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  • Uma galinha chamada Guilhermina - A propósito da gripe das Aves
    Iniciado por Templa
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Tinham passado três dias quando a mulher, munida das testemunhas necessárias que asseguravam a veracidade do nascimento, na conservatória, procedeu, com um ar embevecido de galinha de abas largas e bico aberto até aos olhos,  ao registo da sua portentosa criação,   nascida depois de um bem sucedido tratamento de fertilização que presenteara toda a casa com  doze felizes rebentos, douradinhos e lindos como um sol de primavera.
Fora difícil, mal soube que iriam nascer tantos gémeos iguaizinhos, arranjar-lhes um nome que os distinguisse uns dos outros, quando tivesse de lhes dar de comer, ou quando tivesse de lhes chamar a atenção pelas asneiras que, inevitavelmente, eles haveriam de cometer durante a infância, ou até mesmo em idade adulta. E, como a escolha se tornasse difícil e a confusão das nomenclaturas fosse quase certa, logo que se dispôs a registá-los como criaturas de Deus, sujeitas igualmente à dos homens, de imediato tratou de arranjar um critério de distinção, uma espécie de mnemónica que evitasse ferir a susceptibilidade dos ganapos,  quando lhe saísse da boca um nome sem correspondência alguma com as penas do interpelado.
Daí ter optado pelo alfabeto, em primeira linha, pondo-lhes nomes de A a M, pela ordem de chegada a este mundo. Pese embora o facto de poder vir a albardar algumas criaturinhas com um  nome ridículo que as envergonhasse,   sempre haveria a hipótese de recorrer aos diminutivos para os chamar. E, quando se plantou diante do homem da repartição, puxou da cábula onde tinha alinhavado as  doze designações daquela gentinha toda  que, desde há três dias, povoava a sua capoeira para consumo familiar, repetindo-os ao conservador embevecida como toda a galinha mãe.
O que primeiro viu a luz da aurora  chamar-se-ia Artur, como o famoso rei de Inglaterra,  dado ter tido a graça de ser macho,  embora ainda não tivesse grandes sinais exteriores desse estatuto. A pobre mãe desejava, com toda a força de matriarca,  que o catraio fosse tão famoso como o monarca mais a sua lendária espada, mas que, diferentemente do homem, sobrevivesse às quezílias da história.
A segunda, uma fêmea fina como um alho, que lhe piscara o olho mal pusera o pé no mundo, chamava-se Beatriz, a terceira Cátia, a quarta Débora... depois Eduardo... Fábio... Guilhermina... Hugo... Igor... Joel... Leonor e, finalmente, a última seria Márcia. Eram nomes bem modernos, importados quase todos do Brasil,  juntamente com as telenovelas com que a mulher se entretinha ao fim da tarde na televisão, enquanto fazia o jantar e o marido não chegava com o afã do zapping na hora do telejornal, impedindo-a de ver fosse o que fosse. E,  à medida que o conservador fazia as anotações devidas, no fundo da alma daquela mãe,  ilustrados por um sorriso de felicidade,  havia a esperança de que todos aqueles  duodécimos que lhe competia criar nunca padecessem  das disenterias,  das febres e das maleitas comuns  aos  os recém-nascidos, quase sem excepção.
Depois de cumprir os rituais da legalidade junto do registo que, doravante, atestava a existência dos cachopos, o passo seguinte tinha um aspecto exclusivamente sanitário e preventivo. Eram as vacinas, os xaropes, os cuidados básicos e avançados, sob a um rigoroso controlo,  não fosse uma gripe mazinha e traiçoeira irromper pela capoeira como um lobo de Alsácia esfomeado,   matando-lhe as suas frangas e frangos e obrigando-a, depois, a intrincados funerais. Era, pois, preciso controlar a vida daquela filharada toda até à exaustão, instruindo memo até um rafeiro para que exercesse uma apertada vigia ao galinheiro. A missão do cãozito seria impedir viajantes estrangeiros, em missões de espionagem pelo azul do céu, de depositarem na capoeira um daqueles vírus peçonhentos que, nos últimos tempos, tinha sido o terror dos galináceos e de todas as outras aves do mundo, ao ponto de ter desencadeado uma espécie de histeria colectiva no reino animal superior  e de onde partiu a ideia de chamar os bois pelos nomes registando-os.
Não que se preocupasse muito com tudo o que se dizia por aí sobre um assunto grato, tanto a cientistas como a jornalistas e a políticos, para quem uma gaivotazinha, morta numa praia, por velhice, ao sabor de escolioses múltiplas,  assumia a dimensão de uma catástrofe. Era a ideia de todos eles, andava por aí iminente um apocalipse bíblico e à medida da profecia, prestes a abater-se sobre os humanos.
No fundo, como os publicitários, não passavam todos  de uns exagerados,  que já se tinham esquecido da mortandade que, de vez em quando, dizimava Guilherminas, Leopoldinas, patos Marujos e aves Araújas,  antes de alguém lhes poder colocar o termómetro e de lhes medir a temperatura prévia ao suspiro agonizante. Depois, mal o esqueleto baixasse à terra do quintal, onde, como adubo, faria florir as laranjeiras e os limoeiros na primavera, vinham os ciganos exumar os cadáveres para comerem, sem que a malina da carne lhes contaminasse a vida errante de séculos e séculos. Mas isso era dantes.
Agora, as galinhas, os galos e  os pobres pintos, com apenas alguns dias fora da casca do ovo, depois do choco sob as asas da mãe, viam-se de repente convertidos em prisioneiros a quem só faltava colocar uma pulseira electrónica, confinados a um espaço exíguo de onde nunca poderiam sair.
Já o tempo, o milho e as couves da horta  tinham engordado a criançada quando, num dia acabrunhado de Outono, Guilhermina dava mostras de não se aguentar, nem nos dois e muito menos num pé, no poleiro da capoeira,  de onde os ovos sumiam rapidamente sonegados pela dona. Na véspera,  recusara-se a comer e os olhinhostinam o ar plúmbeo de quem não andava muito bem com a vida.
Abatida e cheia de olheiras, Guilhermina não pusera o ovo do dia, numa greve forçada e induzida por uma má disposição, que a fazia cambalear como um bêbedo num enjoo matinal,  semelhante ao de uma mulher grávida  no terceiro mês de gestação.
Quando a dona da quinta se apercebeu de que Guilhermina tinha o aspecto de uma galinha doente a caminho da sepultura, uma espécie de "trilema"  se abateu sobre a mulher, dividida também ela em duodécimos, e em que uma decisão sobre como agir se tornava particularmente difícil.
Se, por um lado, a justiça, em caso de desfecho fatal, a obrigava a ir ao senhor presidente da junta expor à curiosidade de terceiros as endemias internas da coitadita da Guilhermina, por outro, considerava seriamente a hipótese de a meter na panela, enquanto as febres não fossem suficientes para a fazer baixar à cova  e enquanto ninguém pensasse que uma galinha, ou um galinheiro inteiro, tem o direito de morrer de morte sem ser matada, eximindo-se dessa maneira ao gume da faca em dia de  canja ou de arroz de cabidela.
Além do mais, se decidisse denunciar a doença da bicha, o mais certo era colocarem a capoeira de quarentena,  mesmo que os outros irmãos estivessem sãos como de peros. Isso se não optassem por degolar as criaturas, esquartejando-as a seguir numa autópsia milimétrica e  fazendo depois uma cremação colectiva ao som de narizes contristados e de  um réquiem de Mozart.
Por entre tantas dúvidas e implicações de um passo mal dado, a mulher, após mais umas quantas  deduções sobre o eventual prejuízo pelo assassinato de um galinheiro inteiro se a lei resolvesse levá-lo a cabo, decidiu que Guilhermina morreria no recolhimento do lar,  engolindo de vez em quando um pouco de água,  onde previamente dissolveria uma pequena porção de enxofre para esconjurar o mal. Entretanto, esperava que as febres, ou fosse lá o que fosse que tivesse atacado a sua Guilhermina, não se propagassem ao resto da criação. Tal como entre marido e mulher ninguém devia meter a colher, a dona da quinta  entendia igualmente que a sua capoeira não tinha de ser submetido aos olhos cruéis  do mundo para uma limpeza étnica. E, se por acaso Artur, Beatriz, Cátia, Débora Fábio, a sua Guilhermina – continuava a seguir o critério inicial determinante para o chamamento dos "filhos" – Hugo, Joel, Igor,  Leonor e Márcia, acabassem por bater a caçoleta indo fazer companhia à pobre moribunda no quintal,  sob as laranjeiras e limoeiros,  sempre poderia dizer, teatralmente falando, que toda a família se consolara com as carnes brancas, sem ponta de colesterol nem triglicídeos, das galinhas de um galinheiro do  qual só Templa se lembraria de contar a história.

08-03-2006
Templa - Membro nº 708

#1
Templa, és um caso sério  ;D ;D ;D

Tens todos os dotes para seres uma excelente escritora. Nem que fosse de contos. E olha que eu li e reli os Contos da Montanha e os Novos Contos da Montanha do Miguel Torga... os teus não ficam nada atrás, to digo  ;)

O que mais gostei, para lá duma magnífica capacidade inventiva, é a forma como brincas com algumas das parvoíces da burocracia legal que, na histeria colectiva, ordenava as denúncias de capoeiras e pocilgas, vacinações animalescas com o senhor Presidente da Junta a ter, finalmente, um papel digno de Presidente, a ver assim a sua população, não votante mas residente, a estar-lhe na directa jurisdição, com ampliação significativa dos seus poderes de autarca.

Um primor e merecia ter sido publicado em jornal de âmbito nacional por essa altura. Mas, ao que parece, a tal gripe vai voltar, por isso está ainda na moda  ;D ;D ;D

Não pares!!

Olha que eu tenho umas largas dezenas destas críticas sócio-políticas veladas. Nessa altura, existia uma secção no JN que se chamava desabafe connosco. Era lá que eu escrevia, embora, hoje em dia, já não escreva como então escrevia. Mesmo a Guilhermina teve de levar uns cortes!!!

E quanto a ser escritora, acho que a partir do mês de Novembro vou finalmente dedicar-se a isso.

Obrigada pelo incentivo

Beijinho
Templa - Membro nº 708


;D ;D ;D ;D Já reparei que tens um excelente senso de humor e uma forma muito especial de o manifestares em escrita.
Vais ter sucesso, de certeza. Para começar eu faria uma compilação dos já publicados. Depois partia para algo maior; pois no teu caso a "veia" está aí, latente e muito visível, pelo que o sucesso é inevitável.
Sem querer exagerar, há contos que são interessantes, mas os teus são cativantes. E o difícil é cativar o leitor para a escrita.

Manda notícias  ;) ;D ;D

Citação de: Arph em 12 setembro, 2010, 21:45
;D ;D ;D ;D Já reparei que tens um excelente senso de humor e uma forma muito especial de o manifestares em escrita.
Vais ter sucesso, de certeza. Para começar eu faria uma compilação dos já publicados. Depois partia para algo maior; pois no teu caso a "veia" está aí, latente e muito visível, pelo que o sucesso é inevitável.
Sem querer exagerar, há contos que são interessantes, mas os teus são cativantes. E o difícil é cativar o leitor para a escrita.

Manda notícias  ;) ;D ;D

Estou toda babada. ;) O própximo que postar aqui  foi escrito a propósito do caso Mães de Bragança ;D ;D ;D ;D
Templa - Membro nº 708

Mais um pequeno sucesso e uma excelente critica!!!

Só me fez lembrar as velhotas da aldeia a dizer "cal gripe, cal doença! aqui não da nada mata-se tude e arca ca coisa!"
Homem!... Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo e os Deuses.»

Citação de: Edhelar em 12 setembro, 2010, 22:02
Mais um pequeno sucesso e uma excelente critica!!!

Só me fez lembrar as velhotas da aldeia a dizer "cal gripe, cal doença! aqui não da nada mata-se tude e arca ca coisa!"

Ultimamente é que tenho escrito pouca coisa. Ando com pouco tempo e bué de cansada....

Obrigada,

Beijinho. E também gosto de ver as tuas coisas. A Escrita é tão bom companhia!!!
Templa - Membro nº 708

Grande Templa!!!!Adorei ;)
sempre á espera de mais ;)
beijinhos :-*

Não te agradeci em devido tempo, Miss Tiny. Faço-o agora, como se a tua mensagem fosse uma carta dentro de uma garrafa à deriva no mar e que só agora chegou ao seu destino.

Beijinho
Templa - Membro nº 708