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  • O plágio do livro roubado - para Gawen
    Iniciado por Templa
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"Sara foi a única a reconhecê-lo.
Reconhecê-lo-ia entre mil"


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Gabriel

Sou mera personagem de livro de quem todos podem fazer gato-sapato. Aparentemente sem poder dizer nem aí nem ui e muito menos acrescentar seja o que for a um destino que não é meu. A minha saga foi feita segundo caprichos de uma autora de meia-tijela, ao sabor da inspiração do momento. E, digo eu, nem sempre grande inspiração.
Já que a minha criadora me apresentou como um homem com quem o diabo fez um pacto, desengane-se mesmo ela se julgar que irei ficar calado a dormir no caixote do lixo. Foi aí que a editora para onde ela me enviou lançou o "manuscrito" em que sou personagem com outro nome. Mas agora vão ver em quem me transformei, após me terem negado a vida nesse primeiro romance. Houve um segundo e o terceiro está a começar.
Foi isto que me aconteceu. Morri antes de ter nascido. Fui então uma espécie de aborto provocado no ventre da mãe que me concebeu, literariamente falando. A editora bem agradeceu à mamã o facto de ter sido escolhida para parteira. Mas, embora sensibilizada pela escolha, acabou por se negar a contribuir para a minha existência. Não quis dar-me, nem a mim nem aos meus companheiros, o privilégio de nos tornarmos num best-seller com lugar nas livrarias do mundo inteiro. A editora terá achado o manuscrito uma idiotice. Ou será que tudo não passou de um golpe baixo?!... Não é uma pergunta, é uma afirmação e os sinais de pontuação são mera ironia.
É verdade. Depois da recusa em dar-me vida, ratos da literatura serviram-se de mim como se eu fosse, mais do que uma porcaria, um autêntico manjar de deuses. Alimentaram-se de nós até à exaustão, num mar de gargalhadas. Seguramente gargalhadas menos contagiantes do que as minhas e as da Clara juntas (hão-de saber quem é Clara). Nós rimos muito. Parecemos loucos, no livro que uma editora não quis publicar.
Sou uma personagem com mais vidas do que um gato. Nas contas da minha mãe verdadeira já há muito devia estar morto, enterrado e a fazer companhia às minhocas num caixão de pinheiro bravo sem tratamento. Devia ser para o meu corpo ser comido mais depressa pelos bichos, na terra onde a minha criadora e a filha, a Clara, assistiram ao meu funeral. Uma delas estava, até, a fumar um cigarro bastante pensativa, enquanto ouvia conversas de velhas beatas no cemitério onde comentavam a minha vida. Sempre foi mais ou menos desatinada desde que vim ao mundo.
Julgam-me o Demo em pessoa mas sou uma criatura de Deus. Bem querida Dele, por sinal. Tanto que, segundo a minha mãe de ficção, fui feito por uma mulher jovem e por um trolha no coreto de um pequeno santuário, entre umas pásadas de argamassa e o reboque de um sino para o sítio de onde ele tinha voado com o vento durante um forte temporal. Mas, como sou uma personagem atreita a picardias, apesar de ter tido outro nome, agora chamo-me Gabriel, o anjo, e desci do céu para agradar a gregos e a troianos. Já aterrei em vários romances quase em voo picado. Daí ser a estrela principal de duas tragicomédias, indo a minha vida como estão a ver na terceira trajectória.
Devo ser uma bela personagem. Com tanta gente a querer-me para os seus livros, só posso ser mesmo uma grande personagem. Sou Gabriel e nada mais vou acrescentar. Nada de apelidos. Vou deixar o suspense no ar e uma certa liberdade para cada um me chamar o que entender. Sou a melhor personagem que poderia ter acontecido a um romance. Sou pau para toda a colher.
Quando nasci tinha uns lábios finos. Contudo, numa vida de permeio, alguém os tornou mais grossos. Foi como se quisessem dar-lhe um ar africanado à custa de silicone. Querendo ou não, tenho de viver com este aspecto, ainda que, por falta de hábito, por vezes dê comigo a mordiscá-los como se eles fossem azeitonas sem caroço. Tudo faz parte do disfarce, diz a mamã. Ao menos por agora, enquanto não tenho autorização para me espraiar neste novo livro onde sou forçado a representar um outro número, de circo, espero eu, devo dar-me bem com este papel.
Gosto do meu novo nome e gosto ainda mais da alcunha. Tem tudo a ver comigo. Sou bonito como um anjo, uma verdadeira escultura ambulante de Miguel Ângelo, um David um tudo nada mais beneficiado. Tenho até a sensação de que o meu sangue foi, ao mesmo tempo, coado nas malhas da fina aristocracia e bafejado pelo espírito divino. É assim que o sinto correr da cabeça até aos pés, reentrando ele depois na terra como se eu fosse um imenso pára-raios. Sou um anjo com um pé na terra e outro no céu. Que grande ponte.
Tenho de agradecer a quem me fez assim tão belo: ao meu pai e à minha mãe verdadeira, a quem, se a outra deixar – eu não passo de uma marioneta nas mãos de ilusionistas – vou trocar também os nomes do mundo do faz de conta. Passarão a chamar-se, ele Inácio e ela Josefina. Um porque me faz lembrar padre de anedotas e outra porque a ligo, irremediavelmente, a um país onde Napoleão, quando estava prestes a chegar à beira da mulher com o mesmo nome da minha progenitora vindo das duras batalhas imperiais a cheirar a cavalo e a homem, lhe costumava mandar bilhetes eróticos dizendo: Josephine, ne te laves pas.
Quanto ao capelão do meu batismo, ele vai agora sentir verdadeiramente as águas baptismais na cabeça. Já não deve andar cá neste mundo, coitado... Há pequenas coisas que têm de ser mudadas. É para as personagens experimentarem outras sensações e uma nova importância noutras comédias. De Serafim vai passar a ser Serôdio, porque o nome anterior lembra-me o céu e todos os moradores. Incluindo a classe dos anjos a que agora pertenço, possa embora o bondoso do sacerdote estar já nos domínios celestiais graças à sua tolerância para com os paroquianos como eu. Tudo isto porque é importante alguém chamar-se qualquer coisa. De outro modo, até sem nome ficávamos para cada um nos apelidar do que muito bem entendesse. Enquanto a imaginação não ficar esclerosada ao ponto de nem sequer se saber designar uma coisa tão vulgar como chupeta, cada mortal pode chamar-nos como queira. Não choramos por nada. Nem pelas pancadas de que somos vítimas. Nem por enquanto nem nunca e jamais rangeremos os dentes por muitos apocalipses que possamos provocar.
Além dos meus velhotes e de uma ou outra pincelada em algumas pessoas da minha primeira história, só falo aqui no sacerdote porque ele tem algo a ver com o céu. O céu é o meu ambiente natural. Mas, mesmo assim, falo pouco. O que disse chega e sobra. Quanto mais se diz mais hipóteses há de dizer asneiras. A maioria das personagens ligadas ao meu nascimento parece-me absolutamente insossa. Sendo apenas massa para encher buracos da narrativa, não vou atribuir a mais nenhuma dignidade suficiente para figurar aqui. Ao menos na íntegra. Completas só têm de estar no livreco inicial, onde sou rei e senhor. Um rei e uma personagem em que autores pouco escrupulosos beberam inspiração. Foi quando nos fizeram em pedaços como se estivessem a dissecar cadáveres em mesa de autópsias num necrotério literário.
....

Este está pronto.... mas,L~e bem e diz-me qualquer coisa deste começozinho...
Templa - Membro nº 708

Bem, já li com toda a atenção, e acho, simplesmente, que é um começo excelente, fiquei sinceramente curioso por uma continuação, curioso em conhecer este personagem, que voltou para conseguir a sua "vingança".
Apesar da situação que te aconteceu, é bom ver que não baixaste os braços.
Agora, é esperar que o Gabriel consiga, ter o ser merecido lugar ao Sol. :)

Beijinhos! 

....
Contudo, apesar do gozo colectivo induzido em muita gente, garanto-lhes, no opúsculo onde nasci pela primeira vez, há umas criaturas bem interessantes e umas coisas bem escritas sobre a minha vida. Mas muito desarrumadas. Também, não era de esperar mais da minha criadora. Quando decidiu pôr-me nas bocas do mundo para viver uma vida de papel, tinha acabado de ler um livro chamado " Mulher procura um homem sexualmente activo para futura relação séria"...E, não sendo escritora nem de fim-de-semana, acreditou ser capaz de produzir algo semelhante a uma coisa que tanto sucesso tinha alcançado no mundo da literatura actual, em que já não há limites em coisa nenhuma. Depois de o homem ter pisado a Lua, depois de ter estudado os mares secos de Marte e observado os mil fogos do Sol e de Júpiter, nada me espanta. E, perdoem-me os outros planetas, mas vou ficar por aqui na enumeração do sistema, uma vez que a temática não é, nem a astronomia nem, muito menos, a astrologia.
A mamã conseguiu o objectivo com o seu primeiro livro, onde nasci com lábios finos. À excepção do sucesso. A mamã continua anónima e pobre como sempre, uma verdadeira alma gémea de Job. De resto, vejam só, somos todos tão valiosos que o melhor era a mamã ter feito um seguro das nossas vidas como Marlene Dietrchi fez das pernas. No mínimo,  para ninguém nos roubar tão descaradamente como fizeram,  tirando-nos do outro livro e pondo-nos a viver numa terra de moças trigueiras, com campos pejados de maçarocas de milho para broas duras como pedras e utilizadas depois de uma forma que não tem nada a ver com uma boa ortodoxia da fome.
Voltando à desordem do meu primeiro nascimento, é aqui que entro, pôr ordem no caos. No livro de onde fui arrancado, quase tudo figura ao contrário. É como se o Sol, de repente, começasse a nascer onde se põe, numa inversão tão grande como a maior hipérbole literária, quando Camões ainda se dava ao trabalho de ir ao dicionário escolher as palavras sublimes para edificar os Lusíadas. Principalmente para ilustrar a incomensurável beleza da Ilha dos Amores e das suas Tágides.
 Espera aí, Gabriel, refreia a imaginação, não saias daqui!...
Na mente da minha criadora,  comecei por morrer num hospital lúgubre, sem o mínimo de arrependimento pelas minhas maldades. Uma coisa sinistra, esta de se morrer antes de nascer, sem haver pelo meio ao menos um aborto. Deve ter sido por causa disso que a editora me mandou para o caixote. Foi para dar algum sentido à minha vida sem lógica. Uma vida de lixo.
É contigo mamã, é a ti que estou a criticar por me teres concebido daquela maneira tão perversa ....
Templa - Membro nº 708