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  • Eu Sou Sozinha
    Iniciado por cepticooucrente
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Esta frase sempre me chamou a atenção. Quer seja dita por uma senhora de 91 anos, entrevistada num centro de dia, em directo para o telejornal, quer seja dita por uma vizinha, em conversa, na fila da mercearia. "Sou sozinha"? Parece gramaticalmente errado mas na verdade é dramaticamente certo. Aquelas senhoras não estão sozinhas, são sozinhas. É um estado permanente, não é uma coisa passageira, e elas têm perfeita noção disso. É triste.

Muitas delas estão abandonadas, seja num lar, seja num hospital, seja na sua casa, cheia de conforto, mas onde ninguém os visita. Muitas já não têm amigos porque o tempo os foi levando. Mas a maioria tem família. Onde é que ela está? Onde é que estão os netos daquelas pessoas?!

Tenho a sorte de ainda poder contar com a minha avó, com as suas frases lapidares, com as suas mensagens intermináveis no voicemail (porque não percebe que não desligou o telefone), com os almoços em casa dela às quartas-feiras. Sempre a mesma coreografia: a minha avó diz que o almoço deve estar uma porcaria, porque ela já não está bem, eu provo (e comprovo) que está óptimo, ela mostra surpresa e entusiasmo. A meio da refeição, já estamos a tratar da logística dos tupperwares, para levar o que sobrar. Em casa de uma avó manda a lei de Lavoisier: nada se perde, tudo se transforma. Pelo meio, as conversas de sempre. Algumas histórias já ouvidas 127 vezes, mas que têm sempre graça. Ter uma avó (ou avô) é ter património da humanidade à mão de semear. São documentos históricos vivos (alguns já a dar para o papiro). Meia hora de conversa com uma avó é melhor que qualquer visita ao Museu de História Natural. Quando a minha avó foi para a faculdade, as mulheres não abundavam e os colegas tratavam-se com deferência, por você. Agora as miúdas é que safam os rapazes, com os seus apontamentos, e andam todos de havaianas. Quando o meu avô esteve na Índia, comunicavam por carta. Agora temos mails, whatsapp, skype... Quando se ia passear à Baixa, era preciso uma indumentária especial. Agora... pensando bem, passa-se de certa forma o mesmo, ali para os lados do Chiado. E nós temos a sorte de ter acesso a todos esses adventos da modernidade, e poder contar ainda com a sabedoria das gerações anteriores.

Eu e a minha avó fazemos anos em dias seguidos. Eu 29, ela 92. Se lermos ao contrário, vai dar ao mesmo. E nós somos mesmo ao contrário. Estamos trocadas. Eu sou, no fundo, uma aposentada, que gosta de estar em casa a ver o programa do Goucha. A minha avó é pouco mais que uma adolescente, que se recusa a acordar antes do meio-dia, e que come Cerelac porque não tem paciência para fazer jantar só para ela. Há uns anos, ia matando a minha avó do coração, porque resolvemos ir de comboio até Cascais, e quando o vi aproximar-se da estação, resolvi fazer um sprint pelo túnel e rampa fora, para o apanhar.  E a minha avó a correr atrás de mim. Esqueci-me que ela tem mais 63 anos que eu. E ela também se esqueceu. Esquece-se a toda a hora. Ela é a pessoa que, quando vai visitar senhoras que vivem sozinhas (e recebem apoio da Junta), me diz, com a maior naturalidade: "hoje vou visitar as velhotas". Sendo que algumas dessas velhotas têm menos 10 ou 15 anos que ela! Mas não têm companhia, e isso faz toda a diferença.

A minha avó é a Maria mais Capaz que eu conheço, e vou recordar sempre as coisas que só ela diz. Sempre que estiver sol, saberei que para ela está um dia "esplêndido", sempre que o telemóvel se avariar, sei que está "escangalhado", sempre que me enervar, sei que é melhor evitar os palavrões e dizer o seu enigmático "raios partam o Padre Lino!".

Melhor ainda do que ter a minha avó presente, é ter a garantia de que vai estar comigo no futuro, o futuro inteiro, graças ao nosso passado juntas. Temos um cadastro de diversão inolvidável. Vou lembrar sempre a infinita paciência dela, as palavras cruzadas dela, as histórias dela. Ainda bem que me contou cada uma 127 vezes! E os outros? Os netos que deixaram os avós para trás? De que é que se vão lembrar? Não se vão lembrar de nada, porque desde o primeiro momento preferiram esquecer. Esqueceram tudo o que os avós fizeram por eles, antes de serem velhos, enrugados, repetitivos, sozinhos.

Joana Marques

Infelizmente este é um sentimento "comum" nos dias de hoje.
As pessoas não "estão" sozinhas... mas "são" sozinhas.

Ainda ontem falava com uma paciente cuja mãe partiu no dia de carnaval. Esta mãe foi tão má para a filha... mas mesmo assim, a filha dizia-me: "... mas é minha mãe... e agora? Que vou fazer se sou sozinha?"....

Não lhe consegui dar uma resposta objetiva, porque é a dura realidade de muita gente.

Bem, mas temos que ter uma perspetiva positiva. Ainda bem que existem fóruns como o PP, que permitem que essa "solidão do ser", possa ser apaziguada de alguma forma... já que virtual é mesmo a nossa vida!
..."no woman no cry... cause when one door is closed, many more is open"...
Membro nr. 34334

Citação de: Faty Lee em 20 fevereiro, 2015, 15:38
Bem, mas temos que ter uma perspetiva positiva. Ainda bem que existem fóruns como o PP, que permitem que essa "solidão do ser", possa ser apaziguada de alguma forma... já que virtual é mesmo a nossa vida!

Sim, quase tão virtual como o menino do restaurante...  :-\

sofiagov
Citação de: Faty Lee em 20 fevereiro, 2015, 15:38
já que virtual é mesmo a nossa vida!

isto é muito verdade....mesmo.


Tão triste.... :'(

Gostava de poder saber o que é ir à casa dos avós, gostava de me reunir com a família num jantar....Mas, parece que não fazia parte dos meus planos.
I see now that the circumstances of one's birth are irrelevant, is what you do with the gift of life that determines who you are"