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  • Se uma gaivota não voasse...
    Iniciado por Templa
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Hoje o meu comboio atrasou-se, ao ponto de ficar parado nos estaleiros. A greve nacional foi o pretexto para a pobre máquina se eximir ao trabalho diário que lhe desgasta o esqueleto, feito de ferros e engrenagens, onde os passageiros assentam as vestes humedecidas pela chuva agressiva de um Outono quase invernil.
Deste pedaço de terra, vestida de mil e uma cores, hoje pinceladas de cinzento pela mestria da natureza, faço eu a minha tela, onde traço as impressões captadas pelos sentidos, em constante divagação pela arquitectura do mundo e pela carne de que ele se veste.
O dia vai despertando, lentamente, do sono de uns e da vigília de outros. Os sapos e as rãs, que durante a noite coaxaram nos campos circundantes da minha casa, esconderam-se no ventre da lama, receosos da sua fealdade tantas vezes vítima de pés com uma filosofia bem diferente da de S. Francisco de Assis, o santo que torceu um pé só para não pisar uma formiga.
Nesta altura de greve, o comboio cede lugar aos milhares de carros que galgam as estradas numa pressa enlouquecida instigada pelo relógio, medidor do tempo e motor frenético das nossas pulsações em constante movimento.
Também eu não posso furtar-me a esta procissão de luzes que iluminam a despedida da noite e o romper da aurora, numa estrada ladeada pela Ria de Aveiro, onde as aves procuram alimento.
As gaivotas elevam-se no ar, em bandos, mesmo à frente do meu carro, cujo conta-quilómetros atinge os 140 à hora. Confio na velocidade de voo dos pássaros. Mas...Ó raio de pressa! Acabo de atingir uma avezinha incauta e nela já adivinho o estertor da morte, arrebatando-lhe as penas inocentes da vida, a esvair-se em sangue através dos golpes provocados pelo frenesim dos meus pés.
Praguejo, num misto de raiva e tristeza. Fosse o mundo animal hierarquizado de outra maneira e lá estava eu a parar a viatura, ensaiando uma tentativa qualquer para arrancar a pobre gaivota ao além, para o qual a minha manhã apressada a lançou. Assim, prossigo a viagem, carregando uma morte nas costas, enquanto o dia continua o bocejo de quem acorda indiferente às tropelias do destino.
Penso nos inúmeros acidentes a ocorrerem continuamente no asfalto, há anos transformado em cemitério, onde penam as almas dos que sucumbiram à pressa dos outros e às mãos de consciências despidas do mais elementar civismo.
Pergunto-me por que haveremos nós de andar sempre apressados, a perder vidas que o diabo ganha num arreganhar de dentes e num gozo surdo, feito à custa das lágrimas derramadas por quem fica.
Enquanto prossigo viajem, penso na pobre gaivota e no bando, hoje amputado de um membro, quiçá com responsabilidades de família, talvez com filhotes, órfãos, agora, por culpa dos meus pés, muito embora a causa remota seja a greve que me obrigou a substituir a viagem de comboio pela de carro.
É mau começar o dia vergada ao peso de um crime, ainda que a vítima seja uma gaivota de penas brancas. Talvez a pobre avezinha tenha escapado de outros atentados à natureza, lá no meio do mar onde se aventurou em graciosos voos rasantes, no intuito de se alimentar com a abundância das águas azuis borbulhantes de peixes, enquanto uns e outros se furtavam às marés negras, cada dia mais frequentes na imensidão dos oceanos. E perecer ingloriamente num dia de greve é aviltante para as gaivotas, livres de voarem pelos céus, sem leis, nem regras, nem pressas que lhes condicionem a existência.
Já em plena auto-estrada coloco a minha atenção no vermelho, símbolo do perigo abstracto e sempre presente no acto de conduzir uma máquina, se calhar menos estúpida do que, muitas vezes, o cérebro de quem a dirige.
À minha frente segue um veículo pesado. Tem uma capa cinzenta sobre a qual está escrito algo inusitado.
Aproximo-me um pouco mais e leio:
 Este carro é conduzido por Deus.
A ira deu lugar a um sorriso que diluiu a dureza da minha expressão, ainda a braços com o crime acabado de cometer.
Fiquei contente com o encontro matinal. Afinal, não é todos os dias que deparamos com Deus, ainda por cima a conduzir um veículo, possivelmente, numa leveza bem diferente daquela que eu própria sentia, vergada como estava ao peso de um corpo onde os meus pés me pareciam de chumbo.
Mas, a minha pressa, a mesma que deixou uma gaivota prostrada no asfalto, obrigou-me a ultrapassar o carro, conduzido, naturalmente sem pressa por Deus, porque Deus tem todo o tempo do mundo para chegar a qualquer lado onde clamem pela sua presença.
Na estrada, confortada pela companhia de condutor tão habilitado e prestes a acabar esta crónica de viagem, aproveito para lavar a minha alma, ainda um pouco ensombrada pelo meu acto negligente. Ultrapasso o carro divino e arremesso um pedaço da minha culpa a Deus, atribuindo-lhe, a Ele que mora em toda a parte, que tem intervenção sobre todas as coisas visíveis e invisíveis e que tem as costas largas, a autoria do crime perpetrado no asfalto, onde a alma de uma pobre gaivota clama por prudência.

Porto, 10 de Dezembro de 2002


Templa
Templa - Membro nº 708

MissB

S.Cipriano
Gostei, tens muto jeito para isto...parabéns...

Gostaria de salientar apenas uma coisa:

Citação de: Templa em 02 janeiro, 2010, 22:38

"Deus tem todo o tempo do mundo para chegar a qualquer lado onde clamem pela sua presença."


È pena que quase sempre chegue tarde por ter todo o tempo do mundo....




Gostei muito querida Templa :-*

«Ultrapasso o carro divino e arremesso um pedaço da minha culpa a Deus, atribuindo-lhe, a Ele que mora em toda a parte, que tem intervenção sobre todas as coisas visíveis e invisíveis e que tem as costas largas»


Gostei particularmente desta frase,pois é o que penso muitas vezes a cerca de certas pessoas e assuntos!!!

É mais facil culpar os outros,sem duvida que nos pões a pensar!!!! ;)

:-* :-* :-* :-*

 ;) lindo Templa escreves lindamente ;)
A vida é um mar de rosas apenas temos de nadar por entre os espinhos.

#5
muito bonito,Templa!!!! :-*
eu ainda carrego a imagem de um cãozinho a ser atropelado,quando era menina... :'(
e já tive um acidente para evitar matar um cão...quase que me matava para não o atingir...felizmente foi só chapa e um grande susto... ::)
:)
Confesso que é o meu maior medo:tenho muito medo que se atravesse algum animal á frente do meu carro,e que me faça despistar...é que de certeza que tento-me desviar... :-\

Citação de: MissB em 03 janeiro, 2010, 02:46
Comoveste-me :')

Pois, Acho que tinha acabado de ocorrer a maré negra em Espanha,  por causa do Prestige, quando escrevi esta crónica de viagem. E de facto o que me apeteceu foi ir socorrer a gaivota. Depois também foi curioso  a carrinha grande, de caixa aberta mas tapada com um oleado cinzento, com  a frase na traseira escrita a preto. "Este carro é conduzido por Deus", lembro-me como se fosse hoje.


Depois, ainda tenho uma cena que me doi até hoje,  quando me lembro disso: no meu quarto tenho um a cómoda incrustada num vão de parede que,  por sinal, ficou mal feita,  e atrás tem um vão relativamente grande. Um sábado de manhã, tinha a porta do terraço aberta e eis senão quando um pardalito entrou aí e caiu no fundo... Bem que o tentei tirar mas ele não tinha espaço para voar... Tive de sair do quarto para não ouvir a agonia dele...E lá está sepultado...

Foi horrível, bem pior do que a história da gaivota...
Templa - Membro nº 708

Citação de: ANJOPERDIDO em 03 janeiro, 2010, 13:39
Gostei muito querida Templa :-*

«Ultrapasso o carro divino e arremesso um pedaço da minha culpa a Deus, atribuindo-lhe, a Ele que mora em toda a parte, que tem intervenção sobre todas as coisas visíveis e invisíveis e que tem as costas largas»


Gostei particularmente desta frase,pois é o que penso muitas vezes a cerca de certas pessoas e assuntos!!!

É mais facil culpar os outros,sem duvida que nos pões a pensar!!!! ;)

:-* :-* :-* :-*



Tens razão anjinha. E isso é mais frequente do que se possa pensar.


Beijinho
Templa - Membro nº 708

Obrigada pelo vosso estímulo. Esta já é das antiguinhas. E agora acho que vou dormir. A própósito, quem é que está  atorcer para eu vender a casa em Aveiro e ir morar para o POrto???.
Templa - Membro nº 708

MissB
Citação de: Templa em 03 janeiro, 2010, 23:15
Obrigada pelo vosso estímulo. Esta já é das antiguinhas. E agora acho que vou dormir. A própósito, quem é que está  atorcer para eu vender a casa em Aveiro e ir morar para o POrto???.

Eu :)

Citação de: Templa em 03 janeiro, 2010, 23:15
Obrigada pelo vosso estímulo. Esta já é das antiguinhas. E agora acho que vou dormir. A própósito, quem é que está  atorcer para eu vender a casa em Aveiro e ir morar para o POrto???.

Eu ;)
A vida é um mar de rosas apenas temos de nadar por entre os espinhos.

querida Templa

Infelizmente acidentes acontecem e no teu caso foi um acidente, agora se há coisa que me aperta o coração ao ponto quase de ter uma dor tipo enfarte, é ver animais abandonados tanto nas estradas nacionais como nas autoestradas.

Houve um ano que na Nacional 125 quase de 200 em 200 metros havia um animal morto, esborrachado entre o asfalto e os carros que teimavam em passar por cima dos seus restos mortais sem dó nem piedade, numa atitude de total desprezo e quase de glória para quem o fazia.

Foi Há pouco tempo de regresso entre Abrantes e Lisboa que um Pássaro em plena autoestrada chocou com o meu antigo carro, por muito que me apretecesse parar não o podia fazer, tinha um cisterna atrás de mim, raxou um pouco o meu vidro e depois do embate desapareceu, nem consegui ver para onde teria caído.

Lembro também era eu muito pequenita, altura em que os carros não tinham a obrigação de terem ou serem usados cintos de segurança, e onde as crianças podias ir ao colo dos avós além de pendurados nos encostos dos bancos a fazerem caretas para quem ia atrás noutros automóveis, quando numa dessas viagens intermináveis de Lisboa ao Algarve o meu pobre pai atropelou um cão.

Nessa altura a estrada era bem esburacada, cheia de curvas e contracurvas e quando surgia uma recta nessa altura acelerava-se até aos 60km por hora, coisa que já era uma grande aventura.

Foi numa dessas viagens que o meu pai se viu obrigado a decidir entre o cão e a família que transportava no seu carro, visto que atrás quase colado ao seu carro vinha um camião enorme e em sentido contrário outro com mais ou menos as mesmas dimensões,

Ao ver o carro do meu pai, o cão desorientou-se, deu voltas sobre si mesmo e ou o meu pai travava bruscamente e ainda levava com o camião em cima que vinha atrás de nós,

ou tentava ultrapassar para a outra faxa isto se não estivesse ocupada em sentido contrário com mais outro camião.

Depois do atropelamento, o meu pai assim que apanhou uma berma mais alargada, parou o carro e ainda tentou retirar o bicho do alcatrão e ver se havia algo que lhe pudesse devolver a vida.

O dono apareceu, assegurando ao meu pai que tinha visto tudo e que não tinha sido culpa dele, mas  durante as férias de acordar a meio da noite e ver a luz da casa de banho acesa com o meu pai a chorar lá dentro.

Ele nunca quis ter um cão por isso mesmo e hoje que trouxe a minha "Malhadinha" para casa e lhe mostrei, vi escorrer no seu rosto uma lágrima.

Margarida
Sou como sou, quem gosta, muito bem.
Quem não gosta, paciência!
Viva a liberdade de escolha!

"Ele nunca quis ter um cão por isso mesmo e hoje que trouxe a minha "Malhadinha" para casa e lhe mostrei, vi escorrer no seu rosto uma lágrima"

Só mais uma coisa triste para acabar e eu vi a mesma lágrima num homem que. igualmente sem culpa, atropelou outro homem

Beijinho e basta de trostezas, felicidadfes para ti e para a tua Malhadinha
Templa - Membro nº 708

Fico feliz com uma coisa nisto tudo... saber que há mais pessoas assim sensíveis para com os animais, infelizmente tenho tropeçado em imensas que não o são e até gozam comigo por o ser...

Muito bonito Templa ;)

Pois eu não tive animais de estimação em criança pelos motivos obvios, e agora só tenho a minha Malhadinha porque achei que com 10 anos o meu filhote já é responsável e a vai amar muito sem fazer maldades inocentes a ela como as crianças pequenas costumam fazer.

Esta menina vai ser uma princesa, com todos os cuidados, e com pessoas que sempre desejaram ter um cão, como è bebé ainda nos cativou mais.

A minha filhota com 15 ficou chateada quando lhe disse que íamos ter uma cachorrinha, mas embora a bichinha tenha chegado apenas a umas horas aqui a casa a minha filhota não a larga...

Conqueistou-nos a todos nós! É uma sortuda! e já muito amada.

Se tivesse de a devolver acreditem parte de mim morreria!

Margarida
Sou como sou, quem gosta, muito bem.
Quem não gosta, paciência!
Viva a liberdade de escolha!