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  • Conto que não pôde participar no Concurso "Vida e Morte no Sanatório em 1940"
    Iniciado por Templa
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Como já tinha escrito um, este não pôde participar. Assim, prometi ao Ice que só o publicaria depois de sairem os resultados. Estou a cumprir...

A Irmã Teresa disse-me que temos uma nova doente. É uma rapariga de 20 anos, vem de Amarante e, pelos vistos, os pais vão para o Brasil. Levam as outras três irmãs com eles...
Mais uma que talvez apodreça neste belo edifício, erguido na montanha como um santuário maldito. O ar é puro, cheio de fragrâncias, mas pergunto-me se serão os pinheiros, os abetos e as outras árvores capazes de limpar os pulmões dos que chegam minados por este flagelo... Serão, a clausura a que os submetemos, quando chegam a cuspir sangue, a escrupulosa higiene e a vaporização na sala com aroma a eucalipto suficientes para a curar e restitui-la à família?
Tão jovem e a vida está a negar-lhe tudo... Talvez até tenha já pensado em ser mãe...Mas, se foi assim, é mais um projecto adiado, queira Deus que não ad eternum. Acontecerá isso se eu, este sanatório, as abnegadas freiras e todos os que aqui trabalham a não conseguirmos salvar. Aqui, morre-se e vive-se com o mesmo oxigénio. A diferença entre uma coisa e outra é uma miserável bactéria, surgida do nada e propagada nas asas do vento com um anjo maléfico disposto a ceifar vidas sem contemplações.
É difícil ser médico neste século e ainda mais trabalhar com tuberculosos. É um drama. Quase todos os dias há gente a partir, sem surpresa para mim e para os meus colegas, que lhes vemos as sombras acoitadas no peito, como necrófagos à espera de carne putrefacta. Quanta compaixão não é precisa para pintar ao doente uma tela que o tenha como tema, curado e com um futuro risonho à frente, e em que esteja sempre presente o amor!...
Numa grande parte das vezes, a realidade é outra e, perante os nossos olhos, está o espectro abominável da morte, cujo esqueleto vemos antecipadamente naquelas malfadadas chapas cinzentas reveladas em contraluz, num frio consultório onde a impotência se instalou. 
De vez em quando, o desânimo abate-se sobre mim. Não sei por que fiz aquele juramento a Hipócrates, se não salvo todas as vidas que queria e as que mereciam ser salvas. Todas, sem excepção. Quantas me fogem por entre os dedos, como areia com pressa de voltar à rocha de onde se fragmentou e à natureza que a criou!...
Depois, penso na metáfora da areia e reconforto-me, pensando que, talvez, quem parte não esteja senão a regressar a casa, onde não faltará, nem paz, nem amor, nem compaixão, nos braços de Deus e na sua infinita misericórdia, depois de o mundo lhes ter sido tão cruel.
É quando eu próprio mais preciso de Deus. Preciso Dele para me reerguer, continuar e olhar de novo com abnegação os olhos de quem venha até mim pedir a esperança, que às vezes não tenho, como se eu fosse o próprio Deus e não tivesse o direito de desiludir. Talvez os olhos desta rapariga, que chegou sem saber se um dia poderá vir a ser mãe...
A jovem já está instalada na ala feminina e a ficha dela diz-me que o pai era ferroviário.
Examino-a, mal posso, analiso o historial clínico dela e tenho um estranho pressentimento. Este não será um caso abençoado, dos que, felizmente, ainda me vão acontecendo...
Trajando já a roupa que distingue os doentes das outras pessoas, conversamos os dois. Ela dum lado e eu do outro da divisória que separa dois mundos. Apetece-me transpor esta barreira, mas não devo fazê-lo, em nome dos outros doentes. Subsiste sempre o receio de que o maldito bacilo decida não embocar na janela de saída, alojando-se por aí onde eu o possa respirar incautamente
Ela diz-me que os pais irão para o Brasil e que aí se lhes juntará, mal esteja curada. Pergunto-lhe se no lugar morava havia mais alguém doente e responde-me afirmativamente, um rapaz colega do pai, com quem foi forçada a acabar o namoro, quando a família decidiu partir deixando-a aqui.
Foi, com toda a certeza, o infeliz a contaminá-la e pergunto-lhe por ele. Obtenho como resposta que não sabe o nome do sanatório onde o jovem está.
Penso então em Camilo e no seu "Amor de Perdição". Também, neste caso, um perdeu o outro, nos beijos trocados com  a inocência de quem julga ter uma vida inteira pela frente.
Fico arrasado, enquanto Celeste fala do coro da igreja onde ensaiava para cantar no domingo seguinte na missa. A irmã Doroteia, que está com ela, protegida com uma máscara branca, esboça um sorriso de aprovação "esta rapariga conhecerá o céu" deve ter pensado. Concordo, com mágoa, depois de lhe sentir uma tosse cheia de purga vinda dos pulmões contaminados pelo mal.
Pergunto-lhe se gosta do sanatório, ela diz que o acha muito bonito. Perdido na montanha e com tanta gente, parece uma cidade em que nada falta. Falta saúde – penso eu...
Só é pena não poder ir onde quiser, por causa das restrições de circulação. Diz que gosta sobretudo daquelas grandes janelas debruçadas na montanha, semelhantes aos claustros do Convento de S. Gonçalo.
Prometo curá-la, sai agradecida... Deus nunca castigará um médico pelas suas mentiras, quantas vezes o único remédio para quem não tem outro... Como a Celeste, um anjo dentro em breve a subir ao céu, se não ficar aqui perdido para sempre, como um fantasma triste...

Templa - Membro nº 708

Hummm...simplesmente espectacular.Parabéns...tens um dom contigo... ;)
Quem conhece os outros é sábio;Quem se conhece a si mesmo é iluminado...

Eu, eu e eu, mai nada! :P

Obrigada aos dois. Gosto muito de escrever, confesso e tenho pena não o poder fazer a tempo inteiro
Templa - Membro nº 708


Obrigada.  Hoje constatei uma coisa. Já não gosto da maneira como escrevia há dois ou três anos atrás. Ainda agora fui ver uma coisa que era para publicar aqui,  a propósito da homossexualidade,  e detestei. Era a minha veia irónica, mas precisava de levar uns cortes valentes que lhe tirassem um bocadado do barroco e do gongorismo.

Mas tenho tantos escritos que não tenho tempo de limar as arestas a todos. O melhor é presseguir com novos contos e novas coisas e deixar tudo como está.
Abraço
Templa - Membro nº 708

muito bom. quando estava a ler parecia que estava a ver em imagens o que descrevias. conheço uma psiquiatria que já foi convento, e é tal e qual... também jé trabalhei com freiras, e é tal é qual :angel:

Já me disseram que a minha escrita era muito pictórica, que quando se lê se está a ver tudo o que descrevo. E já leste o outro conto?
Templa - Membro nº 708


Eu ainda não disse em quem me inspirei para escrever este conto. Foi na Carmen Miranda e na família. Ela teve uma irmã mais velha que morreu tuberculosa. Chamava-se Olinda.
Templa - Membro nº 708

MissB
Olha Templa, eu estudo literatura e ser escritora é o meu sonho. Se me corresse nas veias o dom que tu tens, já teria arriscado como profissão. :)

Não é assim tão simples. Sobretudo quando as editoras são autenticas mafias ;) ;) ;)
Templa - Membro nº 708

MissB
Citação de: Templa em 11 dezembro, 2009, 17:08
Não é assim tão simples. Sobretudo quando as editoras são autenticas mafias ;) ;) ;)

Sim, tens razão :s mas não desistas. Há que lutar, postar em blogues, enviar para revistas, encher o correio, mail e fax das editoras... :p

Claro que não vou desistir. mas comigo as coisas demoram sempre um pouco, é karma. Mas consigo...

Bjs e obrigada.

E parabéns pelo teu conto. Gostei imenso, sinceramente.


Templa
Templa - Membro nº 708

Na verdade, em um sentido mais profundo, nem nascemos e nem morremos. São as identidades e sonhos que vão mudando...