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  • Excerto de um conto
    Iniciado por Mikv4
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Olá a todos,

É incrível, mas só agora é que reparei nesta secção do fórum! E visto que a literatura é um dos meus hobbies favoritos, claro está que me vejo na obrigação de colocar aqui qualquer coisa  :)
Assim, fica aqui um excerto do conto "Visão" com o qual participei no "I Concuso Literário Contos Grotescos – Prêmio Edgar Allan Poe", tendo conseguido o 1º lugar. Deixo só um excerto porque tenho medo que o conto inteiro ocupe demasiado espaço. Espero que gostem!


O céu é completamente negro. Não surge um único astro, um sinal tímido nas garras do breu que nos indique que existe algo para além da escuridão que esta cortina devassa aglutina. Temos somente a solitude de algo que nos devora a alma de um modo terno. Sabemos que somos corroídos por dentro, mas a visão do nosso céu é demasiado poderosa. Ao invés de lutarmos contra isso, aprendemos a devorar também. Ouvi já falar de estrelas. Espasmos brilhantes e estáticos no tapete negro do firmamento. Uma presença de esperança que combate o desespero desse ermo. Contudo, olho depois para baixo e percebo como seria redundante oferecer esperança a algo que se alimenta de ódio.

Assim, desprovido de qualquer raio de luz que ouse penetrar através do céu negro, o nosso domínio é pautado por diversos sulcos gigantescos, onde correm os nossos rios. Rios de lava efervescentes, cujo brilho e movimentos opiáceos fazem os possíveis por nos relembrar como podemos ser loucos. Borbulhantes. Quentes e densos, como se tivessem vontade própria. Cada bolha que explode é uma palpitação do coração que se encontra no fundo da lava e que vive através de nós. Elevadas junto às margens desses rios estão as parcelas físicas dos nossos espíritos. Manifestações corpóreas de uma euforia insana. Fogueiras colossais que mostram até onde a essência perversa da mente chega, mediante uma discreta lembrança dos recantos sombrios da alma. Estas fogueiras de mármore, com cerca de doze metros de diâmetro na base e seis no topo, desenham formas elípticas que se dispõem ao longo dos trilhos de terra, compostos por ossadas e salpicos de lava absorvidos pela areia. Caminhos compridos e labirínticos, culminados por várias encruzilhadas. Porém, não obstante a sua aparência traiçoeira, todos os rumos vão, eventualmente, extinguir-se nos mesmos destinos.

Ao cerrar as pálpebras, invadem-me os ouvidos sons ignóbeis mas ao mesmo tempo reconfortantes para o meu espírito. Sons com os quais nasci, cresci e sem os quais não consigo já associar a minha existência como um todo. Sons e ruídos inerentes a toda a azáfama desta grandiosa metrópole que é a nossa casa. Metais, pancadas de turbulência, madeira e vozes. Gritos de comando e gritos roucos de desespero e terror. Chamas crepitantes e labaredas no seu movimento fugaz e perpétuo. Nunca em toda a minha vida me recordo de alguma vez ter visto uma chama extinta. Não está na nossa essência. Gostamos do fogo. De estar junto dele e deixarmo-nos envolver pelo seu poder primordial e infinito. Uma única chama em movimento transmite-nos o quão poderosas podem ser as nossas almas. Uma força da natureza inexpugnável e alheia a qualquer conjectura racional.

#1
Acho que devias colocar o conto todo, Eu tenho aqui um que são 20 000 caracteres
Templa - Membro nº 708

Bom, sendo assim sigo o teu conselho. Estava com medo de colocar o texto integral por causa do tamanho e da predisposição das pessoas para ler algo mais extenso num fórum. Mas pronto, lá vai:




Do alto desta colina olho para as infinitas profundezas deste abismo etéreo e cipreste, este sepulcro carregado de demência a que chamamos de lar. O éden invertido, o verdadeiro jardim do mal, cujos desígnios negros vão para além do que pode ser concebido ou sequer imaginado. Aqui não se respira ar. Quem o tenta fazer tomba imediatamente, fulminado pelo mal omnipresente que nos invade os pulmões. Neste local de perdição somente se respira corrupção. É esse o elemento primordial que nos dá vida, que nos compassa a existência como os ponteiros de um relógio que apenas divagam pelas horas da noite. E nós envolvemos essa existência. Deixamos que ela penetre dentro de nós e que corra nas nossas veias. Não procuro explicações. Sei apenas que pertenço a este local repleto de malevolência. E isso é tão natural como a visão estarrecedora que tenho do topo desta colina.

O céu é completamente negro. Não surge um único astro, um sinal tímido nas garras do breu que nos indique que existe algo para além da escuridão que esta cortina devassa aglutina. Temos somente a solitude de algo que nos devora a alma de um modo terno. Sabemos que somos corroídos por dentro, mas a visão do nosso céu é demasiado poderosa. Ao invés de lutarmos contra isso, aprendemos a devorar também. Ouvi já falar de estrelas. Espasmos brilhantes e estáticos no tapete negro do firmamento. Uma presença de esperança que combate o desespero desse ermo. Contudo, olho depois para baixo e percebo como seria redundante oferecer esperança a algo que se alimenta de ódio.

Assim, desprovido de qualquer raio de luz que ouse penetrar através do céu negro, o nosso domínio é pautado por diversos sulcos gigantescos, onde correm os nossos rios. Rios de lava efervescentes, cujo brilho e movimentos opiáceos fazem os possíveis por nos relembrar como podemos ser loucos. Borbulhantes. Quentes e densos, como se tivessem vontade própria. Cada bolha que explode é uma palpitação do coração que se encontra no fundo da lava e que vive através de nós. Elevadas junto às margens desses rios estão as parcelas físicas dos nossos espíritos. Manifestações corpóreas de uma euforia insana. Fogueiras colossais que mostram até onde a essência perversa da mente chega, mediante uma discreta lembrança dos recantos sombrios da alma. Estas fogueiras de mármore, com cerca de doze metros de diâmetro na base e seis no topo, desenham formas elípticas que se dispõem ao longo dos trilhos de terra, compostos por ossadas e salpicos de lava absorvidos pela areia. Caminhos compridos e labirínticos, culminados por várias encruzilhadas. Porém, não obstante a sua aparência traiçoeira, todos os rumos vão, eventualmente, extinguir-se nos mesmos destinos.

Ao cerrar as pálpebras, invadem-me os ouvidos sons ignóbeis mas ao mesmo tempo reconfortantes para o meu espírito. Sons com os quais nasci, cresci e sem os quais não consigo já associar a minha existência como um todo. Sons e ruídos inerentes a toda a azáfama desta grandiosa metrópole que é a nossa casa. Metais, pancadas de turbulência, madeira e vozes. Gritos de comando e gritos roucos de desespero e terror. Chamas crepitantes e labaredas no seu movimento fugaz e perpétuo. Nunca em toda a minha vida me recordo de alguma vez ter visto uma chama extinta. Não está na nossa essência. Gostamos do fogo. De estar junto dele e deixarmo-nos envolver pelo seu poder primordial e infinito. Uma única chama em movimento transmite-nos o quão poderosas podem ser as nossas almas. Uma força da natureza inexpugnável e alheia a qualquer conjectura racional.

Rodo finalmente a cabeça ligeiramente para a esquerda, em direcção a Oeste. Rapidamente sinto os meus lábios a torcerem-se de deleite. O Mar dos Desígnios. O núcleo apocalíptico que para sempre modificaria a noção estruturante da nossa realidade cognitiva. Foi ali que tudo começou. Nas águas densas e estagnadas, tão escuras que não existe horizonte. O início do céu e o fim do mar tocam-se, gerando apenas o nada. Do negro nasce o negro, nada mais. Tão abruptamente como um sufoco retido na garganta, tão ligeiro como um arrepio que percorre a espinha. Eles simplesmente surgiram. Um a um, debatendo-se lentamente na tona das nossas águas negras, como se tentassem ainda combater o destino que se debruçava sobre as suas figuras. Vi de relance as suas faces lívidas que queriam gritar. Porém, o lodo primordial das nossas águas impedia-os de o fazer, lançando-se tenebrosamente sobre as suas bocas e penetrando docilmente nos pulmões. Em pouco tempo, não sabíamos já se esse momento fugaz teria sido ilusório, ou se no fundo do mar residiam de facto os corpos daqueles seres de olhar mortiço.

Após alguns dias veio a resposta. Soube-o mal vimos alguns cadáveres estranhos nas margens empoeiradas do Mar dos Desígnios. Formas disformes e sem vida descansavam tranquilamente, cobertas pelos resquícios graníticos das cinzas que flutuavam como neve. O mais hediondo destas criaturas residia nas suas faces. O modo de como aqueles olhos protuberantes mergulhavam na nossa própria carne, o modo de como nos observavam já depois de mortos. Decidimos arrancá-los e lançá-los para as chamas fluviais dos nossos rios de fogo. Não tornariam a olhar para nós, nunca mais. Pegámos depois nos corpos e prendemos o que restava das carcaças no mármore das construções elípticas em que residiam as fogueiras. Era necessário demonstrar, provar a nós mesmos que não receávamos estes visitantes. E era essa a mais pura verdade. Não existia receio. Somente uma certa curiosidade mórbida, que segredava algo junto dos nossos ouvidos: de onde teriam estas estranhas criaturas surgido?

Como resposta à nossa interrogação, na noite seguinte eles vieram aos milhares. Tanto do Mar negro, como das colinas que ficam a Este e a Sul. Eram tantos que as sombras deixaram de ter qualquer recorte, tornando-se somente numa enorme mancha insípida e calejada de alucinações. As formas dos corpos, não obstante de serem humanóides à nossa semelhança, eram totalmente desproporcionadas, deformadas. Os braços eram demasiado curtos e descarnados. O abdómen e as costas pareciam igualmente enfraquecidas, como se não fossem capazes de suportar o mais leve peso. Preparámo-nos para o embate o mais depressa que pudemos. Não obstante de parecerem criaturas relativamente inofensivas, vinham num número assustador e aproximavam-se de frentes distintas. O som que faziam era a fonte de maior desconforto para nós. Gritos roucos e enlouquecidos enchiam agora os vales e as margens do mar, em direcção ao coração da nossa metrópole. Contudo, no momento em que a situação se tornava inquietante, um rasgo de compreensão circundou os nossos receios. Nós conhecíamos bem os gritos. Os bramidos que enchiam as nossas terras não eram impetuosos. Não continham em si qualquer indício de ameaça ou de fúria. Não. Eu conhecia bem o timbre e o descontrolo adjacente a tais vozes. Não me restaram dúvidas quando vi as expressões das primeiras criaturas que desceram até ao nosso território. Eles não nos atacavam. Pura e simplesmente vieram até nós num acesso louco de terror e demência. Os olhos – a janela da alma – mostravam pavor, não cólera ou frenesim. O mais curioso é que, apesar de todo o medo que os invadia, eles atropelavam-se para chegar até nós. Quase como se uma força sobrenatural os impelisse a descer desorbitadamente por entre os sulcos circunscritos do vale. Alguns deles chegaram mesmo a cair para os rios de lava, impelidos pelo pânico cego que os guiava.

Os primeiros a chegar foram imediatamente oprimidos pela nossa força. Os restantes, embora enlouquecidos pelo que se apoderara das suas almas, tiveram discernimento suficiente para se ajoelharem perante nós, derrotados pelo inevitável. Estávamos confusos. Com as nossas armas ainda em riste entreolhámo-nos. Não fazia sentido. Aberrações que surgiram do nada, parecendo vir com o intuito de nos atacar, mas que se prostraram perante nós assim que chegaram ao interior da metrópole. Cautelosamente, um de nós falou. Não houve resposta. As criaturas continuavam a gritar entre elas, apontando também freneticamente na nossa direcção. Decidimos levá-los para o fosso. Um local situado no subsolo, amplo em comprimento mas estrangulado em altura, construído propositadamente para que a luz não irrompesse no seu interior. Era o castigo dado aos que de nós não cumpriam as regras – algum tempo num local repleto de trevas, cuja estrutura mal permite rastejar.

Após alguns dias, decidimos tentar comunicar com eles. Tentar arrancar a informação mais relevante neste momento. Quem eram, de onde vieram e, essencialmente, porque vieram até aqui. Tirámos três criaturas ao acaso das garras negras do fosso. Tentámos comunicar, mas sem resultados. Não falavam a nossa língua. Embora fossem também capazes de articular sons, a sua voz era muito mais fina e complexa do que conhecíamos. Passámos à tortura. Queríamos também descobrir mais sobre a anatomia destas aberrações da natureza. Descobrimos que tinham muito menos resistência do que nós. Não suportavam a dor e pereciam com uma rapidez quase desmesurada. Ganhámos o hábito de as amarrar com correntes de ferro às bases das fogueiras de mármore. Sabíamos que era isso o que as mais fazia sofrer. Mais do que a escuridão elas temiam o fogo no corpo.

Contudo, estas criaturas continuavam a surgir do nada. Das colinas, por entre os vales, do Mar. E nós continuámos a aprender. Depois de um tempo interminável decifrámos finalmente os segredos do seu dialecto. Descobrimos quem são. Descobrimos de onde vieram. Descobrimos também o nome que dão ao nosso lar e à nossa espécie. Descobrimos que o elo entre os nossos mundos não é físico mas sim espiritual. As criaturas disseram-nos que estão já mortas e que este é o seu tormento. Ouvi também uma delas a berrar em plenos pulmões, pregada a uma das fogueiras:

«Demónios do Inferno! Um dia Deus perdoará todos os pecadores. E nesse dia Ele virá para nos libertar e vos destruir!».

Esbocei um sorriso. Para além de fracos, estes humanos são também cegos. Rezem antes ao vosso Deus para que nunca encontremos a passagem para a Terra. Será o dia em que conhecerão o verdadeiro Inferno.