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  • Um conto de Natal - Uma prenda má.
    Iniciado por Templa
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Deixara de gostar do Natal após a morte dos pais, quando as lembranças dos que passara na infância quase foram enterradas com eles. As bolas lêvedas da mãe, as rabanadas, as filhós, as couves e o bacalhau, era agora ela quem fazia tudo isso, sabendo que nunca mais voltaria a encontrar, no dia seguinte, duas laranjas no sapato e umas meias brancas, daí para diante tratadas como se fossem algo sagrado que nunca fosse morrer.  
Depois de tantos anos, preparar a consoada era um trabalho enorme, a que só a alegria dos netos e o frenesim da abertura das prendas, mal o marido, vestido de Pai-Natal, tocava à campainha e distribuía o presente encomendado previamente por carta, dava algum sentido. Só por isso valia a pena passar doze horas de pé, desde que se levantava até se sentar à mesa, moída e com os pés em lama, como se tivesse caminhado o dia inteiro.
A seguir, após todos terem debicado, aqui e ali, um pouco da aletria, das rabanadas, do bolo-rei e do creme queimado, esquecia tudo. Era quando a árvore, enfeitada quase um mês antes pelo filho, pela nora e por duas das netas, dava à casa a alegria da noite, mais uma comemoração do nascimento de Jesus em Belém,  que o pequeno presépio, ali aos pés, representava.  
Mas tudo muda, nem sempre para melhor. Era o caso. Um pequeno terramoto abatera-se sobre todos e, a um mês da noite das noites, sentia uma enorme angústia. O furor dos tempos, a compulsividade do mundo, estragara-lhe o prazer de ver a família toda reunida, daí para frente. O filho do meio acabara de se divorciar e ela nunca mais veria o seu esforço de cozinheira e doceira recompensado na totalidade pela alegria dos netos reunidos, mal o velho das barbas batia à porta e, em voz de falsete, a troco de um beijo, entregava as prendas, escapulindo-se sorrateiramente porta fora e despedindo-se até ao ano seguinte.
Agora, em vez de se preocupar com as compras, sofria antecipadamente pelas duas netas, que não teria consigo no primeiro Natal do resto da sua vida. O divórcio do filho fora recentemente decretado e, ainda por cima, por uma causa demasiado forte para poder ser ignorada. Depois de oito anos de casamento e de outros tantos de engano, ele aceitara finalmente que a ex-mulher nunca o amara. Nunca se casara verdadeiramente consigo, mas sim com a boa vida que ele lhe pudesse dar.
Quando os problemas económicos eclodiram em toda a sua força, a frágil união ruiu com eles.
A casa, sempre o reflexo da mulher que lá mora, esteve igual durante todo aquele tempo, sem ter sido acarinhada por uma coisa nova que a alindasse um pouco. A grande parede da sala, cinzenta e já com alguns sinais de fumo da lareira, permaneceu nua desde que o casamento nasceu até que morreu. O dinheiro apenas chegava para as dezenas de trapos da ex companheira pendurados no guarda-vestidos, que entretanto teve de crescer para lhes dar lugar. E o mesmo se passava com a roupa das meninas. Havia sempre um casaco de cada cor para combinar com as mil e uma coisas que a mãe comprava, todas baratas, segundo o conceito de quem não tinha bem a noção do valor do dinheiro. Era uma rapariga bonita, poucas vezes trabalhara, é certo, e não gostava muito de o fazer fora de casa. O que queria ser era uma Cinderela maravilhosa, mas, no fundo, sempre se comportara como uma Gata Borralheira, de pano de pó na mão e esfregona, tal como a mãe.
Nunca vira a nora fazer um carinho ao filho, durante o tempo em que estiveram juntos. Até ele quebrar o silêncio e justificar, com todas as letras e para o espanto de todos, porque dormira quase sempre no sofá, até este ficar roto.
Apesar das mágoas, às vezes, sem poder desligar o interruptor do amor que o mantinha aprisionado à mulher, ainda tentava justificá-la. Ela era assim, dizia, por causa da mãe, uma criatura vampiro que sugava a energia da filha até à exaustão, preparando-se para fazer o mesmo às netas. Quando ela chegava a qualquer lado, parecia que todas as luzes se apagavam, o sol perdia brilho e o dia transformava-se numa imensa noite, fria e desconfortável. Nunca conhecera uma mulher tão negra em toda a vida e sentia que a incapacidade de amar da ex-mulher tinha na mãe a sua génese.
Uma manhã acordou e temeu futuro, disposto a recuperar toda a energia que, uma e outra, lhe tinham roubado durante aqueles anos todos.
Tivera pouca sorte o seu rapaz do meio. Casara com uma rapariga do shopping e receava que as netas estivessem a ser conduzidas pelo mesmo trilho, sem ela poder fazer grande coisa para as poupar a desilusões semelhantes, entre outras, à que acabavam de experimentar com o pai e a mãe, um para cada lado.
Mas agora era o Natal a preocupá-la, o Natal que deixara de o ser desde o dia em que o divórcio fora decretado. Tinha de ver o Natal apenas no que ele se tinha transformado, uma época de excessos e compras compulsivas, tão vazia de amor como o resto do ano e como a mãe das netas, incapaz de amar o filho. Sobretudo na adversidade, como prometeu naquele dia chuvoso do casamento de ambos, no mês de Setembro, quando a maioria dos convivas vaticinara o desenlace. Tudo fora demasiado formal e sem afecto. Sim, a ex-nora tinha sido incapaz de fazer da vida do filho um Natal constante, uma quadra de amor de que agora só restava o vazio e as duas netas. Ao menos elas!...
Apesar de tudo, tinha de prosseguir, ninguém morrera, embora tivesse morrido uma boa parte de alguém, ou talvez só uma parte do seu sonho.
Por tudo o que ficara e por quem ficara, teria de fazer de novo as batatas e o bacalhau, o polvo, os bolos de bacalhau, os bolos de gila, a aletria, o creme, as rabanadas, as farófias, compraria o pão-de-ló, o bolo-rei, as nozes, as avelãs, as amêndoas e os pinhões, enfim, dedicar-se-ia aos exageros do costume. Seria uma espécie de convite antecipado ao Natal do ano seguinte. Era para ele ser um pouco melhor e, sobretudo, com muito mais amor...
Era uma vez um casamento que terminou em divórcio, um mês antes do Natal.

Templa
Templa - Membro nº 708

Este conto também tem algo de real. A realidade tem sempre muita for;a.
Templa - Membro nº 708


Querida Templa

gostei do conto,é na mistura das duas«conto e realidade»

que muitas pessoas vivem os seus dias ;)


:-* :-* :-*

#3
Ó minha Anjinha, que tu agora andas atarefadita, não é verdade?

Beijinho e se a gente não se falar por aqui um Bom Natal e tudo de bom para ti e para os teus chiquititos e tudo, e tudo, e tudo...

Bjs.
Templa - Membro nº 708


Muito obrigada Templa ;D

Mas ainda vou dar algumas espreitadelas ;D


Bom Natal para todos :-* :-* :-* :-* :-*

Deixa-me dizer-te templa, que gostei muito deste conto!

Envolve a realidade e os temas que estão em foco, mas sem descorar da beleza literária!

Dou-te os parabéns pela versatilidade!
लोखा समस्ता सुखिनो भवन्तु
LOKHAA SAMASTAA SUKHINO BHAVANTU
Que todos os Seres de todos os mundos sejam Felizes!

Olha que eu aqui, praticamente, só exploro o género do forum..., ou seja, os fantasmas. A ironia vai toda para o meu blogue e se lesses o "Cãodómino" dirias como toda a gente, "Não sei quem é esta gaja", como a hei-de definir, aqui parece uma ordinária, ali uma senhora, acolá uma filha da mãe, e por aí uma chorinhas...

Abraço
Templa - Membro nº 708

lol... És a versatilidade em pessoa...

Eu tenho um estilo mais dramático... E isso preocupa toda a gente... O que até me agradou em tempos passados, mas agora chateia um pouco, mas pronto... É o que sai melhor...
लोखा समस्ता सुखिनो भवन्तु
LOKHAA SAMASTAA SUKHINO BHAVANTU
Que todos os Seres de todos os mundos sejam Felizes!

Citação de: Morgriff em 18 dezembro, 2009, 22:36
lol... És a versatilidade em pessoa...

Eu tenho um estilo mais dramático... E isso preocupa toda a gente... O que até me agradou em tempos passados, mas agora chateia um pouco, mas pronto... É o que sai melhor...

Isso, o estilo dramático, geralmente, também passa. Daqui, do alto da minha cétedra, digo que há um tempo na nossa vida em que parece que não há amanhã, que tudo é negro, ou cinza. De repente, sem descurarmos a existência do cinza e negro, constatamos que também há verde, cor de rosa, azul e por aí. Então, se até aí complicávamos as coisas, passamos a simplificá-las e entregamo-nos nas mãos do tempo e de Deus. Um e outro fazem os seus estragos em nós, mas, como dizias há pouco, fica aquela coisa a que se chama sabedoria, que nem mesmo Sócrates, o grego, sabia bem o que era...

Beijinho e faz favor, amanhã tenho um almoço e não estou para filosofias...

Além de que, se fores verdadeiramente dramático não terás outra coisa a fazer senão gostares de ti como és, sem dramas. Depois, lembra-te do anúncio do leite mimosa que diz:

- Se eu não gostar de mim, quem gostará?! E eu gosto de ti,  mesmo que tu não gostes dos meu contos, ou de alguns dos meus contos, devo dizer, depois da tua última actualização na matéria agora controvertida. E olha, hoje estou com veia, era capaz de escrever sobre este mundo e o outro, sem grandes disléxias! >:D
Templa - Membro nº 708

Citação de: Templa em 18 dezembro, 2009, 22:49
Isso, o estilo dramático, geralmente, também passa. Daqui, do alto da minha cétedra, digo que há um tempo na nossa vida em que parece que não há amanhã, que tudo é negro, ou cinza. De repente, sem descurarmos a existência do cinza e negro, constatamos que também há verde, cor de rosa, azul e por aí. Então, se até aí complicávamos as coisas, passamos a simplificá-las e entregamo-nos nas mãos do tempo e de Deus. Um e outro fazem os seus estragos em nós, mas, como dizias há pouco, fica aquela coisa a que se chama sabedoria, que nem mesmo Sócrates, o grego, sabia bem o que era...

Beijinho e faz favor, amanhã tenho um almoço e não estou para filosofias...

Além de que, se fores verdadeiramente dramático não terás outra coisa a fazer senão gostares de ti como és, sem dramas. Depois, lembra-te do anúncio do leite mimosa que diz:

- Se eu não gostar de mim, quem gostará?! E eu gosto de ti,  mesmo que tu não gostes dos meu contos, ou de alguns dos meus contos, devo dizer, depois da tua última actualização na matéria agora controvertida. E olha, hoje estou com veia, era capaz de escrever sobre este mundo e o outro, sem grandes disléxias! >:D

Eu sou muito alegre! Adoro as cores e sinto-as, mas tipo, o meu tipo de escrita é a dramática... lol

Já agora, bota isso cáh pah fora que é à borla! lol!!!

Escreve! lol

Eu também gosto de ti... Nem todos os nossos trabalhos agradam a todos... Sempre foi dificil agradar a gregos e troianos não é verdade?
लोखा समस्ता सुखिनो भवन्तु
LOKHAA SAMASTAA SUKHINO BHAVANTU
Que todos os Seres de todos os mundos sejam Felizes!

#10
E eu, do que escrevo, também gosto mais de umas coisas do que de outras. Então e não te havia de dar o direito de não gostares de, de...?!... Mas que raio de democrata seria eu!...

Até amanhã, que estou a morrer de frio, só com a preguiça de ir desencantar o aquecedor.
Templa - Membro nº 708

Templa é lindo mesmo adorei devias escreve-lo num livro e editar, falas de um conto mas tem bases reais palavras muito acertadas, parabens ;)... ( um dia deixo um topico sobre um livro que estou a escrever) ;)
A vida é um mar de rosas apenas temos de nadar por entre os espinhos.

Citação de: lindsey em 21 dezembro, 2009, 16:42
Templa é lindo mesmo adorei devias escreve-lo num livro e editar, falas de um conto mas tem bases reais palavras muito acertadas, parabens ;)... ( um dia deixo um topico sobre um livro que estou a escrever) ;)

Por que é que eu acho que esta menina está no céu? Que estejas em paz, se for o caso, e em paz estejas se andares por cá.
Templa - Membro nº 708