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  • Os estranhos poderes de Beatriz
    Iniciado por Templa
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O dia avançava ameno ao sabor de um crepúsculo avermelhado, a pairar no horizonte sobre o mar.
Beatriz aproveitou o tempo que lhe restava até ao anoitecer, e foi dar um passeio pela marginal do rio. Atravessou a ponte romana, deixando para trás a cidade moderna, que crescera em cascata na outra margem, desgovernadamente.
Os choupos ancestrais, enquanto projectavam a sombra do poente sobre os bancos da velha avenida, ofereciam-lhe uma brisa calma, que lhe penetrava no corpo, leve como o ar de onde se embebedava com uma avidez rodopiante, capaz de transcender as leis da matéria.
Pelo caminho, foi observando a paisagem. As casas seculares, revestidas de camadas de musgo, denotavam a verde indiferença do silêncio, provocada pelo abandono de heranças nunca repartidas. Tudo sucumbira ingloriamente ao peso das desavenças de família, sem resolução à vista em nenhuma das gerações subsequentes.
Alguns dos edifícios já tinham desmoronado, vergados ao tempo e aos séculos. Só as paredes estavam de pé, como esqueletos que ainda esperam uma nova carne para lhes cobrir outra vez a nudez lunar de que tanto se envergonhavam.
Mesmo o velho mosteiro, ao fim da rua, não tinha resistido, nem à impiedade dos tempos, nem ao furor das armas arremessadas contra si nas lutas liberais, aquando de todos os exageros bélicos do instável século XIX.
Por entre as paredes graníticas do velho mosteiro, eram ainda visíveis pequenos aposentos estropiados, ostentando, numa decrepitude irreversível,  as marcas implacáveis do abandono. Tinham sido as celas dos monges,  que guardavam ainda a memória dos flagelos auto-infligidos em nome de Deus.
Aqui e ali, via-se ainda o vidrado e uns restos de azulejos, cenas religiosas, que teimavam em fugir ao avanço dos arbustos, obstinados em ocultá-los completamente.
Beatriz adensou-se nas ruínas do decadente monumento, onde, numa das celas, crescia uma figueira-brava, cuja seiva era um leite estéril que impedia o amadurecimento dos frutos. Estes estavam agora espetados pelos picos das abundantes silvas, entrelaçados por elas num abraço sem fim.
O negro das amoras contrastava com o verde dos figos. Com alguma dificuldade, apanhou algumas e comeu-as, ao mesmo tempo que um vermelho avinhado lhe pintava os lábios ressequidos pela brisa do fim de tarde.
Pouco depois de ter descoberto em si estranhas capacidades paranormais, Beatriz, nos seus momentos livres, refugiava-se por ali do bulício, numa tentativa quase desesperada de eximir a sua sensibilidade às maquiavélicas orgias do mundo.
Um dia, agarrada ao fio dos pensamentos, viu,  numa casa ao lado da sua, através das paredes, cenas de uma vida doméstica que se passava ao lado, como se as paredes não fossem mais do que simples vidraças vulneráveis a olhares indiscretos. Não era o seu olhar....
Contudo, a partir desse momento, a sua curiosidade natural não a impediu de se embrenhar na mente e ver onde tais capacidades a poderiam conduzir. Mas, quando numa fortuita observação resvalava para a intimidade das pessoas, sentia um constrangimento doloroso, e acreditava que o seu dom, muito mais do que uma bênção, era uma forma de castigo. Retirava-lhe toda a inocência dos seus vinte anos e mostravam-lhe, numa crua nudez, toda a perversidade acoitada na alma das pessoas, que pululava na cidade como lobos famintos de sangue.
Sentada no banco da velha avenida marginal, Beatriz acabou o resto das amoras. Tinhas as mãos tingidas da cor dos frutos e aproximou-se do rio,  onde as lavou.
Depois, dispunha-se a regressar ao outro lado. Para trás ficava mais um dia de trabalho e um final de tarde ensolarado,  consumido nos labirintos do espírito,  sempre enredado em febris clarividências e estranhas aptidões, das quais nem ela sabia muito bem a dimensão.
Transpôs a velha ponte, cruzando-se, quase de imediato, com os olhos malévolos de Elisa, uma colega da fábrica, que, como se fossem lavas frias de um vulcão, acinzentavam o declínio da tarde.
A cidade prolongava-se ao longo da colina íngreme. No cimo, o santuário encimava a enorme escadaria, que quase já ninguém subia, a menos que fosse promessa. Para isso era utilizado o novo elevador, puxado por enormes cabos de aço, esticados e em contraponto com a descida do outro,  de onde os viajantes tinham uma vista deslumbrante sobre a urbe.
Lá em cima, ficava a casa das máquinas, em permanente manutenção por dois ou três homens, que se revezavam uns aos outros. E quem quisesse subir o monte de carro ou veículo do género, utilizava a velha estrada serpenteada, agora nua e despida de árvores, consumidas pelas chamas de um incêndio que deixou a paisagem esquálida e triste.
Beatriz deixou-se levar pela imaginação, decidindo prolongar o seu passeio vespertino por mais um pedaço.
Aventurou-se pela estrada, àquela hora quase deserta. A sensação de leveza experimentada no início adensava-se no seu corpo, agora a fugir às leis da gravidade,  que deveriam puxar-lhe naturalmente os pés para a alma da terra. Todavia, sem qualquer esforço, elevou-os no ar, planou como se fosse um pássaro e voou sobre a estrada, em ziguezague, enquanto, abaixo de si, um rapaz, montado numa motorizada, certo de ter encontrado um extraterrestre, imprimia uma maior velocidade ao veículo.
Beatriz rodopiava, dançava, beijando e abraçando a brisa, que lhe retribuía as carícias, alimentando-lhe cada vez mais a capacidade de voar, descoberta naquele fim de tarde.
Beatriz abriu os braços como se fossem asas, abeirando-se do rapaz. Foi quando os olhos de ambos se encontraram. Então ela pode ler neles intenções maquiavélicas e a alcunha de bruxa acabava de ser-lhe atribuída, mercê do voo igual ao das aves que acabara de experimentar. Estava condenada...
De repente, percebeu que o seu corpo iria ser amarfanhado, violentado e aniquilado por aquele rapaz que subia a encosta de motorizada, e que o jovem era o substituto do outro homem da casa das máquinas que fazia manutenção nos elevadores.
Em pânico, tentou fugir daquele inferno. Ser-lhe-ia fatal ter desafiado os pássaros e voar como eles, desafiando as leis da gravidade. Por isso, antes de morrer no fogo como uma vulgar feiticeira, ainda havia de experimentar a dolorosa humilhação de ser violada.
Nesse instante, quando percebeu que o seu estranho dom a abandonava progressivamente, desesperada, num esforço titânico, dirigiu-se, já quase a experimentar a sensação em queda livre, para a casa das máquinas, onde penetrou com estrondo através de uma janela aberta.
A surpresa do homem rapidamente cedeu lugar à volúpia. Era o que lhe diziam os olhos dele. Beatriz viu de novo naquela outra criatura uma alma incendiada pelo fogo da libido, disposta a tudo. Percebeu então que todo o seu corpo iria ser seviciado e chorou sem esperança.
Tudo por causa de uma criatura mortal como ela, ser portadora de uma capacidade de voo de cuja existência, até àquele fim de tarde, nem sequer suspeitava e que agora estava a faltar-lhe quando dela mais precisava.
Foi quando as lágrimas lhe limparam a poeira dos olhos e no seu corpo surgiu uma força hercúlea, em que os seus braços se assemelhavam a tentáculos de gigantescas árvores.
Então, como se todo ele fosse uma pena, agarrou no homem, arremessando-o pela janela da casa das máquinas, enquanto o rapaz da motorizada subia as escadas a toda a velocidade.
Aquela força descomunal com que derrubara o outro homem começava agora a fugir-lhe pelas pontas dos dedos, como formigueiro que acaba de libertar um pedaço de sangue aprisionado nas veias.
Beatriz lutava agora contra o rapaz da motorizada e, pegando num último sopro daquela misteriosa força que ainda lhe restava, arremessou-o pelas escadas abaixo, onde a sua dimensão de homem ficou reduzida à de um boneco de trapos, incapaz de fazer mal a uma mosca.
Beatriz desceu as escadas em caracol e passando por cima dos corpos,  reiniciando, pela estrada serpenteada, a viagem de regresso à cidade.
Entrou numa cabina telefónica e com o indicador discou um número:
- Estão dois homens mortos na casa das máquinas do elevador do Calvário...


Porto, 2003-01-13


Rafaela Plácido

 
Inspirado num grande pesadelo
Templa - Membro nº 708