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  • Uma Crónica de viagem - A mudança de barraca
    Iniciado por Templa
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A tradição, expurgada do exagero publicitário que lhe deram alguns bem sucedidos anúncios de televisão, já não é o que era quando, realmente:
Era uma vez....
Mais uma das muitas aldeias desse Portugal rural, pobre e profundo, longe da televisão, da rádio, dos jornais e de outras virtualidades semelhantes. Tudo o que por lá se sabia eram as coisas do dia a dia, sem qualquer mérito que não fosse o de alimentar, com pouco menos de nada, espíritos castigados por muito trabalho e pouco dinheiro. O único grande espectáculo dado a observar todos os dias era, ontem como hoje, a natureza caprichosa no seu lento caminhar sem destino.
Ora, na pequena aldeia, não era de admirar que, sobretudo a gente miúda, aguardasse sempre com enorme ansiedade dois ou três acontecimentos capazes de quebrarem a rotina diária, repartida entre os jogos do pião, da macaca, o ir à escola e o executar de algumas tarefas do campo. Nessa altura, o conceito de trabalho infantil não tinha nem sequer o estatuto de espermatozóide mental esperançado na fecundação de consciência capaz de depurar fosse o que fosse que pudesse, a esse respeito, borbulhar na cabeça dos teóricos.
A pacata vida da aldeia começava a sofrer logo algumas alterações na altura da feitura do azeite, em finais de Janeiro. E quem iniciava a mudança eram umas freiras que todos os anos iam pedir os santos óleos aos lavradores abastados, vestidas de cinzento, branco e negro, parecendo às crianças seres do outro mundo (não eram por lá conhecidos os pinguins por essa época, bem como não havia sequer conceito para definir extraterrestres).
Depois, vinham as feiras ocasionais. Estenderete no chão do largo da festa, podia-se comprar de tudo um pouco, desde que a liquidez do povo o permitisse sem que, por causa disso, se pusesse em risco a própria boca.
Quase sempre, no encalço dos carros dos feirantes, seguiam uns homenzinhos, cegos, de preferência − pelo menos um deles, como mandava a tradição musical do género − que cantavam cantigas simples. O ciúme, a traição, o engano e a vilania acabavam por redundar muitas vezes em dramalhões de faca e alguidar, capazes de arrancar lágrimas a qualquer coração por mais empedernido que fosse.
Mas, a grande magia, o grande acontecimento, era a chegada dos ciganos. A partir do mês de Setembro, quando os porquitos na pequena pocilga de muitas casas começavam a ser cevados para a grande matança (esperava-se que sem qualquer vicissitude, peste, ou malina que os fizesse baixar à terra), era vê-los chegar como um comboio sem dia nem hora de partida prevista.
Logo que tal movimentação era avistada no estreito caminho de terra batida, toda a aldeia experimentava uma profunda agitação, redobrando os cuidados para com os seus haveres. A fama daquela gente de pele escura, viandante há séculos e séculos de todas as estradas e de todos os mundos, nunca fora muito abonatória... Por isso, aferrolhar as portas das cancelas, esconder o ouro, benzer os porcos e eximi-los da vista das ciganas e dos maus-olhados (que por arte e obra de Deus, do Diabo ou seja lá de quem fosse, se acreditava terem poderes maléficos), era a urgente necessidade dos dias em que o acampamento por lá assentasse arraiais. Nem mesmo as galinhas e os porcos, com três dias de sepultura, podiam descansar eternamente, sujeitos ainda à ferocidade da fome, que tanto atacava sedentários como nómadas, embora nojos de uns e de outros divergissem um pouco. Donde se conclui que os ciganos (pelo menos aqueles) não eram judeus.
Porém, a grande festa era das crianças e dos jovens. Passavam o tempo a observar os visitantes com um misto de fascínio e de medo, mal as carroças, os burros e toda aquela gente de hábitos estranhos armava as barracas. Não arredavam pé, a não ser à noitinha e com o sol já a pendurar-se nas estrelas. Mesmo assim, era o medo do açoite paterno que os fazia iniciar a debandada, para, no dia seguinte, recomeçarem a vigia.
Depois, era com nostalgia de final de romaria que os viam partir, envoltos em vestes garridas feitas de tecido a encolher na primeira lavagem, se é que primeira e única lavagem ia haver...
De vez em quando lá ia um rapazote ou uma rapariga perdida de amores vadios por um daqueles "gitanos", misturando-se assim os sangues e as crenças de uns e outros.
Mas, "a vida é composta de mudança", "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" e...
Hoje é...uma quinta-feira. São 18h e 10m.
Apanhei o comboio há poucos instantes, na Estação de Campanhã, rompendo por entre sacos, tachos, panelas, um fogão, uma botija e ainda um colchão, no meio daqueles trastes que vejo por todo o lado. Outros passageiros fizeram o mesmo. Olho para uma companheira de viagem. Sem vermos o dono da mobília, sabemos que a bordo há um ou mais ciganos.
Imagino de imediato umas quantas pulgas a conspurcarem o meu banho matinal. Vejo uma cigana e sorrio. Uma jovem deita um olhar furibundo ao meu sorriso, no vestíbulo da carruagem de primeira classe, onde viajamos todos num apertado convívio com os haveres da cigana que, sem sombra de dúvida, está a mudar de casa, ainda que abarracada.
A jovem com olhos de medusa, provavelmente, estará a invocar um preceito constitucional que, resumindo, falará na não discriminação das pessoas em função do sexo, religião ou raça. Concordo até certo ponto, apesar de, hoje, neste comboio, a minha própria raça estar à mercê das pulgas dos trapos que − vê-se − não vêem água há muito tempo.
Fugi do vestíbulo daquela carruagem por uns segundos.
Viajei, então, à minha infância onde procurei na memória algo capaz de me tirar do meio dos trastes e das pulgas, devolvendo-me o fascínio por aquela gente, outrora sem outra casa que não fosse uma tenda improvisada em qualquer sítio onde Deus tivesse um pedaço de céu aberto.
Hoje, as formas de viajar são diferentes e as carroças morreram e os ciganos andam por aí no meio de nós...
O comboio prossegue a sua marcha. Os pertences da cigana continuam a atravancar o vestíbulo e lá permanecem depois de Aveiro, a estação onde saio.
E a mim, após mais um dia vivido ao sabor deste mundo de caricatos e inusitados imprevistos, da magia do povo cigano de outrora resta-me apenas esta crónica de viagem que a vicissitude dos tempos pintou com as cores nostálgicas do:
Era uma vez....

Porto, 9 de Setembro de 2002

Era esta história que eu queria

Era no tempo em que eu ainda tinha tempo para os apanhados da vida....
Templa - Membro nº 708

Gostei muito. Fez-me lembrar quando era pequeno e lá na aldeia onde costumava passar férias e alguns fins-de-semana chegavam também esses ciganos, ainda este fim-de-semana "revivi" essas memórias pois estavam lá uns a acampar, o que já se vê pouco, até abri um tópico com umas fotografias que tirei. :)

Este teu conto fez-me relembrar de novo tudo isso. ;)
Muitos parabéns!

Bjs


Pois, eu lembrei-me desta minha crónica de viagem por causa de ti. E quando postei "A casa do sal", era esta crónica que eu queria, em primeiro lugar.


Beijinho
Templa - Membro nº 708

De facto algumas fotos podiam servir para ilustrar esta tua crónica, ainda bem que acabaste por encontrá-la! ;D