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  • Crónica da cidade - Hiroxima
    Iniciado por Templa
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Devia sentir-me feliz. Acabei um trabalho importante que deveria fazer-me rejubilar de contentamento. Mas não. Não me sinto feliz
Tinha ainda outra razão para sorrir de espírito lavado. Acabara de ler A Cidade e as Serras, inebriada pela pena magistral de Eça de Queiroz ao desvendar a alma de um Jacinto enfadado da cidade e rejuvenescido depois pelo doce oxigénio de Tormes. E, como se isso não bastasse para eu me sentir feliz e o Príncipe da Grã Ventura despoluir os pulmões da civilização e da fartura do século parisiense, Zé Fernandes, o bondoso Zé Fernandes, ainda lhe colocou no caminho e no meio das serras fartas de verde, onde a beleza dói, a prima Joaninha. Era para Jacinto se esquecer definitivamente da cidade.
Contudo, bem diferente do Príncipe, não me sinto feliz.
Dormi mal e, entrecortados pela insónia, pelos mosquitos e pelo suor que me desfazia num lago de águas paradas, os pesadelos acossavam o meu cérebro, moribundo com a violência de uma guerra onde a civilização vergava à fúria de fósforos assassinos.
De vez em quando, nos meus interlúdios nocturnos acerca do mar de chamas que povoava o meu sono, pensava em Jacinto e nas suas malas, perdidas num miserável comboio a carvão que lhe mandara os caixotes carregados de civilização para Madrid e sorria.
Em certos momentos idealizava uma enxerga dura como granito, semelhante à de Jacinto no dia em que teve, pela primeira vez, uma sensação da barbárie que o iniciou na vida da simplicidade.
Também eu queria viver sob a capa de uma filosofia simples como a de uma pedra, esquecendo igualmente, sem vazios nem saudades, a minha moribunda civilização. Mas não. Quase a amanhecer, daí a pouco veria a aurora libertadora da minha insónia e dos meus pesadelos a dar-me os bons-dias.
A seguir, o sol entrou pelas vidraças, negro e moribundo como eu, depois de uma noite em branco. Era como se dele estivesse prestes a escorrer, não calor mas sim a chuva bendita e regeneradora da terra, ressequida por um estio que atravessara todas as estações.
Talvez hoje tudo estivesse a inverter-se e se esperasse que da noite se desprendessem os verdadeiros raios de sol. Mas não. Era apenas a tragédia e a morte a espalharem-se num mundo a perder de vista.
À medida que arredava a remela dos meus olhos turvos e a vida tomava de novo conta deles, pensava nos riscos do calendário do mês de Agosto, vermelho como um inferno, e assinalava mais um dia tórrido no papel das lembranças, acorrentadas às minhas ideias do mundo à força de civilização: seis de Agosto.
Era o dia em que a Margarida fazia anos, alguns mais do que a Ponte Vinte e Cinco de Abril e menos do que a bomba de Hiroxima quando, de um avião, negro como um corvo anunciando desgraça, vomitando fumo e morte, eram vilmente arremessados em terra pequenos invólucros de ciência, carregados da mais requintada e ignóbil civilização.
Quando saí de casa, pude então ver um manto do meu pedaço de terra envolto numa espessa e mortífera bruma, que respirava o fogo do inferno onde o diabo há dias e dias se inebriava como um Nero louco, consumando a destruição da sua augusta e submissa Roma.
Ali ao lado, sobre o asfalto que o carro galgava sob o efeito da desolação dos meus pés,  no céu pardacento de mais um dia seis de Agosto do ano da desgraça de dois mil e cinco, dois aviões cruzavam-se no céu, muito rentes, um indo e outro vindo, perto das casinhas em pijama na Costa Nova recém acordadas, onde Eça veranerara no tempo em  que as serras de Portugal ainda brilhavam de viço.
Um deles já tinha ido ao curso de água mais próximo beber parte do precioso líquido que faltava cada vez mais nos rios, magros e esquálidos como cobras mortas de velhice, e outro preparava-se para descer até lá, num voo desesperado de quem precisa urgentemente de matar a sede da floresta em chamas.
Depois, à medida que me ia aproximando do meu destino, na estrada à frente dos meus olhos, do céu e da terra, de todo o lado e das árvores que por mim passavam estonteadas ainda adormecidas pelo sono matinal, emergia uma névoa de um cinzento encardido, prolongando o seu negrume pela vastidão do horizonte e sem abrir uma única clareira de clara luz.
Era o fogo, era o inferno, era Portugal a arder, a murchar, tisnado pela vergonha de um país pejado de homens inertes, há muito mortos pelo abismo das civilizações onde os espectáculos de matas a arder se repetem todos os anos, por entre políticos ondulantes, lavradores de uma política de terra queimada que enegrece as minhas serras e os meus montes, envergonhando a gente simples.
De novo pensava em Jacinto e nos seus caixotes de civilização a viajar entre Paris e Tormes,  quiçá com alguns isqueiros e fósforos perdidos no breu dos invólucros da carga civilizacional – e revia o seu espanto ao contemplar a beleza dos montes e das vinhas onde tinham crescido os ossos dos ancestrais avós, que ele ia agora trasladar para a capelinha restaurada.
A seguir, perante a nova barbárie nacional, lágrimas de raiva, de frustração e de impotência assomaram-me aos olhos, vergados ao peso da morte que comigo viajava no dia seis de Agosto de 2005.
Depois, no fulgor da minha imaginação, transpondo a dimensão do tempo e do espaço, via o pobre do Príncipe Jacinto, convertido à serrania pelo verde de outrora, mudo de espanto ao contemplar o negro horror onde desembocara a civilização que ele há mais de um século abandonara.
Entretanto, das caixas chegadas a Tormes, movidos por uma fúria louca e no tanque da quinta de onde brotava água cristalina, ambos encharcámos os fósforos incendiários, fumando, após isso e apesar disso, um pensativo cigarro.
Finalmente, o nosso próximo contributo para destruir a malfadada civilização que continuava a matar os montes seria procurarmos dois pauzinhos para friccionar entre os dedos até surgir um brando lume, fazendo então uma pequena fogueira que nos aquecesse as mãos.
Era somente o que precisávamos, depois de tanto frio na alma...

Porto, 6 de Agosto de 2005
Templa - Membro nº 708