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  • Uma crónica de viagem - Droga de vida
    Iniciado por Templa
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Se viajasse no Expresso do Oriente teria certamente episódios capazes de me fornecerem inspiração para um livro de crónicas maior do que os dos contos das mil e uma noites dessa martirizada Babilónia, a sucumbir aos mísseis e à pilhagem desenfreada dos ladrões do tempo e da história.
Mas, por agora, as minhas viagens decorrem em comboios,  onde a vida também não é um mar de rosas, decorrendo suspensa na etérea e eternizável vontade da CP em que abundam jardins de indiferença para com os passageiros, a quem, obviamente, ela não trata como flores.
Nada há a acrescentar aos últimos relatos sobre a coxia e sobre as carruagens, apinhadas de gente todos os dias, no comboio com início na Estação de S. Bento, às dezoito horas, onde os azulejos e toda a traça, esperando obras, estão emparedados por taipais e coberturas,  assemelhando-se aos santos das igrejas agora tapados com panos roxos em mais uma vivência quaresmal. Ainda deve ser assim. Há já algum tempo que não entro num templo e Deus que me perdoe. Mas Ele não deve ser vingativo...
O meu sacrifício começa como sempre em Campanhã.
Mal transponho as escadas rolantes, a entrada do trem resiste à minha chegada e é como casaco a rebentar pelas costuras que vai albergar a custo mais uma presença, diariamente a rabiscar assinatura naquele imenso livro de ponto.
Depois, a prece dos passageiros apeados vai no sentido de que o comboio ganhe asas até Espinho de maneira a lograrem um assento,  qual jogo da cadeira e da sua lógica de exclusão do jogador menos lesto. Assim, embora os viajantes não se assemelhem de maneira alguma aos ladrões de Bagdade, todos eles são trespassados por uma vaga sensação de que se comportam como tal na procura frenética de um lugar,  onde possam descansar das vicissitudes do dia.
Eu não sou excepção e hoje logrei sentar-me num banco de napa amarela contíguo à porta,  que ostenta um golpe de meio metro provocado por navalha sanguinária às mãos de um cérebro não menos perverso.
Na coxia, entre outras pessoas, vão um rapaz e uma rapariga,  que começam a conversar. Olhando pelo canto do olho,  consigo descortinar o jovem. Os cabelos estão enredados em pequenas trancinhas negras,  que dão à sua tez morena um ar de africano. A realçar uma figura de vagabundo, ostenta, fazendo sobressair a indulgência que lhe atribuo, seis pírcingues nas orelhas e veste-se aligeirado,  com roupa cinzenta a que se apega alguma sujidade. Calça sapatilhas pretas e nada mais há a notar,  a não ser uns olhos esgazeados aos quais parece estar associada alguma droga.
A moça permanece fora do alcance da minha vista, mas, pelas palavras que consigo ouvir, parece-me tratar-se de uma estudante em férias. E são precisamente as férias o tema de conversa dos dois.
 Onde é que tu vais agora na Páscoa?  pergunta o jovem, convicto e certo de que as palavras já alinhavadas na sua mente provocariam alguma inveja à rapariga.
 Vou até ao Algarve com os meus pais. Vão ser só três dias. Antes, tenho ainda bastantes coisas para estudar. As frequências não tardam aí e eu não queria deixar mais do que uma cadeira para Setembro.
 Isso é bom. Mas se calhar não vais ter muito bom tempo...
 Vamos lá ver. Pode ser que até lá as coisas melhorem − responde esperançada − E tu, vais a algum lado?
 Vou a Londres. Por isso o tempo a mim não me há-de fazer grande diferença. Por lá está quase sempre nevoeiro. Mas, também, o meu objectivo é cultural. Ver uns museus, ir ao teatro e por aí adiante...
 Ah! Que bom! Não conheço. Londres é uma cidade que me atrai muito. Apesar de preferir Paris. Deve ser bastante mais alegre...
 Já lá fui muitas vezes, assim como a outros locais. Viajo bastante...
Avanca, a paragem da rapariga, aproxima-se. Os dois despedem-se enquanto o revisor se prepara para picar os bilhetes, tarefa essa que lhe é completamente impossível iniciar antes de Espinho devido à multidão apinhada em todos os lugares e por entre a qual romper é como penetrar numa qualquer floresta enriçada e onde os troncos das árvores se entrecruzam como as grades intransponíveis de uma cadeia.
Já sozinho na coxia, o jovem, de repente, é acometido de uma frenética necessidade de visitar a casa de banho. Presumo que não deve ser para desfazer a barba, de alguns dias, com qualquer máquina eléctrica, até porque não há tomada nesse exíguo compartimento e não acredito que ele traga consigo nenhuma gilete, nem creme ou seja lá o que for para se barbear.
O revisor, munido da tesoura de picar e talvez de um pensamento menos abonatório relativo ao rapaz, aguarda a saída deste, cuja visita à casinha já se prolonga por algum tempo.
As nossas mentes devem ter-se encontrado na ideia malévola de que o moço, eventualmente em estado adiantado de ressaca, estaria provavelmente a utilizar uma seringa e a introduzir na veia uma dessas substâncias que um dia lhe deixarão os dentes apodrecidos e a pele escura, marcando-o com o sinal de quem se perdeu no mundo tenebroso da droga.
Passados uns instantes, o homem abre a porta de rompante, solicitando o bilhete ao jovem. As desculpas dele pela inexistência do título de transporte sucedem-se em catadupa:
 Entrei em Ovar e não tive tempo de o comprar...
 Então, vou ter que emitir um! − informou o revisor, no tom imperativo de quem espera revelações incongruentes.
O jovem finge procurar dinheiro nos bolsos das calças cinzentas coçadas pelo lixo, apalpando aqui e ali todos os lugares do corpo onde pudesse ter guardado os euros de salvação de uma multa que o pica, antes de passar à atitude benevolente agora proposta, ameaçara aplicar-lhe.
Passados uns segundos, gorada a frenética busca, o viajante clandestino aventou a hipótese de ter perdido o porta-moedas, dizendo que a única maneira de relevar a falta seria sair em Estarreja.
Por entre palavras de repressão proferidas pelo revisor, lá se descortinava um tom em que se adivinhava uma compaixão por mais um desgraçado entre os muitos a arrastarem-se por esse mundo fora. Afinal, Londres não era outra coisa senão uma forma de desviar a ideia dos passageiros da miséria de quem, de tão perdido e carecido de atenção e de tudo, nem sequer tinha dinheiro para comprar um mísero bilhete.
Já livre do pobre drogado, o comboio arranca lento como uma cobra, ao som de um silvo agudo, o grito de quem pouco pode fazer para mudar tanta degradação...
Ficou a boa vontade e a comiseração de um revisor causticado por uma vivência de cenas idênticas, tantas vezes repetidas...
Droga de vida!...


Aveiro, 16 de Abril de 2003
Templa - Membro nº 708


Citação de: Arph em 09 dezembro, 2010, 13:04
Simplesmente, sublime!


Também gosto muito desta crónica... Eu sempre disse que a realidade é muito mais rica do que a ficção...


Templa
Templa - Membro nº 708

Não me canso de te ler ;) mais uma vez muito bom ;)

Oh, Nitinha, obrigadinha, minha linda...

Abraço e beijinho quentinho, mais quentinho do que os meus pés. Não sei onde é que a karoxinha consegur comprar as meias quentinhas dela...


Templa
Templa - Membro nº 708