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  • A mãe
    Iniciado por Templa
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Costumava dizer que tinha nascido com uma vassoura na mão. E devia ser verdade.

A pouco e pouco foi acrescentando à vassoura o pano do pó, o esfregão, a bacia de lavar a roupa, o ferro de engomar e ai de um grão de pó que se atrevesse a sentar-se na soleira da porta! Era certo e sabido que não teria grande vida. Não havia de demorar muito tempo até ser expulso, mesmo antes de servir de modelo para a borracha de uma sapatilha deixar uma única impressão plantar que fosse no soalho da casa. Mais do que uma mulher limpa, era a limpeza em pessoa. Servia as coisas como quem serve um senhor execrável que lhe ensurdecesse os ouvidos com palavras azedas e mal agradecidas e, ainda por cima, sem nenhumas contrapartidas.

Não era, certamente, por amor à causa da limpeza, era mais do que isso. Era a obsessão de a dominar.   E nunca desistia. O lixo era o seu mundo, um mundo do avesso que ela, compulsivamente, tentava endireitar a todo o custo.
Nunca se rendeu ao cansaço. Dia e noite, era vê-la, com um pano ou um balde na mão, a andar de um lado para outro, inventando tarefas que reduzia a trabalho feito.

Outras vezes era o ferro de engomar com que zurzia freneticamente as peças de roupa, lavadas duas e três vezes na mesma semana, quando precisava de encher a máquina para não enxaguar apenas pouco mais de nada. Sempre sucumbira ao apelo da ordem, mesmo para lá das suas forças, e sempre assim tinha sido. Nada nem ninguém era mais forte do que esta compulsividade pelas coisas. Toda a vida as servira, sem se perguntar se não deveria ser o contrário.

Um dia, o cansaço atacou-a ferozmente. Dias e dias sem dormir, depois de forçar o corpo até ele já não lhe obedecer mais, tornou-se numa ruína de pedras, derrubadas à força de trabalho, quantas vezes desnecessário, com que matava o tempo e todas as frustrações. Tudo em nome da limpeza e da ordem, de que era uma fã incondicional e condicionada.

A seguir, deixou de comer, as pessoas, mesmo da família mais chegada, tornaram-se-lhe estranhas.Da meada da vida estava vista a ponta, o início do caminho. Daí para a frente, até ao fim dos seus dias, teria de o percorrer assim, em ruínas, se não conseguisse mais levantar-se ao ponto de se entregar de novo à devoção da vassoura, do balde e da pá do lixo. Iria, ainda, a tempo?  

O capítulo seguinte, durante um bom para de anos, passou-o no mundo da medicina, entregue a drogas e à terrível verdade de se ver entre loucos inteiros e assim, assim, quando ainda tinha uns pingos de lucidez para avaliar o que se passava à sua volta.   Foi o que me contou quando a questionei sobre a doença. E o que não disse li-o nas entrelinhas. A culpa era sempre dos outros. Do marido que não ajudava quando tinha de lavar, passar, limpar as coisas que ele e a filha sujavam. Os dias prolongavam-se noite dentro,  para que a menina fosse para a escola bonita como uma princesa. O descanso cedia lugar a um trabalho de formiga, que não acabava nunca. Nunca havia horas mortas em que o corpo pudesse restabelecer-se. Nunca havia um dia seguinte, porque o anterior nunca terminava. Parecia nunca haver amanhã. Nada podia ficar por fazer. Era para as coisas não a acusarem de ser uma mulher negligente na causa doméstica. Era a sua causa e será sempre a sua causa, enquanto os mil e um remédios que ingere há anos e anos não a deixarem prostrada e sem vontade para a cruzada.

Da sogra dizia que lhe influenciara o marido com paparicos excessivos de filho único, deixando-o um inútil sem ambições. Nunca gostara, nem dela nem dele. O seu amor tinha ficado enterrado na terra, de onde saíra para estudar num colégio, quando era ainda muito menina. Mas, depois da filha que o marido lhe dera, habituara-se a ser mais uma mãe dele e o que a outra mãe não fazia ela supria. Sobretudo na vida de papéis que fazem sempre parte de todas as vidas. Tudo que tivesse a ver com burocracia era ela quem andava à frente, para todo o lado, desbravando e domando as dificuldades uma a uma. Foi assim durante todo o tempo. Sobretudo quando era jovem e a sogra lhe criticava as ambições, empalando simultaneamente o filho e deixando-o uma múmia sem vontade. Foi também nessa altura que lhe perdera completamente o respeito. Ao menos como marido. E o desejo que uma mulher deve ter pelo seu homem, se algum dia o tivera, fosse, embora, fraco, esvaiu-se completamente, à medida que o trabalho a dominava e a doença ganhava raízes, implantando-se-lhe no futuro irremediavelmente.
Olho para esta mulher sofrida e amarga, sempre a apontar os culpados da desgraça em que se vê agora, e a fazer a constante via-sacra dos médicos e das farmácias. Para ela os outros são e serão sempre os maus, os seus carrascos, só por não terem nascido com uma obsessão tão terrível como a que tomou conta dela e a tornou na sua mais impiedosa inimiga.

Mas para quê dizer-lhe isso agora? Era bem capaz de nos conotar como gente pertencente ao mundo do lixo, ela que nunca conseguiu estabelecer o limite entre o razoável e o compulsivo das coisas de que se tornou escrava.
Esta é a história de uma mulher que nasceu com uma vassoura na mão e a loucura à porta, pronta para entrar ao mínimo pretexto. Queira Deus que, algum dia, a consiga remover... A bem de todos...



Templa  
Templa - Membro nº 708

Citação de: Templa em 29 dezembro, 2009, 11:31
Costumava dizer que tinha nascido com uma vassoura na mão. E devia ser verdade.

A pouco e pouco foi acrescentando à vassoura o pano do pó, o esfregão, a bacia de lavar a roupa, o ferro de engomar e ai de um grão de pó que se atrevesse a sentar-se na soleira da porta! Era certo e sabido que não teria grande vida. Não havia de demorar muito tempo até ser expulso, mesmo antes de servir de modelo para a borracha de uma sapatilha deixar uma única impressão plantar que fosse no soalho da casa. Mais do que uma mulher limpa, era a limpeza em pessoa. Servia as coisas como quem serve um senhor execrável que lhe ensurdecesse os ouvidos com palavras azedas e mal agradecidas e, ainda por cima, sem nenhumas contrapartidas.

Não era, certamente, por amor à causa da limpeza, era mais do que isso. Era a obsessão de a dominar.   E nunca desistia. O lixo era o seu mundo, um mundo do avesso que ela, compulsivamente, tentava endireitar a todo o custo.
Nunca se rendeu ao cansaço. Dia e noite, era vê-la, com um pano ou um balde na mão, a andar de um lado para outro, inventando tarefas que reduzia a trabalho feito.

Outras vezes era o ferro de engomar com que zurzia freneticamente as peças de roupa, lavadas duas e três vezes na mesma semana, quando precisava de encher a máquina para não enxaguar apenas pouco mais de nada. Sempre sucumbira ao apelo da ordem, mesmo para lá das suas forças, e sempre assim tinha sido. Nada nem ninguém era mais forte do que esta compulsividade pelas coisas. Toda a vida as servira, sem se perguntar se não deveria ser o contrário.

Um dia, o cansaço atacou-a ferozmente. Dias e dias sem dormir, depois de forçar o corpo até ele já não lhe obedecer mais, tornou-se numa ruína de pedras, derrubadas à força de trabalho, quantas vezes desnecessário, com que matava o tempo e todas as frustrações. Tudo em nome da limpeza e da ordem, de que era uma fã incondicional e condicionada.

A seguir, deixou de comer, as pessoas, mesmo da família mais chegada, tornaram-se-lhe estranhas.Da meada da vida estava vista a ponta, o início do caminho. Daí para a frente, até ao fim dos seus dias, teria de o percorrer assim, em ruínas, se não conseguisse mais levantar-se ao ponto de se entregar de novo à devoção da vassoura, do balde e da pá do lixo. Iria, ainda, a tempo?  

O capítulo seguinte, durante um bom para de anos, passou-o no mundo da medicina, entregue a drogas e à terrível verdade de se ver entre loucos inteiros e assim, assim, quando ainda tinha uns pingos de lucidez para avaliar o que se passava à sua volta.   Foi o que me contou quando a questionei sobre a doença. E o que não disse li-o nas entrelinhas. A culpa era sempre dos outros. Do marido que não ajudava quando tinha de lavar, passar, limpar as coisas que ele e a filha sujavam. Os dias prolongavam-se noite dentro,  para que a menina fosse para a escola bonita como uma princesa. O descanso cedia lugar a um trabalho de formiga, que não acabava nunca. Nunca havia horas mortas em que o corpo pudesse restabelecer-se. Nunca havia um dia seguinte, porque o anterior nunca terminava. Parecia nunca haver amanhã. Nada podia ficar por fazer. Era para as coisas não a acusarem de ser uma mulher negligente na causa doméstica. Era a sua causa e será sempre a sua causa, enquanto os mil e um remédios que ingere há anos e anos não a deixarem prostrada e sem vontade para a cruzada.

Da sogra dizia que lhe influenciara o marido com paparicos excessivos de filho único, deixando-o um inútil sem ambições. Nunca gostara, nem dela nem dele. O seu amor tinha ficado enterrado na terra, de onde saíra para estudar num colégio, quando era ainda muito menina. Mas, depois da filha que o marido lhe dera, habituara-se a ser mais uma mãe dele e o que a outra mãe não fazia ela supria. Sobretudo na vida de papéis que fazem sempre parte de todas as vidas. Tudo que tivesse a ver com burocracia era ela quem andava à frente, para todo o lado, desbravando e domando as dificuldades uma a uma. Foi assim durante todo o tempo. Sobretudo quando era jovem e a sogra lhe criticava as ambições, empalando simultaneamente o filho e deixando-o uma múmia sem vontade. Foi também nessa altura que lhe perdera completamente o respeito. Ao menos como marido. E o desejo que uma mulher deve ter pelo seu homem, se algum dia o tivera, fosse, embora, fraco, esvaiu-se completamente, à medida que o trabalho a dominava e a doença ganhava raízes, implantando-se-lhe no futuro irremediavelmente.
Olho para esta mulher sofrida e amarga, sempre a apontar os culpados da desgraça em que se vê agora, e a fazer a constante via-sacra dos médicos e das farmácias. Para ela os outros são e serão sempre os maus, os seus carrascos, só por não terem nascido com uma obsessão tão terrível como a que tomou conta dela e a tornou na sua mais impiedosa inimiga.

Mas para quê dizer-lhe isso agora? Era bem capaz de nos conotar como gente pertencente ao mundo do lixo, ela que nunca conseguiu estabelecer o limite entre o razoável e o compulsivo das coisas de que se tornou escrava.
Esta é a história de uma mulher que nasceu com uma vassoura na mão e a loucura à porta, pronta para entrar ao mínimo pretexto. Queira Deus que, algum dia, a consiga remover... A bem de todos...

O marido da mãe

É um homem educado e sereno, daqueles que, quando é preciso, pede até licença para existir. Já não é novo,  mas devia ter sido interessante na juventude, quando, um pouco mais velho do que ela, se casou. Já lá vão mais de trinta anos.

Depois de mais de 15 a viver asfixiado pela limpeza da casa onde moravam com a filha, não aguentou mais e um dia regressou, não como filho pródigo que nunca foi, mas como um homem cansado de uma mulher que não nasceu para o ser. E, mãe por mãe, preferia a sua. 
Fala pouco dos tempos em que coabitaram, mas o pouco que diz fala por si. É sobretudo quando se juntam em casa da filha e a mulher, agora só no papel, o atiça por tudo e por nada, como se ele não passasse de um cão sarnento, um portador de doenças transmissíveis a cujo convívio todos devam eximir-se.   
Devia ser já por isso que ela, quando ainda viviam juntos, punha toda a roupa, dele, dela e da casa à janela, sempre que um murcho raio de sol se estendia pelo mundo. Era para matar os ácaros, que ela não antevia mais danos colaterais a essa morte. Nem mesmo a do amor. Esse nunca tinha nascido. Como tal, nunca poderia morrer. Ou, quem sabe?,  era uma forma de se proteger do homem e dos seus direitos de marido,  no quarto e na cama que tão difícil era de partilhar. Sobretudo depois de se ter tornado mãe. 
Foi quando ele partiu para o outro lado da rua, sem tempo de regresso.   
E assim se transformou num homem sozinho e solitário, depois de trocar a solidão de um casamento por uma outra solidão onde o lixo e a ordem se vão equilibrando quotidianamente. Se tinha outras ambições, ficaram pelo caminho, perdidas entre os panos do pó e desfeitas na água em que a mulher lavou a vida dos dois, quando as mágoas de ambos submergiram à voragem da limpeza em que ela se afundou,  arrastando-o consigo. 
Hoje, contemplando a filha e os netos, vê neles o único futuro que a mulher lhe deixou. E quando, em silêncio, ouve ainda tudo quanto ela lhe diz com quatro pedras na mão a que raramente replica, vê-se-lhe nos olhos o que a boca não diz: Vidas de lixo.

Templa  


Templa - Membro nº 708