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  • Já Existia Religião na Pré-História?
    Iniciado por Hammurabi
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Culto das Ossadas
O panorama apresenta-se de modo a que os dados se podem de algum modo relacionar com actos de carácter religioso, que tenha deixado como vestígios ossadas de animais depositados intencionalmente, argumento que é suportado pelos dados etnográficos, que registam um número significativo de casos da conservação do crânio para fins religiosos.  Contudo, para panoramas pré-históricos, e muito difícil que tais vestígios sejam fornecidos, devido á acção dos fenómenos pós deposicionais, tornando-se difícil por vezes distinguir aquilo que constitui a lixeira refeição humana de uma deposição cultural . O autor alerta para o fenómeno do uso com demasiada facilidade do termo "religioso, aquando da ausência de tudo, o que, á primeira vista carece de um sentido técnico.
  A impressão que constantemente se retira do panorama vestigial é a de um emprego forçado de documentos que nada de suporte trazem á matéria da religião. É possível que no paleolítico as sociedades caçadores reflectoras tenham tido um sentido de respeito por determinados animais, contudo os sentimentos são coisas abstractas, isto é não se fossilizam, traduzindo no próprio abstraccionismo de uma lixeira que se assemelha a uma pilha de feras com potencial mágico.

Ossos Decorados
Os ossos decorados, são os que aparentemente adquirem um significado que vai mais longe que o próprio sentido técnico; os achados do Paleolítico Superior de fragmentos de ossos registando figuras humanas são numerosos, nomeadamente Mézine na Ucrânia, ou em grande número de sítios do Magdalense. Contudo, as interpretações, mais uma vez, aludem por vezes a exercícios de imaginação, podendo estes elementos ter constituído simples peças de mobiliário.

Culto do Urso   
Relativamente ao culto do urso, cujo argumento assenta na presencia de crânios e ossadas nas Cavernas da Europa Ocidental e Central, onde se reportam vários achados de crânios empilhados em caixões de Pedra, ou outros ossos arrumados ao longo de paredes, tais achados são explicados por causa naturais, quer pelo comportamento dos próprios ursos, quer pela acção do próprio homem ou outras perturbações pós deposicionais.
Para este fenómeno os dados parecem ser pouco consistentes, contudo há que ter em conta que os dados apresentados apenas dizem respeito a cronologias do Moustierense, o que pressupõe que o urso das cavernas terá se extinguido antes do Magdalenense: os homens deste período conheceriam por certo os grandes ursídeos e vê-se o reflexo disso na integração destes animais no seu ciclo mitológico que juntamente com o rinoceronte representariam os animais de maior sincretismo.

Práticas Mortuárias
  No âmbito das práticas mortuárias, onde são abordadas o chamado «culto das mandíbulas», os achados de crânios isolados e o canibalismo, é a mesma situação de dualidade que para a dos capítulo anterior, já que o culto da mandíbulas é indemonstrável, baseado não só pelo facto de, de acordo com análises estatísticas para medir o grua de fusibilidade óssea, descobre-se que a mandíbula é dos ossos mais resistentes ao processo de corrosão. 

Crânios Isolados
Quanto ao caso dos crânio isolados, traduzem-se em algumas dificuldades de interpretação; contudo, as razões para se poder achar um crânio isolado divergem, podendo-se tratar de um troféu ou relíquia, do qual se possui dois achados indiscutíveis para todo o Paleolítico, um de cronologia Magdalenense, em Mas-d' Azil, descoberto em 1961. O crânio não parecia ter sido achado na sua posição original, e um de cronologia Mosutierense, no Monte Circeo.

Canibalismo
O recurso ao canibalismo é uma questão que ainda se detém por resolver: existem evidências de que realmente existiu, mas a sua o demonstrar uma intenção religiosa é ainda muito dúbio. Nem mesmo o achado relativamente recente de El Sidrón, Espanha, permite suportar tal argumento, nem mesmo o de violência e conflito entre grupos neaderthalianos, pois muitas das evidências podem estar relacionados com perturbações pós-deposicionais. A procura da sobrevivência relacionada com crises alimentares de outros recursos parece uma razão mais plausível.

Enterramento
  O enterramento, com eventual deposição está praticamente confirmado para o Paleolítico Médio. No Paleolítico superior, confirma-se a utilização das sepulturas, bem como o recurso ao ocre e a conservação de adornos. O achado do menino do Abrigo do Largar Velho permite, para além de evidenciar o processo de assimilação genética, um processo de assimilação cultural.

Ocre
O ocre, quer como matéria prima para a arte parietal quer para o cuidado e preparação dos seus mortos. Nas sepulturas, o ocre deteria um significado particular, podendo esta relacionando como elemento de enfatização da figura masculina contudo já foi observado ocre em sepulturas femininas. Também se encontra atestado a procura de fósseis e conchas. Os homens do Paleolítico procuravam conchas nas costas, cujo raio de abastecimento rondavam entre os 100 e os 200 km o que corresponde aos dados actuais sobre a existência de grupos culturais mais ou menos estáveis. A finalidade de utilização das conchas para adorno, não havendo dados coesos sobre uma ouro sentido do seu interesse para além do estético e decorativo.

A Arte Paleolítica
Este complexo universo de expressão simbólica do próprio sentido do plano sobre-humano do homem na época em que se insere, divide-se em duas grandes categorias: a da arte parietal e a da arte móvel. Relativamente á arte parietal é dado a compreender delimitando-se numa área que vai desde os Urais até a faixa ocidental atlântica, nomeadamente Espanha e França, e Portugal com o seu brilhante exemplar, no campo do rupestre, do sítio do Vale do Côa. Da concepção artística, verifica-se a concepção de um sistema coerente, organizador e figurativo. Apesar de possibilidade de correlação estatística, não é possível reconstituir os contextos ou significados, deixando o pré-historiador fluir á própria imaginação.

  O que se pode concluir é que quase nada se sabe acerca dos ritos paleolíticos, já que nem gestos ou crenças se fossilizam. O que podemos verificar é a evidência da existência desses mesmos ritos, mediante a constituição única de um plano, uma plano de carácter organizador, supõem a existência e obediência a um cânone artístico. Por outro lado, os santuários, em muitos casos só foram visitados uma única vez, contrastando com outras, que verifica uma presença muito intensa.
  Apesar de em termos concretos não se poder afirmar que a investigação presente conhece o todo o conjunto de crenças e ritos, bem como o modo como se organizam, encontra-se contudo atestado que os homens do paleolítico médio e superior já possuíam toda uma sensibilidade no que toca ao cuidado e culto dos mortos, bem como a presença de um ciclo mitológico, que se apresenta como um fenómeno organizador do espaço e o reflexo do contacto com este.



Fonte: LEROI-GOURHAN, A. (1964) - As Religiões da Pré-história, ed. 70, Lisboa

chacalnegro
Bom, a questão essencial aqui é definir religião. Religião é o mesmo que crença? Por outro lado, o período a que te referes é demasiado extenso para que se possam comparar práticas "religiosas", uma vez que estas evoluem ao longo do tempo. Uma das manifestações mais antigas de crença será o enterramento dos mortos, no entanto há que ter em consideração que esses primeiros sepultamentos poderão estar relacionados com o ocultamento dos cadáveres dos predadores necrófagos. É sabido que até há 30.000 anos haviam leões das cavernas e hienas pela Europa fora, incluindo onde hoje é Portugal. Por exemplo no enterramento do neandertal na gruta de Shanidar, que  continha polens de flores, hoje sabe-se que a sua existência aí é acidental, porque os sedimentos do resto da gruta támbém os continham. Se avançarmos até ao Neolítico/Calcolítico vemos isso sim que já há religião organizada. Creio que o pararecimento da religião como hoje a conhecemos, deve-se em grande medida à produção excedentária de recursos.

 Concordo plenamente. O problema é que pensamentos e ideias não se fossilizam, e também penso que com o neolítico é que a sensibilidade para o sagrado realmente toma alguma dimensão.

chacalnegro
Citação de: Hammurabi em 14 março, 2012, 01:24
Concordo plenamente. O problema é que pensamentos e ideias não se fossilizam, e também penso que com o neolítico é que a sensibilidade para o sagrado realmente toma alguma dimensão.
Pois, infelizmente não, mas dava cá um jeito... ;) Acho que a religião organizada segundo um sistema mais ou menos uniforme de crença se prende exactamente com isso. Não sei se estás a par do que vai aparecendo sobre o Neolítico final e Calcolítico (mas penso que sim), mas vemos uma uniformização da crença dos habitantes dos grandes povoados de norte a sul da península ibérica, materializados pelo mesmo tipo de "ídolos" e práticas funerárias. Se olharmos para o fenómeno do megalitismo, vemos que é ainda mais alargado e sistemático (embora de foma não sincrónica com os resto da Europa).
Penso que o parecimento da religião tem a ver exactamente com a seguinte ordem: produção de excedentes - aumento demográfico - hierarquização da sociedade - elites - fundamentação religiosa das assimetrias sociais. Convém referir que ao apresentar este esquema não estou a falar das crenças pessoais, mas da corporativização da crença.

Mephisto
Frutuoso diálogo! As coisa que uma pessoa aprende  ;)
Caros historiadores, é impossível, para mim, debater este assunto convosco no entanto tenho uma sensação em relação a isso que gostava que ponderassem e já agora dessem o feedback.
Imagino, o que seria para o homem nessa altura, contemplar a Mãe Natureza em todo o seu esplendor, grandiosidade e beleza, a par dos predadores nada meigos, suponho, que por ela deambulavam. Imagino como se sentiria o nosso antepassado, tão pequeno perante a majestosa Natureza. No fundo, talvez fosse uma espécie de impacto permanente como nós podemos observar, ainda hoje, quando nos colocamos em frente das cascatas do Niagára, de Iguaçu, quando contemplamos toda a força da natureza em bruto numa interior Amazónia. Não sei. Se ainda hoje, que já dizimamos meio planeta, a Natureza continua capaz de impressionar o mais viajado e sábio homem existente, como seria naquela altura? Observar a lua e o céu em comunhão com a beleza, como nós nunca poderemos imaginar ser possível.
Penso que suscitaria naquelas mentes um profundo sentimento sagrado. Não creio que fosse propriamente um sentimento religioso no sentido transcendente da divindade. Talvez um culto organizado em torno do sagrado que a Mãe Natureza transmitia. A bem dizer, um paganismo primitivo em torno dos elementos naturais ao invés de uma consciência politeísta.

Abraço

Historiadora, eh isso é um elogio muito grande, sou muito pequenina em sabedoria nestas coisas  ;D

  Viver nestes tempos não era brincadeira, os nossos antepassados competiam com animais que eram tanto poderosos quanto perigosos, já para não falar dos fenómenos climáticos adversos. Mas se por um lado o medo, por outro haveria um certo fascínio, e possivelmente estes dois sentimentos caminhariam lado a lado e se calhar um para compensar o outro. E quem sabe um forte sentido criativo, nunca se saberá ao certo...

Mephisto
Perdão, não tinha reparado  :) historiadora.
Pois isso é a vossa praia. Eu nestes campos históricos entrego as minhas dúvidas ao Chacalnegro. Agora se ele não responder começa a sobrar para ti também  ;D. Brincadeira.
A minha visão do eventual panorama religioso primitivo é comparado ao que vejo actualmente. Penso que o fascínio pela Natureza é imutável, por isso me saiu aquela ideia de bolso. É o que me faz mais sentido dentro das minhas limitações nesse campo do conhecimento.

chacalnegro
#7
Epa, não sei se o Homem em épocas mais recuadas tem consciência e valoriza a Natureza como um todo. Considerando que a vida era uma luta diária para encher o estômago e sobreviver sobretudo aos ataques predatórios de outros animais, parece-me que essa consciência se limita ao mais básico. Convém não esquecer que entre os primeiros hominídeos e o Neolítico vão cerca de 3 milhões de anos. É muito tempo de evolução!
Aquilo de que tenho conhecimento a partir da arte pré-historica mais antiga é que a crenças e baseiam essencialmente no culto aos animais caçados e à fecundidade da espécie humana. Numa gruta, em França, entre as várias pinturas que enchiam as paredes, aparecem 3 figuras humanas híbridas (provavelemente vestidas com peles de animais), interpretadas como feiticeiros ou xamãs. Provavelmente executavam rituais propiciatórios de boas caçadas. Ainda nesta gruta foram descobertas 2 figuras de bisontes, em argila, que confirmarão a "vocação xamânica" deste sítio.
Pessoalmente acho que a "religião" no Paleolítico superior não deveria ser muito diferente daquilo que conhecemos para os índios da América do Norte e dos povos da Sibéria.



"Pequeno feiticeiro" - grotte des Trois-fréres - período magdalenense - 15.000 a. C.



"Grande feiticeiro" - grotte des Trois-fréres - período magdalenense - 15.000 a. C.

Ao mesmo tempo surgem numerosas figurinhas femininas de "atributos" exagerados, vulgarmente chamadas de vénus, sendo objectos de reverência à fecundidade feminina. Curiosamente, o culto da maternidade, transmutado na Grande Mãe é o arquétipo sagrado que irá perdurar mais tempo e que ainda hoje se mantém.

A sendentarização vai tranformando gradualmente o culto aos animais selvagens num sistema de crença mais elaborado, que já contempla fenómenos com um grau maior de abstracção como o sejam o céu e a terra. Á medida que a caça perde importância e a agricultura/pecuária passam a ser a actividade económica básica, os animais cultuados passam a ser os domésticos, como a vaca e a dependência dos elementos atmosféricos leva à divinização do céu, fonte de chuva e da terra, suporte da agricultura e fonte de sustento.

É nesta altura (Neolítico) que surgem os primeiros recintos rituais, os primeiros túmulos com oferendas aos mortos, os primeiros templos. A crença localizada passou a religião...

Mas respondendo à tua pergunta mais do que fascínio, o Homem pré-histórico sente respeito e temor pela Natureza porque é ela em última instância que lhe concede a vida e a morte.



Çatal Huyuk - Turquia - Templo com cabeça de touro




Çatal Huyuk - Turquia - Deusa Mãe a dar à luz, apoiada em dua leoas.




Mephisto
Fantástico  ;) Prova-se que o religioso é um inconsciente real no interior da nossa mente. Vai de encontro a este livro que estou a ler, embora o período-alvo de estudo, seja mais curto. É uma motivação natural em nós. Será?

chacalnegro
Citação de: Mephisto em 18 março, 2012, 23:49
Fantástico  ;) Prova-se que o religioso é um inconsciente real no interior da nossa mente. Vai de encontro a este livro que estou a ler, embora o período-alvo de estudo, seja mais curto. É uma motivação natural em nós. Será?
Creio que sim. Acho que a necessidade da crença advém exactamente da nossa impotência perante a Natureza, perante o seu curso, perante a ordem natural nascer-viver-morrer. Só o Homem contemporâneo na sua falsa visão de indepedência perante a Natureza é que acredita que não é, de todo, um ser religioso. As consequências estão à vista: um planeta a tentar sacudí-lo da sua face (e isto sem entrar nas implicações teológicas). ;)

Mephisto
#10
Sim, não vamos entrar na teologia  ;D Mas estás a dizer exactamente o que este estudo reporta. Atenção que o livro é acerca das religiões mas no contexto que acabaste de dar. Interessante como os pontos de vista convergem aqui e ali. Os teus como historiador e os do autor como teólogo e filosofo.

chacalnegro
#11
Uma coisa que nos esquecemos, mas que pode de certa maneira fazer compreender melhor a religião é sua origem etimológica da palavra. Não estou a dizer nada de novo, basta ir à wikipedia e esta informação está lá ;). Religião é um termo que advém do verbo latino "religare" - religar. Isto tem uma implicação mais profunda e podemos perguntar porquê religar e não simplesmente ligar? Na verdade o conceito significa que a ligação já estava feita enquanto nós sejamos resultado de criação: somos ligados pela criação ao criador, seja ele qual for (a Natureza, Deus, ou ambos em última instância). A religação é a segunda parte do processo. Estabelece-se quando nós, seres inteligentes, tomamos conhecimento da nossa própria dimensão enquanto objecto de criação e como peças de uma grande máquina. A religião é o óleo que lubrifica cada roda dentada para que desempenhe o seu papel eficientemente neste engenho.