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  • Isto é um conto, mas coisas destas acontecem à Ana
    Iniciado por Templa
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Desculpem, mas eu já lhes disse que escrevo e escrevi este conto para um bloguezito que tenho

A festa.

18 de Julho de 2009

Depois de uma viagem de mais de três horas, cheguei antes das cinco, com o carro atafulhado de coisas. Cheguei como quem regressa de vez, após mais de 4 décadas a aprender coisas que ali e naquele tempo não aprenderia. Foi por isso que parti. Era para rasgar os meus horizontes. As montanhas junto ao céu, com as duas aldeias em frente, depois do rio, limitava-mos.
Até que abri caminho por entre elas e fui embora.
Agora acabava de chegar.
Levava alimentos para uma semana. O primeiro dia seria o da festa, quando cheguei, um pouco antes da procissão, e parei o carro no largo novo, inexistente quando parti.
Vi três ou quatro pessoas desconhecidas. Nem lhes consegui tirar parecenças com alguém com quem tivesse privado um dia, antes da saída. Limitei-me a ver e a especular sozinha.
Olhando para o ar, sem sombra de enfeite que desse a entender ser dia de festa, regressei por momentos ao passado, ao velho largo junto à igreja e vi aquelas fitas coloridas, azuis, vermelhas, amarelas, verdes e cor-de-rosa, entrelaçadas umas nas outras e penduradas nas casas, que ladeavam o largo. Aquilo sim, eram sinais de festa, pobrezinhos mas sinais, feitos pelas mãos de uma boa dezena de raparigas, para quem o baile da noite, depois da procissão, seria um prémio. Talvez até fosse a noite de arranjar namorado, enquanto dançassem ao som soas velhas valsas e dos passos dobles tocados pelo vinil dos tempos, se não fosse a banda da terra em frente a tocá-las com entusiasmo e às vezes grandes fífias.
Hoje não há raparigas, além disso também não há espírito e os velhos não dançam. Já não podem. Alguns, mal conseguem caminhar, outros queixam-se com dores nas artroses, com os filhos e os netos longe, à distância de um telefonema, mas, mesmo assim, com a enorme carência do toque sentido num abraço afectuoso.
Fui a seguir para casa. Não nasci nela, mas foi lá que vivi durante um breve período, antes de rasgar as montanhas e fazer-me à estrada para o concerto da minha vida.
Voltei de novo ao passado e, olhando para o presente, vejo mais um pequeno deserto nesta casa. Estou sozinha e tenho necessidade de a povoar.
Ressuscito a mãe. Hoje faz-me falta, neste dia de festa, para enfeitar os andores da procissão, com os veludos e cetins de que vestia os santos para a volta anual, com a padroeira no fim do cortejo, iniciado com o Senhor dos Passos. Vou enchê-la de gente, com os meus irmãos ainda crianças, o menu farto do almoço e do jantar, saído do galinheiro e do forno, onde o pão-de-ló e as cavacas cresceram depois da oração da avó.
Hoje, nesta casa, vão jantar os membros da banda de música e eu vou ouvir a anedota dos figos no cemitério:
Dois rapazolas, durante a noite, para gozar com os crédulos, comiam figos na figueira que tombava para o cemitério, dizendo
- Enquanto fomos vivos, vínhamos a esta figueira aos figos, agora que somos finados comemos dos mais passados.
E os ladrões das uvas e da vinha, julgando serem almas do outro mundo a falar-lhes, fugiam a sete pés.
É um faz de conta, bem sei. Estou aqui sozinha. Quando muito, se o tempo tiver memória e for uma espécie de máquina fotográfica, os mortos estarão aqui, na película negativa, que eu não vejo nem sinto, porque ainda estou do outro lado.
Quem me dera ter aqui a Ana para ajudar. Ela diz que esta aldeia é imensamente povoada e, quando a virmos a ziguezaguear na rua, podemos ter a certeza, está a desviar-se de alguém que andou cá em carne e osso, noutro tempo. Há aqui particularmente uma rua onde ela não gosta de passar. É tanta gente que se atropelam uns aos outros.
Sobre a casa, diz que houve aqui muito sofrimento. Gente que enlouqueceu e matou, uma mulher com um lenço preto em triângulo na cabeça, escondida e envergonhada num quarto, por causa do acto tresloucado do marido, que mandou o pai para o outro mundo, no monte onde podavam os pinheiros e desbastavam o mato, com machados que um dia se encheram de sangue.
A Ana diz que está uma mulher à porta. Diz que nunca entra. Um dia foi admoestada pelo dono por qualquer coisa que não agradou ao homem e, a partir daí, nunca mais entrou. À beira dela vê uma criança, calma e serena. Está à espera da irmã gémea.
Um dia viu lá a minha mãe, sentada na sala no único sofá vazio. Os outros estavam ocupados pelos dois netos, pela Ana e pelo namorado. Conheceu-a porque viu uma fotografia dela logo ali, no aparador. Observava os netos e os convidados, lá do negativo da fotografia do tempo, e deu a entender que não gostava de estranhos lá em casa.
A Cata e o irmão vão ao cemitério pôr flores na campa dos avós. Sugerem à Ana que não vá, para evitar encontros no cemitério. Ela não se importa e quando lá chega só encontra uma rapariga lá ao fundo, numa capela, meio perdida. Contam-lhe a história da tragédia em França e a Ana percebe as razões da rapariga.: não se identifica com nenhum dos lados, nem o português nem o francês e prefere estar ali sozinha.
Os outros passeiam-se, à luz do dia e ao luar da noite, pela aldeia, com cavalos, carros de bois, as mulheres com crianças pela mão, fazendo a sua vida normal.
O A. Continua pendurado há mais de 40 anos no nó da corda, na adega do vinho. Está lá e estará, diz ela. Até eu o "sinto" dentro, de trás da porta, avaro como sempre e o terror das crianças, quando se passeava no velho Bently de 1950, tal como o homem pendurado na oliveira junto à estrada para a vila. É a fotografia do tempo e eu estou do outro lado, no lado positivo da fotografia.

A procissão vai começar. A mãe deve estar por aí a assistir, a relembrar velhas festas, quando os cetins e os enfeites lhe passavam pelas mãos e decidia que santos iriam esse ano dar a volta pela aldeia, ao som da banda de música da terra em frente. Se calhar, até soprou ao rapaz, ao G., um conselho sobre as flores que substituíram os tules e rendas antigas que ela usava e quando ele e a irmã a ajudavam.
O rapaz, deu-lhe para ali. Dizem que é homossexual, mas isso não interessa para nada. Os desvios de alguma coisa às vezes são compensados por outras. Parece o caso, uma vez que o G tem imensa sensibilidade com as flores.

A procissão já acabou e toda a gente dispersa, não sem antes, aos ombros de quatro homens fortes, dos poucos que ainda vêm cá, se levar o pesado Senhor dos Passos à capela, onde fica um ano inteiro, numa espécie de segunda e silenciosa procissão.
A banda está em desalinho e até as fraldas da camisa de alguns músicos saíram de dentro das calças. A gravata, assim, já não faz sentido e alarga-se o nó
Vejo uns garotos, à roda dos seus dez anos, e pergunto-lhes o que tocam. É repercussão, respondem-me e eu noto a diferença. Fico contente, porque, noutros tempos, quase só havia homens barrigudos a tocar na banda que comeu lá em casa, quando ouvi pela primeira vez a anedota dos figos no cemitério

Regresso a casa, faço o jantar e, de seguida vou para o arraial, a festa pagã, onde por volta da meia-noite verei o fogo de artifício.

Noto mais uma vez a falta das raparigas das fitas e das flores de papel e vejo que, como antigamente, a maioria dos homens não sabe dançar. As mulheres dançam umas com as outras, já não ao som do antigo vinil e das bandas com fífias, mas sob aquela batida igual em todas as festas, em altos gritos e quase a perfurar-me os tímpanos.

A festa acabou.
Grande parte das pessoas regressará à vida habitual na cidade grande onde se rasgam horizontes e cá ficarão de novo os velhos, enquanto alguns pobres escribas como eu terão mais um motivo para contar histórias de "Era uma vez"....,
Uma aldeia outrora imensamente povoada, mas agora pouco mais do que um deserto rodeado de imenso verde...
Templa - Membro nº 708

É um conto muito bonito Templa!  ...e para mais baseado em factos verídicos! :)

É verdade. Tenho alguns contos  baseados em sonhos,  que para mim não querem significar nada de transcendente, talvez com excepção de um...

Obrigada por apreciar
Templa - Membro nº 708

Citação de: Templa em 28 agosto, 2009, 16:30
É verdade. Tenho alguns contos  baseados em sonhos,  que para mim não querem significar nada de transcendente, talvez com excepção de um...

Obrigada por apreciar

Obrigado eu por partilhar connosco. :)

Believe to see...

Será que não posso modificar aqui uma pequena gralha no final da linha 15?

Templa
Templa - Membro nº 708

Que história tão bonita...fez-me lembra os meus avós:a avó quando vestia a roupa que tinham mandado fazer á costureira da terra,e o avô quando estreava uma camisa e umas calças novas compradas no dia do mercado...e os meus pais e nós(eu e a minha irmã) que íamos passar as férias com eles e já levávamos na bagagem o vestido novo e os sapatos,para estrear na noite da festa...era uma festa assim mágica...tenho tantas saudades!óh tempo volta para trás,traz-me o cheirinho do pão da minha avó acabado de sair do forno,o chupar do mel directamente dos favos das colmeias do meu avô,e o café feito no púcaro,e quando o pão já estava duro,o cheiro das torradas feitas no fogão...ai ai acho que sofro de saudadite aguda  :laugh:

Como é que fazem os links?!! - risos de ignorância.

Alguém me ajuda?

Templa
Templa - Membro nº 708


Bem que gostava de te ajudar,mas também não sei :P

mais uma vez parabéns Templa :-*

obrigada por os partilhares :-* :-* :-*

Então é assim(penso eu de que...) vais lá acima á barra de endereços,clicas no botão direito do rato,em cima do endereço que queres, clicas no copiar e depois clicas outra vez no botão direito e colas aqui na caixa de mensagem...espero ter ajudado e que não tenha sido muito confuso...beijinhos :-*

Templa - Membro nº 708


Que viagem nostálgica ao baú das memórias, em que a aldeia da infância (de cada um de nós) se revela no seu esplendor de vida simples e contagiante. São essas imagens, sons e cheiros que fazem parte do nosso imaginário de aldeia, e aqui tão expressivamente ressuscitado.
Obrigado.

Citação de: Arph em 26 agosto, 2011, 11:32
Que viagem nostálgica ao baú das memórias, em que a aldeia da infância (de cada um de nós) se revela no seu esplendor de vida simples e contagiante. São essas imagens, sons e cheiros que fazem parte do nosso imaginário de aldeia, e aqui tão expressivamente ressuscitado.
Obrigado.

Olá, Arpinho!!!

Notas alguma diferença?!... ;)

Apetecia-me cantar uma canção,  tão velha como o grão de bico... Eu sou a mesma!!! Eu sou a mesma!!!! ;D
Templa - Membro nº 708