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  • A casa do sal
    Iniciado por Templa
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A casa do sal

Sei que era ainda muito pequena. Ainda não conhecia uma letra do tamanho de uma pradaria e era o tempo em que, lá pelo vale onde ficava empoçada num fundo verde rodeado de vinha a minha pequena aldeia, corriam risos, guinchos e muita algazarra de crianças, que deixavam a escola primária sem uma única clareira. (Hoje a escola está fechada)
Entre rapazes e raparigas que se repartiam pelos quatro graus da primária havia mais ou menos cinquenta irrequietas criaturinhas, sempre com as cabecitas a ferver na procura de emocionantes aventuras. Era tudo quanto poderiam fazer, circunscritas a uma linha de horizonte sobre as montanhas, que certamente as faria pensar não existir mais nada no mundo do que a vastidão do céu e os picos dos montes a tocá-lo numa suave carícia.
Eu própria me imaginei muitas vezes a subir os estreitos carreiros, por entre as matas então limpinhas como jardins bem tratados, com uma vontade louca de tocar  com as mãos o azul avermelhado, quando o sol morria lá no cimo e a nostalgia - as crianças também podem experimentar sensações de nostalgia – batia no coração. A noite era a porta do medo que se abria, tanto para a escuridão como para a casa, onde todo o pai, severo, temperava com algum exagero a benevolência da mãe já sem paciência para as diabruras de um rancho de filhos.
Eu, do escuro nocturno, gostava mesmo do que tingia a quentura abrasadora dos verões quando, sentados à porta da rua até o calor se aquietar, ouvia com sofreguidão as histórias de almas penadas e de diabos com cornos que a vizinha, a Senhora Maria, com a muleta por perto depois de ter fracturado uma perna que deixara sequelas irreversíveis, contava pormenorizadamente e com a convicção de verdadeira crente nas coisas do outro mundo.
Depois, vinha o sono, embrulhado ainda na fantasia das narrativas, e tudo adquiria uma sensação de mistério que apetecia desvendar em cada esquina. Para uma criança de poucos anos de idade nem sempre o medo guarda a vinha, já que o perigo raramente é um inimigo a ser considerado como tal. O impulso da aventura falava quase sempre mais alto.
Era o que havia lá pela minha aldeia. Pequenos aventureiros, uma espécie de multiplicação dos "Cinco na Ilha do Tesouro", à caça de piratas em todas as luras sombrias, por falta de mar e de barcos onde pudessem fluir as artimanhas dos maus, desvendadas a seguir pelo que de heróico há em cada bom. O tempo ficava demasiado longo, monótono, sem atractivo e os brinquedos tinham de ser inventados passo a passo, sem matéria de plástico que os disseminasse por todo o lado com a fartura do futuro. Tudo ficava a cargo da imaginação mais pueril, ditado principalmente pelas regras do mais genuíno improviso.
As mães nem sempre tinham habilidade para edificar uma boneca de trapos para as filhas, embora os rapazitos tivessem um pouco mais de sorte. O pequeno pião, rodopiando impulsionado pela corda meticulosamente enrolada junto ao pé, era o rei da brincadeira e, para completar a pequena colecção de brinquedos masculinos, nada que um pedaço de madeira aplainada pelo carpinteiro que há em cada José não resolvesse, transformando-se num carro de eleição pronto a deslizar calçada abaixo, de preferência no mais acentuado dos declives.
Depois, havia ainda as ratoeiras armadas aos tordos nos fins do inverno, com uma azeitona preta e luzidia no cimo, engodo em que caíam igualmente os pardalitos, indo de seguida todos para a frigideira apaladarem-se no alho, na salsa, no louro e no vinho do tempero em que a mãe era exímia.
As rapariguinhas eram um pouco menos afortunadas, uma vez que desde bem cedo sobravam para elas algumas tarefas femininas da casa, onde o cuidar tanto quanto podiam das crianças mais novas era uma questão inadiável e sem direito a reclamação.
Nos entretantos, lá iam jogando a macaca em ritmo de pé-coxinho, pouco mais havendo a fazer, não fosse o gosto por desvendar segredos que, de tão bem guardados algures em qualquer lado, já nem se sabia a quem pertenciam e por que estavam assim tão bem guardados.
Eu, porém, desde sempre fui uma miúda pouco dada a jogos e a correrias. De maneira que tinha um problema acrescido de matação de tempo e de enquadramento infantil, só passível de resolução com as coisas novas que a minha forma de ver o mundo me aconselhava.
Foi  julgo eu  por essa altura que tive uma das primeiras noções da estética e da funcionalidade das coisas. Um dia, a minha prima pediu-me – pediu-me porque eu nunca gostei que me tratassem como uma criança ninguém... - para ir levar o almoço à filha, nessa altura a labutar com a terra onde as couves, as nabiças e outras coisas do campo pediam a presença dela.
Não fui só. Uma companhia, infantil que seja, pode ser melhor do que companhia nenhuma, sobretudo se a desgraça bater à porta e for necessário ir avisar Deus ou os homens para nos salvarem, quiçá de nós próprios.
A Dulce, mais velha do que eu um anito, foi comigo e, na ida, tivemos alguma dificuldade em ultrapassar as pedras pululantes do caminho, de cabras como a maioria, já que, ali, homens, crianças e cabras não se podiam furtar a contornar ou saltar os pedregulhos, que eram de todos e eram muitos.
Não houve problemas quando fomos. O almoço chegou incólume ao destino, ainda quentinho e a exalar um cheirinho a comida fresca acabada de sair da panela de ferro, no cesto de verga tapado com uma toalha que ora uma ora outra transportávamos, embora eu tivesse a primazia da entrega, uma vez que a prima era minha...
Orgulhosas e já no regresso, eis que o mesmo caminho se nos depara, agora numa subida íngreme, ainda mais difícil de transpor do que na descida.
O sol ia alto, a noite vinha ainda longe, a missão foi bem cumprida e a casa podia esperar.
Já o caminho, coitadito, jazia ali aos nossos pés, pedregoso e intransponível e, quanto à prima Otília, nem sequer nos lembrámos dela. Devia estar na varanda a apanhar o mesmo Sol que agora já começava a escapar-se na linha do horizonte...
Quando ela, preocupada, foi saber de nós, parte do caminho não tinha uma única pedra...
Uma outra vez, chamaram-me para fazer parte de uma peça de teatro em que eu teria de declamar um poema, juntamente com umas miúdas quatro ou cinco anos mais velhas e prestes a deixar a escola. Todas, obviamente, sabiam ler. Só eu permanecia ainda impermeável tanto à escrita como à leitura, razão pela qual tiveram de me ensinar de viva voz a pequena deixa, que eu ensaiava juntamente com as outras damas da companhia.
Ora, eu, inocentemente, não só não me limitei a aprender o meu papel como decorei com a maior das facilidades os outros quatro.
Depois, veio a perversidade do mundo que, numa curiosidade fatal, me perguntava o que iriam fazer umas e outras das cinco artistas. E eu, como não sou fingida, disse tudo e condenei-me a mim própria ao degredo.
Na vez seguinte, fiz o ensaio sozinha, em primeiro lugar. Logo após isso, mandaram-me para casa.
Tinha seis anos, ainda não sabia ler nem escrever e foi o último ensaio da primeira e última peça de teatro em que eu devia participar.
Depois, quando reiteradamente me pediam para regressar, recusei com a teimosia dos justos, argumentando que se eu tinha prevaricado só tinham de recomendar-me para não dizer nada a quem quer que fosse. E eu assim faria! É que eu nunca gostei de ser tratada como uma criança ninguém...
Bom. Mas onde é que eu vou que já nada tem a ver com o título "Casa do Sal"?!...
Lá por casa andava uma chave relativamente grande e preta. Estava pendurada num armário da cozinha, à vista de toda a gente sem motivar ninguém a usá-la e convidando, ao mesmo tempo, a que a descessem de lá onde morria há anos e anos sem nenhuma serventia.
Até hoje, nunca soube de onde veio e que portas abria. Apenas achava que ela se abria para mim e que seria talvez capaz de me revelar algum segredo dos muitos que eu achava que os adultos nunca revelariam a crianças como eu.
Um belo dia – era belo mesmo o dia, o sol brilhava no céu e ainda não havia a noite escura e a voz do pai em casa – o meu grupo de brincadeira, a minha vizinha Dulce e a irmã, brincava a céu aberto, sobre umas escadas onde, mais ao menos a meio, havia um buraco pelo qual saiam e entravam as galinhas de uma capoeira existente no vão.
Também mais ou menos a meio, existia uma porta lateral fechada, cujo interior desconhecido nos fascinava como nenhuma outra coisa. Seria, se calhar  pensávamos nós  lugar de culto, um sítio onde muito provavelmente haveria fantasmas e almas penadas a quem talvez gostássemos de pregar um valente susto. O meu pai sempre me disse que as almas penadas eram invenções do medo, afirmando com convicção que elas não existiam e que era apenas uma forma de as pessoas passarem serões divertidos no verão quando fazia muito calor.
Então, lembrei-me da chavinha pendurada no armário, indo de imediato buscá-la, cheia de entusiasmo.
Cometi, logo após isso, o meu primeiro crime, um arrombamento com chave falsa. Mas tal coisa não me preocupava, bem como não preocupava igualmente as minhas duas companheiras.
Já o conteúdo da casa, esse foi algo frustrante uma vez que, em vez dos fantasmas com quem pudéssemos trocar no mínimo dois dedos de brincadeira, deparámo-nos com duas arcas cheias de sal grosso, sem sequer entendermos por que nos fascinava tanto aquela porta
Mal deparámos com o achado e sem qualquer noção das coisas, começamos a espalhá-lo em abadas pela rua, livres como passarinhos e sem ninguém dar pelas nossas tropelias.
Mas, a história teve um fim mais ou menos triste para mim, tendo-me livrado simultaneamente dos medos da noite e do pai que ficou assim sem me aplicar o devido correctivo. Afinal, eu fora razoavelmente mutilada....
Quando nos cansámos de branquear as ruas com tanto sal, voltámos às escadas, dispostas a chatear as galinhas, entretanto a regressarem aos ninhos. E porque a pedra com que se tapava o buraco de entrada pesava quase mais do que nós, a Benilde deixou-a cair redonda sobre o dedo mindinho da minha mão direita, de onde a unha saltou como uma mola.
As dores passaram há muito, a nova unha nasceu perfeita e hoje recordei-me de tudo isto por causa das brincadeiras da criançada que espalha os brinquedos e os bonecos de plástico por todo o lado com o mesmo prazer com que eu outrora espalhei o sal.
Já agora, enquanto escrevia, ocorreu-me uma data de associação de ideias, a maioria das quais tive de deixar escapulir da imaginação, sob pena de não sair mais daqui.
Vejam que até pensei, a dado momento, que poderia estar a formular aqui o meu currículo...Ou, pelo menos, uma pequena parte dele...

PS - Procurava um texto relacionado com ciganos mas saiu este... E só agora me dou conta como os fantasmas estão sempre bastante presentes na minha escrita
Templa - Membro nº 708

Muito bom Templa, adorei! Parabéns! :)

Parabéns! Obrigado por nos permitir sonhar. Muito embora não seja a sua biografia, é algo mais importante. São as suas raízes e as suas recordações. A Templa teve o privilégio de poder brincar livremente e conhecer e conviver com a Natureza. As crianças, hoje em dia, vivem em espaços confinados a paredes de betão e brincam com jogos electrónicos iludindo-se com a realidade virtual. Não conhecem o odor dos campos orvalhados, a beleza do pôr-do-sol, a convivência saudável com os animais... A beleza e o estilo com que nos descreve algumas das suas memórias permite-nos  entrar na bruma dos nossos próprios sonhos e recordações. Pelos belos momentos que nos faz reviver... Obrigado!

OLá, meus queridos, obrigada. Quero ver se encontro a outra história, a que tinha a ver com ciganos...
Templa - Membro nº 708