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  • Umas tripas pendentes
    Iniciado por Templa
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Umas tripas pendentes



     Acordara péssima naquele dia, afónica. Era algo que já se adivinhava há alguns dias, depois de quase nada ter ligado aos sintomas. Pelas seis da manhã, estava transformada num trombone tal era a tosse, grave e cavernosa, bem como as palavras que não lhe saíam da garganta, completamente lesionadas umas e outras. Acordara assim, sem voz, condenada a não poder fazer-se ouvir em nenhuma nota da vida, de raiva, ódio ou amor, se por acaso algo digno dessas reacções acontecesse. As mezinhas caseiras não tinham resultado e tinha ir ao médico.

     O pior de tudo é que ela já tinha agendado uma ida a um clínico, embora lhe parecesse que a maleita do dia tinha prioridade.

     Difícil, difícil, foi pegar no telefone e, com uma voz aos arranques, fazer entender desde logo o nome ao interlocutor. "Que não, que não podia ir tratar dos dentes quando a garganta estava num frangalho".

     "Não podia haver adiamento sob pena de ter de ser adiado todo o processo ulterior", disse o dentista.

     Lá teria de ser, dois médicos no mesmo dia, com intervalo de uma hora, antes e depois de almoço. Nessa altura esperava já ter tomado alguns remédios, a ver se ficava livre o mais depressa possível da maldita afonia.

      Na farmácia ouviu o primeiro "piropo",  quando o farmacêutico lhe disse que estava num estado geralmente apreciado pelos homens nas mulheres, a capacidade de ficarem caladas por algum tempo.

     Antes de se meter no carro para ir comer alguma coisa prévia ao primeiro antibiótico, um homem andrajoso abeirou-a pedindo-lhe uma moeda. Com o saco dos medicamentos na mão, acenou negativamente apontando-lho, enquanto o homem insistia e ela conseguira dar-lhe a entender que estava sem voz.

     - Ah, Está doente.

     "Que era um sem-abrigo, que tinha de arranjar algo para comer e que tinha tido recentemente uma pneumonia". E a ela pareceu-lhe que a abordagem se inseria num contexto em que o homem assumia o papel do arrumador de carros que não lhe tinha sequer indicado o lugar.

     Mostrava as mãos, os braços e a cara barbuda com escrófulas, sinal de que lhe faltavam quase todas as vitaminas.

     Quando já ia um bocado mais à frente, a consciência acotovelou-a e de novo com as palavras aos solavancos, lá o chamou para lhe dar uma miserável moeda de 50 cêntimos, formulando intimamente o desejo de que ele conseguisse muito mais para fazer a refeição do dia em que ela quase se sentia diminuída dos seus direitos de cidadania pela perda de voz.

     A seguir conduziu quase até ao outro extremo da cidade. Antes do antibiótico receitado pela médica, que quase a fizera vomitar quando lhe quis ver a garganta, tinha de comer, talvez almoçar.

     Iria fazer isso na pequena confeitaria, ali ao lado do dentista, antes de submeter à segunda observação detestável do dia. Odiava que lhe mexessem na boca.

     Ao estacionar,  sentiu-se observada por um homem que caminhava ali ao lado, enquanto a roda esquerda traseira do carro tocava no passeio e ele, estacando inicialmente, fez menção de se lhe dirigir.

     A princípio pensou que a criatura estaria ali a criticar-lhe a manobra. Na melhor das hipóteses, talvez se propusesse ajudá-la, apesar de ela, depois de ter assumido durante anos a sua aselhice, já se ter libertado do auto preconceito. Agora, desde que não estivesse dominada pela preguiça, estacionava bem, quando começara a perceber que um carro tem de se sentir como se tivesse vida própria e semelhante à de um homem, especialmente um de quem se goste. Talvez tivesse reprovado se estivesse a fazer o exame de condução mas, nas circunstâncias, estava perfeito, nem a roçar o passeio, nem demasiado afastado.

     Ao preparar-se para sair, o homem abeirou-se do carro e para o ouvir abriu a janela. Estava limpo e arranjado, teria os seus cinquenta e poucos anos. Faltava-lhe um dente à frente, na parte inferior da boca. Era talvez demasiado velho para arranjar um emprego e demasiado novo para se reformar.

     "Que desculpasse a franqueza, não era arrumador de carros e parecera-lhe ouvir ranger talvez uma garrafa de plástico que estivesse por ali".

     "Ali "estava ela,  prisioneira da voz,  e não demorou muito a perceber que a conversa inicial era uma espécie de pré aquecimento da coragem de um homem, que talvez nunca tenha pedido antes, para pedir alguma coisa.

     "Que já batera duas instituições sem resultado e que ele e a família tinham de comer alguma coisa. Não podia pôr pedras na mesa."

     E ela ali estava, sem poder dizer nada, perante um pobre envergonhado a quem,  sem nenhum regateio,  deu um euro, fazendo maquinalmente a distinção entre as duas pobrezas com que se deparara no espaço de meia hora. Fazia também as contas ao parquímetro que iria pagar daí a instantes, à consulta do dentista, ao almoço e revia mentalmente o dinheiro que trazia consigo, pouco mais de 35 euros. Não lhe chegariam para pagar todas as despesas.

     E foi para dentro, vendo o homem a afastar-se no passeio,  com o miserável euro que lhe dera sem ela poder sequer dar-lhe nenhuma justificação.

     - Quero almoçar, disse quando entrou.
     - Há tripas. Estão uma delícia.
     - Pode ser.

     E à voz lá no fundo de si mesma, ali com aquele prato de tripas à frente na mesa, apeteceu-lhe amaldiçoar o mundo de que ela ali e agora não se excluía.

     As tripas estavam uma delícia e enquanto as comia havia um homem e uma família inteira com fome. Imaginava-o a caminhar pelo passeio a acariciar a moeda de um euro como se ela tivesse sido muito generosa quando não tinha passado de uma miserável forreta.

     Ah, porque não o convidara para almoçar ali consigo aquelas tripas, se não as quisesse levar para casa e repartir com a família? Pensava ter apaziguado a consciência com aquele eurozinho, mas ela mordia-a tanto ou mais do que a tosse na garganta e a maldita afonia. Pelo menos, devia ter-lhe dado cinco euros, os mesmos que iria pagar pelas tripas e pela garrafa de água de litro e meio que a médica a mandara beber ao longo do dia para amaciar as mucosas. E já que não tinha feito nada daquilo devia, no mínimo, deixar pagas umas tripas pendentes para a primeira pessoa com fome que lá fosse, já que não poderia remediar aquela falha grave que acabara de cometer. Tê-lo-ia feito se acreditasse na honestidade do dono do estabelecimento e se fosse comum praticar um acto de solidariedade assim em Portugal, onde andava meio mundo a enganar a outra metade.

     Depois, pensou em dividir com terceiros a culpa, quando se comportara como uma miserável perante um homem sem dinheiro para dar de comer à família, sem um dos dentes da frente, talvez até sem um médico que o consulte na doença,  enquanto ela tivera dois no mesmo dia, bem como um prato de tripas deliciosas. E tudo isso era caso para imputar a um governo cego, surdo, mudo e talvez velhaco que, em nome da porcaria da austeridade e de uma honra bacoca para com os ricos, enterrara o resto do emprego que ainda havia e condenara famílias inteiras à fome.

     E pronto, desabafara mentalmente e insultara um governo de prostitutas austeras que se vendiam aos poderosos para que nunca lhes faltem no prato umas tripas deliciosas como ela comera quando estava afónica e ficou, daí a pouco, sem os 30 e poucos euros que trazia no bolso. Antes tivesse dado mais alguns ao homem.
Templa - Membro nº 708

" (...) deixar pagas umas tripas pendentes para a primeira pessoa com fome que lá fosse, já que não poderia remediar aquela falha grave que acabara de cometer. Tê-lo-ia feito se acreditasse na honestidade do dono do estabelecimento e se fosse comum praticar um acto de solidariedade assim em Portugal, onde andava meio mundo a enganar a outra metade. "

Pois... Era bonito que se fizesse isso aqui também, mas é difícil confiar.
Temos os patrões mais miseráveis e corruptos da Europa, arrisco-me a acusar.
Conheço a iniciativa, mas é complicado praticá-la cá.. É preferível levar o "pedinte" ao café e pagar-lhe directamente o almoço :/

Beijinho, gostei da história.
"A ciência não só é compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade" - Carl Sagan

Pois, é verdade, é o que eu acho. Ainda não li os teus últimos trabalhos, mas fa-lo-ei na primeira oportunidade, Beijionhos e continua...

Templa
Templa - Membro nº 708