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  • A morte do Diabo
    Iniciado por Templa
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Era o tempo em que a vida era deveras difícil. Sobretudo no campo, passava-se fome e era terrível ver crianças no inverno mal alimentadas, com frio, a caminho da escola, onde uma pequena braseira redonda ficava colocada num estrado, na secretária, sob os pés da professora, sem aquecer a sala, mantendo-as a tiritar. E isto era apenas uma parte das dificuldades, quando tudo era longe e não havia senão caminhos de cabras, que, principalmente as mulheres, tinham de atravessar, carregadas com tudo e mais alguma coisa. Transportavam o que quer que fosse à cabeça, água do fontanário, em cântaros, e a lenha que iam buscar aos montes, quando, sozinhas, quase varriam as montanhas tanto como a casa. Mantinham os montes limpos de mato, sem risco de incêndio, enquanto desenvolviam os músculos do corpo e ganhavam força. Não havia grandes estradas e, quando um carro passava sobre uma estradeca de terra batida, que ligava a pequena aldeia ao resto do mundo, era um acontecimento. Os veículos, grandes e pachorrentos, serpenteando a estrada cheia de curvas, motivavam sempre olhares curiosos da pequenada. Sobretudo dos rapazes. Não era raro desatarem a correr atrás da viatura, tentando superar a rapidez da máquina, até se cansarem e pararem esbaforidos.
Lá na pequena aldeia de mais um "Era uma vez..." era quase tão difícil viver como morrer. O trabalho fazia-se à força de braços, de gente e de animais. Quase ninguém tinha carro, nem todas as casas tinham um burro, ou um cavalo. Alimentar um jumento ficava caro e o dinheiro era preciso para sustentar a família, quase sempre numerosa.
Entre as contingências dos transportes, havia coisas demasiado sensíveis para serem movidas de um lado para o outro sem o rigor horizontal que a cabeça de uma mulher podia proporcionar. Era o caso de um caixão para acolher um morto na sua última morada.
Não havia na aldeia nenhum cangalheiro e quando alguém, depois do agoirento pio nocturno do mocho, se passava para o outro lado, tinha de se ir buscar o caixão a uma terra distante, uma vila abastada no tempo de D. Dinis, que entretanto tinha perdido o foral e a importância. Para lá chegar, era preciso galgar uns bons 15 quilómetros, por atalhos quantas vezes, enquanto o morto ficava estendido em casa, numa cama colocada no meio da sala que lhe servia de esquife, até chegar o seu último casaco.
Foi o que aconteceu um dia, pelo fim da tarde. Um homem velho decidiu, ou alguém decidiu por ele, não ver o amanhecer seguinte.
A família foi ter com a Senhora Maria, uma égua de força que, anos mais tarde, à soleira da porta, com a bengala que teve de usar até ao fim da vida depois de fracturar uma perna, nos quentes serões de verão, contava histórias de almas penadas, enquanto o calor não se aquietava:

"Um dia, ia eu e o Firmino buscar mais um caixão. Desta vez para o Senhor João António. Mas, como era de noite, eu não podia ir sozinha. Havia tanto ladrão à solta a assaltar toda a gente que não me atreveria ir sem ninguém. Nunca fui medrosa e nem sequer as almas do outro mundo me metiam medo. O único senão eram de facto os assaltantes, que eu, como qualquer pessoa, temia, naturalmente. Sobretudo quando havia um longo caminho pela frente, ida e regresso, depois de ter de atravessar um concelho e ir para além do rio, subir e descer uma estrada íngreme, aberta a picareta no início do século XX. Além disso, de noite, escuro como breu, havia sempre a possibilidade de dar um trambolhão e partir as pernas, dando cabo do último abrigo de uma alma convocada recentemente pelo Criador para ajustar as últimas contas da vida. O velhote não podia correr o risco de ver o seu abrigo desmantelado com uma queda das minhas, igual a esta que me tolheu para sempre.
Foi por isso que a família do defunto disse ao feitor da quinta para me acompanhar. O mais tardar no dia seguinte, de manhã, o cadáver teria de estar arranjadinho e bonito  na sua cama perpétua, pronto a ser transportado manualmente para o cemitério da aldeia, depois da missa de corpo presente. E, se tivesse de fazer uma viagem mais longa até ao céu para se encontrar com o Criador, isso era com ambos. Eu é que tinha de me desenvencilhar da missão sem nenhum percalço.  
A ida, bem diferente do regresso, não ofereceu problemas de maior. Saímos ao entardecer, o Firmino munido com uma espingarda e com uma fraca lanterna pendurada no braço. Levava também um farnel de pão, salpicão e presunto, bem como uma cabaça, que enchera de vinho na adega, antes de nos pormos a caminho.
Quase a chegar a casa do cangalheiro, mortos de fome, decidimos comer a merenda. A família do falecido tinha sido generosa e, sentados num muro da estrada, no escuro da noite, comemos e bebemos até ficarmos saciados. A noite era ainda uma criança e tínhamos ainda muitas horas pela frente.
Seguiu-se a vinda, mal o cangalheiro e o Firmino me ajudaram a pôr a urna à cabeça, sobre a rodilha, um farrapo de pano enrolado e achatado, em que assentava a última morada do Senhor João António, a quem eu fora buscar o presente.
E vínhamos nós, estrada fora, sem vermos vivalma. Eu carregada como uma mula e o Firmino com a lanterna na mão e a espingarda ao ombro, pronto a atirar ao primeiro ladrão que nos aparecesse à frente. Não levávamos dinheiro connosco, nem antes, nem depois. O caixão fora fiado. A família do defunto era suficientemente abastada para ter crédito em todo o lado. Inclusive na funerária, ainda que morressem todos de uma vez. E eram muitos. Mas os larápios sempre podiam roubar-nos a cabaça com o vinho, o salpicão e o pão que tínhamos guardado para hora mais adiantada, quando a fome voltasse outra vez.
Fartos de palmilhar a zona nas imensas vezes que, quer um quer o outro, já tínhamos ido ao cangalheiro buscar casacos para outros tantos mortos, conhecíamos todos os atalhos e, de novo, nos metemos por um, entre montes e vales. Era para chegarmos mais depressa, antes dos últimos veladores do morto deixarem a casa, depois de beberem a cevada e comerem o pão de centeio que nunca faltava na despensa. A morte de um rico era uma das raras alturas em que os pobres tiravam a barriga de misérias. O pão nunca faltava.
Eis senão quando, perdido na noite, ecoa o balir de uma cabra, que parecia vir do outro mundo.
Não refeito do susto, o Firmino, sempre com a cabaça de vinho ao ombro, junta com a espingarda, decidiu que era dessa vez que o Diabo, ali transformado numa cabra negra como a noite, iria morrer às suas mãos, depois de o andar a tentar há uma data de tempo. Era ele que o obrigava a beber carradas de vinho, era ele que, a seguir, o instigava a bater na mulher, e coisas assim, coisas de demo. Aquele bicho ali, dizia o Firmino, não era uma cabra verdadeira, era antes um bode velho e chifrudo que não podia ser outra coisa senão o Demónio. E, dessa vez, não lhe iria escapar. Finalmente, ia acabar com o maldito, antes de ele se aperceber da sua passagem para o outro mundo, vará-lo a chumbo de caçadeira, levá-lo arrastado pelos cornos e entregá-lo à mulher para ela o cozinhar. Nunca mais ele tentaria ninguém e também não haveria no mundo um homem que se pudesse gabar de ter comido o Diabo assado no formo, sem ele saber que era mentira. O verdadeiro Diabo ia agora morrer as mãos dele.
Com o caixão à cabeça, quando as nuvens descobriam a lua e ela alumiava cá para baixo, eu é que parecia um fantasma, uma alma do outro mundo e tudo o que eu dizia para contrariar o Firmino caía em saco roto. Bem insistia eu que aquele animal não passava de uma pobre cabra esquecida no pasto, sob o orvalho da noite, talvez já com as tetas cheias de leite e pronta para ser mungida a seguir. Ele estava cego de medo e,  de repente, sem eu o poder impedir, desata a correr atrás cabra e esta, por sua vez, corria à frente dele, tanto quanto a corda a que se encontrava amarrada o permitia, até se estatelarem um e outro no socalco, em baixo, com o risco de a arma se disparar e ser ele o varado pelo tiro que tinha prometido à cabra..
− Anda lá seu grande cabrão, é hoje que te vou matar meu filho de uma égua! Julgas que vais passar toda a vida a tentar-me?! Espera aí que eu já te digo!
E eu com a urna à cabeça, sem poder fazer nada e a ver, além de uma cabra morta, um homem doido a quem eu tinha de proteger muito mais com as minhas palavras do que a caçadeira dele me protegia dos ladrões. Foi quando lhe disse:
- Anda cá Firmino, ajuda-me a apear o caixão que eu preciso urgentemente de ir ali atrás de uma árvore urinar.
O homem lá veio, depois de se levantar a custo, enquanto, arreganhando os dentes ao pobre animal, dizia.
- Não penses que vais passar desta noite, meu cabrão!
Quando me apanhei livre, corri para o pau onde tinha vista a corda presa e soltei o animal, que se escapuliu na noite, enquanto ecoavam no silêncio da noite os seus més intermitentes e assustados.
- Mé, mé....
Levei todo o caminho até casa do morto a convencer o meu companheiro de que o Diabo não existia senão na nossa imaginação, sobretudo depois de termos bebido um copito de vinho a mais.
Hoje, porém, tenho dúvidas, e quase lamento não ter permitido que o Firmino atirasse na cabra. Talvez ela fosse mesmo o Diabo, se pensarmos nas coisas más que acontecem por esse mundo  fora todos os dias..."

Templa
Templa - Membro nº 708

Irra, Andava há mais de 10 anos para escrever este conto. Finalmente!...
Templa - Membro nº 708

está espectacular Templa,adorei! :thumbsup:

Citação de: Nita em 17 janeiro, 2010, 20:40
está espectacular Templa,adorei! :thumbsup:

Olá, Nita, tu agora andas com o fetiche dos espelhos, é?

beijito e obrigada.
Templa - Membro nº 708

Muito bom, adorei! ;) Parabéns :)

Beijinho

Tive tanta pena em não poder participar no concurso do mês de Fevereiro. E obrigada pelo estímulo. De facto, hoje em dia, parece mesmo que o diabo anda à solta!!! Bolas! >:D
Templa - Membro nº 708

Raedon
Muito porreiro este conto  ;D

Parabéns

Também eu, que até tinha sido desafiado pela Margarida! Andei até à última a tentar conseguir um tempo para escrever um conto, mas andei cheio de trabalho e alguns problemas à mistura, não consegui participar. De nada ;) é mesmo, ele anda aí! eheh :D


Ora, sim senhor! Volta e meia, lá encontro mais umas pérolas literárias escondidas pelos confins deste fórum.

Sem qualquer exagero digo que este conto está ao nível, no mínimo, dos Contos da Montanha do nosso magnífico Miguel Torga.

Parabéns.

No entretanto, vou vasculhando por aí a ver se encontro mais  ;)

Pois, tenho de ler Miguel Torga, e tenho também de escrever mais um pouco, que ando relapsa.


Abraço, Arph

Templa
Templa - Membro nº 708