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  • O Meu Anjo da Guarda
    Iniciado por Templa
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Em tempos apeteceu-me perguntar-lhe o que andava ele a fazer. Depois de algumas coisas menos boas, achava-o demasiado relapso comigo, tão longe me parecia ele andar, lá pelos antípodas e a tratar da vida de outro protegido qualquer e violando o compromisso assumido com Deus quando Deus lhe ordenou para andar sempre no meu encalço. Mas, não demorou muito tempo até eu perceber que, se o sentia distante, a culpa seria provavelmente minha. Segundo relatos de pessoas íntimas dos anjos, eles, mal vêem os pupilos a pisar riscos e enveredarem pela senda do disparate, discretamente, afastam-se e deixam-nos estatelar-se ao comprido, até eles perceberem que não irão a lado nenhum sem o sopro e a orientação divina dos anjos.
Deve ter sido isso o que aconteceu comigo. O meu anjo, provavelmente, depois de muita ventania nos meus ouvidos, quando eu não conseguia identificar os pequenos sopros como uma emanação sua, abalou. Não valia a pena mandar-me ao otorrino porque o mal não era deles. Era da minha cabeça, dura como uma rocha, perdida algures entre objectivos mal definidos e riscos mal calculados, já para não falar em concretizações deficientes.
Hoje dou comigo a pensar que muitas vezes o senti perto a avisar-me, tu vê lá tem cuidado, esse não é o melhor caminho, mas, como a sua voz era ténue e parecida com uma sensação que julguei advinda de mim própria, raramente lhe dei ouvidos. Eu é que sabia, os anjos eram coisas de crianças renitentes em adormecer à noite e que precisavam de alguém imaginário, suficientemente poderoso para as ajudar a lidar com o medo do escuro. E esse eu já não tinha há algum tempo.
Com tanta desconsideração da minha parte, doido seria o meu anjo se se mantivesse perto da mim, a apaijar-me e a lidar constantemente com a minha indiferença.  
Quando não via ainda as coisas com esta clareza, quantas vezes não dei por mim a pregar imaginariamente uma valente admoestação ao meu Anjo da Guarda por deficiente cumprimento do contrato. Era pelas coisas que não tinha e a que me achava com direito, pelas oportunidades perdidas ou nunca encontradas e que outras pessoas tinham. Às vezes até eram coisas banais. O casaco e os sapatos bonitos inacessíveis ao meu bolso, uma viajem simples a um sítio apetecível que igualmente o meu dinheiro não podia comprar.
Durante largo tempo não percebi que o meu anjo, mais perto do que eu poderia imaginar, assistia impávido e sereno à minha rebeldia, esperando pacientemente o meu despertar para o trabalho dos anjos e para as coisas simples da vida. Nessa altura, ele explicar-me-ia os planos de Deus, pondo-me igualmente ao corrente até onde iria o seu jogo de cintura relativamente a mim. Se eu lhe pedisse para ser uma princesa igual às dos contos de fadas era óbvio que ele não podia cumprir o meu pedido. Primeiro, porque não me estava destinado, segundo, porque os príncipes são escassos e há por aí muitos mais sapos que têm igualmente direito à sua sapinha para viverem felizes para sempre. E, excluída a história do príncipe, se eu lhe pedisse do mesmo modo para manipular lá na tômbola os números do Euromilhões a fim de os premiados serem os do meu boletim, é lógico que ele, da mesma forma, não me poderia conceder esse desiderato. Consultado o meu plano, logo este demonstraria que o Euromilhões não tinha lá cabimento orçamental e, como tal, não poderia ser executado, sob pena de o Plano Universal entrar em défice como as contas públicas do país.
Entretanto, o assunto "Anjos" passou a fazer parte do meu estudo diário. Que se afastavam quando constatavam a nossa indiferença, que tinham muitas ovelhas como nós para cuidar, que respondiam ao nosso chamamento sincero quando precisássemos deles e que nos satisfaziam os nossos desejos quando razoáveis. Não poderiam ser do género do Euromilhões, porque eles não entendiam por que teria para nós o dinheiro um peso tão decisivo. Sem corpo material, seres de luz, era-lhes difícil entender por que gastamos nós tanto nos supermercados, quando um pouco bastaria para nos manter saciados e suficientemente magros para, à chegada, não embarrilar as portas do céu com a nossa gula. Além do mais, no caso do Euromilhões, com todos os anjos a terem dos seus pupilos o pedido semanal do primeiro prémio, difícil seria para um anjo com mais poder em Rectificações dos Planos Divinos Individuais alterar um que não estivesse contemplado com ele. Os outros certamente caíam-lhe em cima, talvez ao ponto de desencadearem uma grande guerra no céu. E de guerras bem bastam as da terra para nos consumirem. É o que eu penso agora.
Hoje, depois do meu despertar para o trabalho dos anjos, sou bastante mais razoável nos pedidos. Por exemplo, acho que não lhe dariam trabalho algum ele curar as dores das minhas costas, depois de mais de um mês a padecer delas. Após  ter ouvido dizer que os anjos gostam de rotinas bem estabelecidas e de pedidos claros, achei que a melhor hora para contactar com ele era às refeições. Estabeleci um paralelismo com os humanos e constatei que grande parte das coisas importantes da vida se realizam à mesa. À mesa se concretizam os grandes negócios, fazem-se os pedidos de casamento, as comemorações dos aniversários... E para tudo parecer mais real e eu não me esquecer de dialogar com o meu Anjo da Guarda, fui ao ponto de pôr a mesa para ele...
Posto isso, não me admiraria se amanhã acordasse completamente curada...
Ah, já agora, mesmo que nunca me dê ouvidos, pode ele ter a certeza de que, semanalmente, nunca se vai livrar de ouvir uma e outra vez, Ouve lá meu Anjo da Guarda, contempla-me esta semana com os vinte e nove milhões de euros ou com quanto o prémio comportar.
Mais claro do que isto é impossível!...
E aqui vai um sorriso... :)

15 de Janeiro de 2011

Templa
Templa - Membro nº 708