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  • Extracto de um livro que um dia, se Deus quiser, hei-de publicar.
    Iniciado por Templa
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Quando chegámos ao Gerês, o crepúsculo derramava os últimos raios avermelhados de sol nas montanhas verdes, sacudidas durante o dia por uma canícula abrasadora. O Cávado, no fundo do vale, assemelhava-se à pele seca de uma cobra, que aproveitara o estio para mudar de roupa. Um tímido regato, visível da estrada, corria em baixo e parecia um esqueleto ultrajado por uma magreza hitleriana que lhe roubara a amplidão das carnes e lhe deixara a ossatura a descoberto. A barragem da Caniçada fora despejada e os vestígios do que outrora fora uma aldeia cheia de vida emergiam saudosos na paisagem esquálida e triste, sacrificada pelas águas que agora tinham desnudado grosseiramente. Por entre os despojos do passado soçobrava, com a dignidade da morte, a torre da igreja de Venda Nova, a antiga, o cemitério, a escola primária e algumas casas que exibiam orgulhosas as suas vestes de fantasmas dispostos a trazerem-nos à memória o berço sobre o qual assenta o progresso e a orgulhosa electricidade que chega às lâmpadas das nossas casas.
Deambulámos um pouco pelas redondezas com uma curiosidade nostálgica, até chegarmos à residencial. A casa de granito era antiga e grande, assemelhando-se a um palacete. A frontaria principal era virada a poente e,  para se chegar lá,  tivemos de percorrer uma enorme latada de videiras em arco, desde o portão de entrada até à grande escadaria em frente, que dava para a zona nobre. Do lado esquerdo havia uma cozinha rústica com um forno a lenha, que outrora fora a serventia da criadagem, ao lado da qual se viam os restos de uma cavalariça. Atrás, numa leira mais acima, para onde se subia por umas escadas toscas, cresciam na parte central umas couves-galegas e, junto às paredes, numa espécie de canteiros, viam-se, já um pouco tisnadas pelo sol, umas açucenas brancas, que os donos da pensão costumavam vender por altura das comunhões no mês de Junho. Do lado direito, com uma entrada na parte lateral, junto a uma escadaria exterior, existia uma enorme cozinha com três frentes, numa das quais havia duas janelas e uma porta envidraçada, por onde entrava uma luz coada pela sombra de duas amoreiras. A cozinha confluía com o início da escadaria externa e era onde agora, no seu novo mobiliário de linhas clássicas, eram servidas as refeições, sobretudo os pequenos-almoços. Os hóspedes acediam até ela após transporem uma escada interior, em caracol, que se iniciava num átrio amplo sobre o qual uma clarabóia deixava entrar a claridade e de onde saía o fio de um enorme lustre.
Grande parte da zona dos quartos, todos com janelas românticas, situava-se a nascente e isso acabou por tornar-se num inconveniente para mim. Na rua em frente havia uma igreja e do sino, de quinze em quinze minutos, repicavam as horas arrastadas de quem não consegue conciliar o sono, com o meu cérebro a querer saltar-me pelos olhos esburacando-os como se fosse um papa-formigas. Assim, no dia seguinte, tratámos de efectuar a mudança. Dois quartos da ala poente tinham acabado de ficar vagos.
Da antiga casa senhorial viam-se vestígios sobretudo nos grandes salões, transformados agora em salas de estar dotadas de cómodos sofás. Era aí que uns cavalheiros e umas damas, pintados em retratos antigos pendurados nas paredes, nos espiavam atónitos com as mudanças sofridas pelo palacete, adaptado aos tempos do turismo de habitação.
Foi a este cenário que os viajantes chegaram pelas vinte e duas horas de uma Sexta-feira em que a luz eléctrica, talvez zangada pelo vazio da Caniçada, fez a sua greve, restaurando a grande essência da noite, o medo. O apagão ocorrera por causa de uma trovoada, desde cedo a rebolar-se num céu envolto por uma atmosfera quente e cujos primeiros pingos de chuva nos obrigaram a retirar apressadamente a bagagem do carro. Seguiu-se a distribuição das velas, após o que iniciámos uma procissão que alumiava os retratos, dos quais os olhos se projectavam sobre nós numa devassa contínua e insistente.
Mal largámos as malas e as velas, esfomeados, procurámos, por entre as nesgas da escuridão, uma luz que nos alumiasse até uma tasca qualquer. A Casa Capela, um restaurante rústico e igualmente em granito, acabou por nos servir, à luz dos círios, um delicioso arroz de cabidela. Depois, como a electricidade continuasse renitente, voltamos para a mansão.
Os miúdos ficaram no meu quarto, onde havia duas camas. Bárbara e eu dormimos juntas, como tantas vezes acontecia na casa da avó Beatriz. Contudo, antes de nos deitarmos, sentámo-nos as duas sobre duas pequenas almofadas, nuns banquinhos existentes nas janelas românticas. Estivemos algum tempo a observar os relâmpagos cuja luz entrava através dos vidros e das cortinas, enquanto eu, ao som dos trovões, invocava a Santa de Bárbara, sobretudo para serenar os garotos.
O Francisco, cheio de medo, deitara-se mal me preparava para apagar a vela, tapando a cabeça com a roupa da cama. Mas não sem antes idealizar um cenário de castelo assombrado em que as almas penadas retratadas nos salões iriam desempenhar os seus papéis de fantasmas ansiosos por uma noite tenebrosa como aquela para assustarem os hóspedes. E, do receio de ser importunado durante a noite pelos seres do outro mundo deu-me conta, naquele seu jeito engraçado:
− Ó Lena, estou cheio de medo. E se o homem dos bigodes vem aqui ao quarto tirar-nos a roupa e roubar-nos as malas? – perguntou, referindo-se a um dos retratos do átrio, junto da  clarabóia.
− Ó Francisco − apressa-se a irmã a tranquilizá-lo − não tenhas medo. A Lena está aqui e ela adora-nos tanto!...
De repente percebi que, para os garotos, sobretudo para Bárbara, eu era uma espécie de anjo da guarda, com aura e tudo, capaz de a proteger das diabruras do irmão, dos gritos da mãe e dos severos castigos do pai, os velhos chatos e maus em que ambos se haviam tornado por causa de uma autoridade espartana que, apesar de tudo, não tinham conseguido instituir. Sobretudo Salvador. E a culpa de tudo era a crença de que os filhos se educam com a comida na mão esquerda e o chicote na direita, se nenhum dos dois for canhoto, o que para Mercedes teria de ser invertido. Ela era, realmente, sinistra.
Consciente do meu papel, agora semelhante ao de Santa Bárbara apressei-me a sossegar o miúdo:
− Ó Francisco, os fantasmas não existem. Isso são coisas que se dizem quando queremos inventar algo para nos divertirmos. Já as trovoadas são as nuvens carregadas de água a chocarem umas com as outras e a fazerem aquelas faíscas antes de começar a chover, como vai acontecer daqui pouco. Além disso, achas que eles queriam os teus calções para alguma coisa? Só se fosse para fazerem chapéus − disse, brincando, dando uma no cravo e outra na ferradura.
− Então as nuvens bebem água? – perguntou ele, que antes tinha experimentado grande curiosidade ao ver a albufeira vazia − Se calhar  foram elas que beberam a da barragem!...
− Beberam alguma – respondo, a braços com a dificuldade de ter de me dividir, a tão tardias horas, entre uma explicação das leis da física e outra mais transcendente. E, pela primeira, lá me ocorreu tomar como exemplo a panela da sopa da avó Beatriz, quando o vapor se escapulia entre o testo e a panela. Depois, prossegui:
− Quando a água está a ferver, evapora-se e vai para o ar, até às nuvens. A seguir cai outra vez transformada em chuva. É o que acontece sempre, incluindo com a água dos rios e do mar.
− E o outro mundo, onde é que ele é?
− Já te disse que não existe.
− Mas, eu já ouvi dizer que quando os velhotes morrem vão para lá – insistiu o rapaz.
− Olha, Francisco, se ele existir, quando eu for para lá venho cá dizer-te como é, está bem? – pergunto, tentando acabar com a conversa, em que o sono perturbado da criança já via mais do que convinha ao adiantado da noite.
− Hui! Que medo! − exclamou ele, experimentando um pavor real, ao mesmo tempo que cobria de novo a cabeça com a roupa.
A Bárbara assistia sem grande receio à conversa e aos roncos dos trovões. Mal apanhou o irmão a dormir, insistiu:
− Ó Lena, se calhar o outro mundo é perto de nós. Só que nós não temos uma chave para abrir a porta...
− Não sei, Bárbara. E agora vamos dormir, que já é tarde...
Enquanto o relógio da torre da igreja defronte badalava as horas nocturnas e o meu sono permanecia branco, magicava nas palavras da garota e, pela primeira vez, na noite duplamente escura, pensei na possibilidade da existência de outra dimensão.

Templa
Templa - Membro nº 708

gostei Templa :) girissimo. Eu também tenho um quase pronto e se um dia calhar (e claro houver dinheiro) irei publicá-lo. Mas o que eu gostava mesmo era que o la féria (sonhos demasiado altos) pegassem na obra, visto que é uma adaptação do "fantasma da ópera"
Eu, eu e eu, mai nada! :P

Citação de: maryn em 27 março, 2011, 18:39
gostei Templa :) girissimo. Eu também tenho um quase pronto e se um dia calhar (e claro houver dinheiro) irei publicá-lo. Mas o que eu gostava mesmo era que o la féria (sonhos demasiado altos) pegassem na obra, visto que é uma adaptação do "fantasma da ópera"

Ah, como eu gostava de ver!!! Diz-me uma coisa, Moras em Lisboa?
Templa - Membro nº 708

Eu, eu e eu, mai nada! :P

És capaz de ter alguma sorte. Mas olha que só singra na escrita quem andar no meio...

Se tu soubesses o que os senhores de Lisboa já fizeram com um livro meu... tem cuidado não mandes o teu trabalho para ninguém sem o registares primeiro...


Felicidades.

templa
Templa - Membro nº 708

para quem não percebe nada da matéria...o que é registar um livro?
Eu, eu e eu, mai nada! :P

Citação de: maryn em 27 março, 2011, 19:59
para quem não percebe nada da matéria...o que é registar um livro?

É ir à Inspecção geral das actividades culturais e registá-lo. Imagina que alguém o apanhava e dizia que era dele. Como provar que o trabalho era teu???
Templa - Membro nº 708



Obrigada meninos. Um dia destes ponho aqui mais qualquer coisinha.


Bjs.


Templa
Templa - Membro nº 708

DiogoM
CitaçãoExtracto de um livro que um dia, se Deus quiser, hei-de publicar.

Já foi publicado ou nem por isso? :)

Não, ainda nao, estou a burilá-lo um pouco e se queres que te diga tenho andado bastante preguiçosa
Templa - Membro nº 708

DiogoM
Citação de: Templa em 13 julho, 2011, 13:28
Não, ainda nao, estou a burilá-lo um pouco e se queres que te diga tenho andado bastante preguiçosa

Deve-se aos tais gatos e cães a tua preguiça?  :laugh:

Templa - Membro nº 708