítima de coisas assim.

Abraço e as melhoras

Templa
Templa - Membro nº 708

Sandrareginabr
Citação de: Templa em 28 outubro, 2012, 10:54
É verdade Sandrs ;D ;D ;D

E o teu braço? Já está bom?

Se calhar foi algum espirito malvado que te empurrou... Estou a brincar, embora muita gente afirme já ter sido vítima de coisas assim.

Abraço e as melhoras

Templa

Eu não toquei no assunto pois não queria criar polêmica ;D Lembras das palavras do evp? Algo assim: "Tá aí embaixo." O pessoal do meu trabalho diz que o inquilino do além estava me avisando de algo embaixo dos meus pés... eu não prestei atenção... caí ;D ;D ;D ;D ;D

São  muito malandros os irmãos do além túmulo. Alguns devem ser verdadeiros diabretes... ;D ;D ;D


Bjs.


Templa

Templa - Membro nº 708