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  • Serões de mortos
    Iniciado por Templa
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É o que acontece sempre, quando os quatro irmãos se encontram. Às tantas, sem se darem conta, estão a contar as suas memórias do passado, que tem quase sempre de comum os serões à entrada da porta, nas noites de calor,  quando era difícil dormir.
Lá estava sempre a Senhora Maria, sentada na soleira da sua casa, com os netos à volta das saias, mais os outros vizinhos e toda a criançada da rua. Quase nenhum miúdo faltava. Era o cinema deles, o seu entretenimento.
Falava-se de tudo e mais alguma coisa, ao acaso, sem selecção prévia. Todos podiam ouvir de quase tudo que não fosse sexo. Era tabu e falar sobre isso era proibido, vergonhoso até. Todo o resto eram coisas da vida, real ou imaginária, e ninguém sabia onde começava a imaginação e acabava a realidade. Mas, fossem aquelas noites de fantasia para os mais cépticos, para as crianças como os quatro irmãos eram sempre noites fascinantes.
O sobrenatural, o misterioso e inexplicável tinham sempre lugar de eleição no meio daquele braseiro nocturno, estivesse quem estivesse, velhos, novos e as crianças não eram nem mais nem menos do que os adultos. Ainda que depois tivessem pesadelos, ninguém as poupava. Contava-se tudo sem rodeios. A ideia de traumatismo infantil era feita de palavras que nem sequer deviam existir no dicionário da maioria das pessoas, naquela aldeia tão provinciana.

Quando os quatro irmãos se encontram lá vêm as histórias da infância, cujo tempo sem retorno se busca com saudade.
Desta vez as raparigas, habitualmente mais medrosas, tiveram uma surpresa quando descobriram que os dois irmãos, com tanta coisa que ouviam sobre bruxas, assombrações, almas penadas e lobisomens, também ficavam, depois, com medo. Todavia, nunca fugiam das histórias que, sobretudo a Senhora Maria, a mais velha de todos, contava. Não queriam parecer cobardes. Os homens, naquele tempo, não podiam recear nada. O medo era coisa de raparigas.
Uma vez, lembraram-se, fora a Luísa da Estrada, a bruxa das redondezas, que enfeitiçara os bois ao bisavô Joaquim, por alturas da vindima, quando os carregos das pipas se faziam pelo velho caminho do Douro, até aos barcos rabelos do rio, que as haviam de transportar ao Porto, a custo de remos e braçadas de homens durante horas e horas, sobre o curso traiçoeiro das águas.
A bruxa pedira trabalho para o carro dela. Disseram-lhe que não. O carrego ia ser feito pelo velho Joaquim, confirmou dono do lagar, com a palavra de homem honrado que não quer faltar ao compromisso.
Não valia a pena incomodarem o Tio Joaquim pois os bois iram cansar, afirmou ela, convicta de uma sabedoria feita não se sabe por que artes, que praticamente ninguém ousava desafiar.
Os bois cansaram mesmo e a feiticeira conseguiu o trabalho do bisavô...

Outra história foi a do homem que se enganou nas horas da manhã. Havia um trabalho de limpeza dos montes para fazer, lá longe no Cabeço, e tinham de se levantar muito antes de o sol romper no horizonte. Era para não apanharam o calor danado daquelas terras do demo, onde havia, como hoje, nove meses de inverno e três de inferno.
Sem relógio no bolso para se orientarem, todos foram na onda do madrugador, pondo-se a caminho, subindo a montanha às apalpadelas, por aqueles carreiros estreitos tanto para homens como para cabras.
Andaram, andaram e nunca mais amanhecia. Tinham-se enganado, constataram entretanto, mas não valia a pena voltar atrás, para a cama, onde o sono tinha ficado a meio, sem hipótese de ser retomando no ponto onde fora interrompido.
Foi quando viram, num largo, em que tantas vezes tinham passado e haveriam de passar no futuro, uma enorme fogueira, rodeada por homens e mulheres, a quem disseram boa noite e de quem ouviram igualmente as boas noites. Prosseguiram então, iniciando a tarefa, noite alta, com a lua lá no alto a alumiá-los.
A seguir, passadas algumas horas, já no regresso, em plena luz do dia, todos verificaram com espanto que não havia sinais de fogueira, nem de restos, que quase sempre ficam em ajuntamentos do género, sobretudo à noite, quando todos os gatos são pardos e o lixo é algo de somenos importância, nesse tempo quase todo constituído de matéria orgânica de fácil decomposição.

E era por causa destas histórias que um dos irmãos confessou um medo que, de alguma maneira, embora bastante atenuado, perdurava desde a infância até hoje.
Deram-se então todos conta de que na aldeia já quase não havia velhos para contarem coisas do outro mundo e alimentarem, tanto a imaginação como o medo das crianças do presente. Os quatro eram agora praticamente os últimos contadores de histórias semelhantes àquela do bisavô e dos seus bois quando cansaram, talvez por causa de um praga ou mau-olhado de uma bruxa sem escrúpulos que os enfeitiçara. 
E, por tudo isso, não podiam perder tempo. Tinham de se apressar a contar tudo o que ouviram outrora. Era para preencher o vazio da casa,  onde já nem a soleira da porta servia para serões. A menos que fosse fossem feitos com a presença dos mortos...
Templa - Membro nº 708

MissB

Olá, MissB. É só ir à aldeia e venho de lá com montes de inspiração - lol

Abraço

templa
Templa - Membro nº 708


Adorei  ;D

feliz de quem como nós ,cresceu a ouvir

estas historias ;D

por momentos quanto lia,parece-me estar de novo na aldeia :( ;)

bons tempos :-*

E por causa das minhas deambulações pelo mundo dos mortos e também  por causa da menina, senhora, dona Salomé, ;D ;D ;D é que hoje me lembrei destes serões...

Templa - Membro nº 708