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  • A casa onde Bárbara mora - Hoje deu-me para revisitar os meus livros à espera de
    Iniciado por Templa
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Início

Não há razão nenhuma padecer uma vida inteira pelos erros dos outros sendo mais uma coitadinha cuja história genética não é das mais famosas.
Só porque uma trisavó colateral se envolveu com o próprio irmão, não tenho de penar por isso eternamente. Danem-se as más-línguas quando veladamente me chapam na cara esta nódoa negra da família de quem descendo. Chega! Enquanto a mulher andava entretida pelo Douro e duas honras se perderam, o marido dela fazia política em Lisboa com a inocência dos enganados. Estes são sempre os últimos a saberem dos factos quando os mesmos são importantes. Não que a criatura fosse santa Nada disso. Sobretudo porque um homem, na questão da liberdade, traz logo à nascença uma espécie de salvo-conduto que lhe permite ir a todo lado onde uma mulher estiver recetiva. Principalmente se tiver no bolso uma carteira recheada e privilégios para distribuir ao longo do concubinato pelos filhos bastardos. Sobretudo naquele tempo. Hoje filhos destes já nem existem. Pelo menos de direito.
Não foi para afogar mágoas conjugais que o meu memorável tio se envolveu com a espanhola, que tinha por obrigação lavar-lhe os coturnos e chegar-lhe os chinelos da noite. Ela era o seu doce, quando as revoltas do instável século XIX deixavam a cabeça dos políticos em água. Sobretudo os que como ele viviam longe do aconchego de um lar, despejados nas ruas de Lisboa onde a volubilidade de um homem tinha sempre um leque enorme de oportunidades. E a sevilhana, era isso mesmo, uma mulher à sua disposição e um símbolo, um estatuto. Ter uma ou várias amantes media o poder de um nobre. Ainda mais se ele fosse da província, mesmo de uma tão importante como o Douro, onde a jovem esposa parecia não lhe sentir a falta.
Mas, fique o pobre do meu tio a dormir serenamente na sua tumba centenária, enquanto, a propósito da mulher com quem casou, a minha ancestral tia, me ocorre algo sobre a natureza humana.
Penso, então:
Os apelos do corpo raramente são inocentes e às vezes têm atrás de si uma perversidade cega que não cede a coisa nenhuma. Nem à honra, nem à moral, nem ao castigo. Nada os detém, a não ser o fim do caminho, quando os sentidos sucumbem ao prazer e quando se esbatem todas as diferenças que a sociedade estabeleceu ao distinguir os ricos dos pobres, os cristãos dos muçulmanos, os hindus dos budistas. O sexo tem sempre a última palavra no jogo da vida, de que eu sou apenas mais uma cartada. Sou o ganho de um jogador experiente a que chamo destino. Sou o produto de um espermatozóide e de um óvulo caprichosos, mancomunados um com o outro numa esquina da vida para me dar a conhecer o mundo, completamente alheios ao modo como possa eu fazer isso.
Penso mais uma vez na minha velha tia e ocorre-me dizer que para além do nascer e morrer, onde todos são iguais, o sexo é mais uma forma de igualdade. Tanto os ricos como pobres costumam estar nus, ou quase, quando o sexo é a palavra.
Não sei como é, nunca experimentei. Sou virgem e às vezes penso na minha vida como um livro sem páginas e sem outra história que não se circunscreva ao quotidiano dos dias, em que as coisas banais têm a maior quota-parte de mim. Comer, dormir, andar pela casa, frequentemente atordoada pelos sons que ela produz de uma forma ensurdecedora. Há aqui enraizados e algo perversos demasiados maus hábitos. Ninguém pode ser feliz vivendo aqui. E assim não é raros os meus ouvidos furtarem-se maquinalmente ao ruído cacófato da cantilena em que esta casa mergulhou. É uma tentativa de me salvar de certos males, quando me sinto demasiado preenchida com uma vida apostada em me ser hostil e com muitos vazios.
A casa está povoada de sons esdrúxulos. Os gritos da mãe, as perguntas chatas da avó, as palavras azedas e monocórdicas do pai.
Depois, o cuidar dos meus irmãos e do resto da família, tudo faz parte de um pacote de bens adquiridos a preço único e onde a falta de um elemento não baixa o caderno de encargos. É como se tratasse de uma obra que eu tivesse de levar a cabo sem direito a reclamação por falhas nas contrapartidas.
Fora isso, na casa, restam-me meia dúzia de bens pessoais, os afectos um pouco estranhos dos meus pais, a quem falta habilidade expressiva em matéria de amor.
Salvam-se, neste ínclito deserto, os meus irmãos.
Era eu ainda muito pequena, quando esta família traçou para mim planos demasiado exigentes. Tocou-me ser maestrina nesta banda que raramente conheceu harmonia. Esperem para ouvirem os instrumentos da orquestra. Quase todos precisaram desde sempre, especialmente os sopranos, de afinação. Tantos sons deprimentes já deviam ter sido eliminados há muito tempo desta casa, se tivéssemos sido capazes. Mas não...
Valha-me ao menos o aconchego dos amigos e a sua compreensão balsâmica. Valha-me igualmente o meu mundo interior onde permanecem em lugar de honra o meu avô materno e tudo quanto dele recebi.
Não que o resto da família não goste de mim, nada disso. Apenas a forma de sentirmos as coisas, sobretudo as intangíveis, passa por caminhos paralelos impedidos pelas leis geométricas de se tocarem. Estamos condenados a um lado a lado sem nenhum de nós saber como entrar em convergência e não há maneira de cada um se mostrar para cada um ver quem mora nesta casa.
Penso: o livro da minha vida nada mais é do que um vulgar ovo gorado. Do amor em geral conheço isto e, do amor, amor, conheço apenas o conceito, através das formulações dos escritores, dos poetas e de gente comum. Do amor da carne e do corpo, da sensibilidade e do desejo, observo portas adentro uma prática demasiado enviesada para tentar segui-la. Não tenho a sorte de ter bons exemplos de amor, desse sentimento e do seu componente íntimo que às vezes resulta quase em fatalidade. Para mim, é tudo teoria.
Naquilo que me dispus a contar, se conseguir, nada de sexo, nada de pormenores escabrosos, hoje em dia o alimento preferido das vidas sem vida onde a civilização nos largou desamparados. É por coisas assim que cá andamos, à espera de encontrarmos o norte numa enorme escassez de estrelas polares. O mar e o céu das pessoas são, como os meus, imensos e cada dia mais tumultuados. Os naufrágios têm-se sucedido uns atrás dos outros deixando atrás de si um rasto de destruição, uma quase morte generalizada.
Nesta casa não há nada. Nem amor,e muito menos desejo. Morreram ambos num dia de indolência, quando todas as outras vozes falaram mais alto. Sucumbiu às mãos do trabalho, da vontade de ganhar dinheiro e enriquecer. Morreu também por causa das coisas inúteis a que se deu prioridade. O amor, se é que algum dia o houve, morreu seco como uma planta a que faltou a água e nutrientes. Por aqui, vagueia apenas uma pálida sombra do amor, um fantasma que se arrasta vergado ao hábito de anos e anos de uma existência sem alma.
Depois disto, só me resta dizer ao leitor que, se esperar destas páginas tinta erótica para pintar as horas dos seus dias, pode fechar o livro. Se também for cinzento, em vez de me folhear, pode dedicar-se às várias versões disponíveis do Kamasutra. Algumas até já foram concebidas para pessoas do mesmo sexo. A anatomia, para esta literatura, foi estudada à exaustão a fim de permitir o usufruto pleno do amor. Embora as minhas vozes interiores me digam continuamente que nada disto valerá a pena. Tenho para mim que se o amor não se sentir verdadeiramente não haverá nenhum manual capaz de garantir êxito ao sexo. Sobretudo a quem sonhou ser tocado por um príncipe ou uma princesa.
A única excepção à inocuidade da história em matéria de sexo serão umas pinceladas sobre a minha parente longínqua, aquela de quem falei no início quando disse que o mundo não tem de nos marcar por causa de certas ovelhas negras da família, ainda que paridas nas brancas alcovas da velha nobreza oitocentista.   
A minha tia nasceu aristocrata graças a uns títulos concedidos pelos reis aos seus vassalos, que vieram acompanhados de umas boas porções de terra. Não tendo ainda sido inventada a bolsa, as terras eram as acções do tempo. Até porque a moeda e o ouro toda a vida foram bens demasiado escassos para um rei os distribuir pelos servidores a troco de quase nada.
Depois, erguia-se lá nos baldios uma casa com uma capela ao lado feita à custa de abundante mão-de-obra barata, que, ao contrário de hoje, nunca faltou nos campos onde a fome era o prato do dia. Excepto para os senhores.
Foi nessa dádiva minifundiária que a minha tia nasceu, numa aldeia de solo xistoso escaldante em que curtia tanto o cio como o sol curte a pele. E era por esse mundo rural que, perversa, fazia as viagens ao éden dos sentidos. O Douro ali tão perto elanguescia-lhe a carne, tão fraca e tão forte que não se deixava corromper por nenhuma moral. Não obedecia a nenhum outro código que não tivesse no corpo escondido algures nas suas partes mais íntimas.
São estes os meus parentes de que há memória escrita, uma família nobre e rica, depois de os seus membros terem acordado ricos de um dia para o outro e como se o seu sangue nunca tivesse sido plebeu.
É no Douro que vou enraizar a minha história, numa tentativa de conhecer o líquido que me corre nas veias e também os seus venenos, se os houver. Julgo que sim e penso até que os malefícios sanguíneos da minha família nunca até hoje foram vencidos. Nunca se vergaram à força dos antídotos dos tempos modernos. Parece até que têm vindo a ganhar anticorpos e eu estou quase a concordar com as testemunhas de Jeová e com a sua aversão bíblica à manipulação do sangue.
Mesmo assim, vou poupar a minha colateral tetravó à sordidez dos pormenores. É para o leitor recriar os cenários e imaginar o que quiser. O mesmo recato usarei com todas as pessoas que por acaso ou coincidência, destino, eu sei lá, tiveram interveniência, directa ou não, na minha vida.
Tenho trinta e um anos.
Até aqui nada de novo. Há muita gente por aí a ter esta idade. É ainda uma vida ainda demasiado pequena para alguém ter a veleidade de a contar e muito menos desta forma prosaica. Isso deveria ser reservado às vidas repletas de grandes feitos, desses que dão honra e libertam da morte. Talvez devesse esperar mais uns tempos, até fazer algo digno de uma pequena epopeia em prosa: descobrir, quem sabe, as causas e inventar um remédio para doenças da humanidade como o desamor, a solidão, a tristeza e a angústia. Por que não tentar libertar o mundo desses males? Mas a minha vida é demasiado pequena para remover tanto lastro mau. Talvez devesse então aguardar o decurso de mais uns tempos até poder chamar memórias a isto, se o leitor tiver a amabilidade de me ler, porque eu receio não o poder fazer...
Foi engraçado... Versejei. Mas não tenha ilusões porque de poesia aqui vai encontrar pouco. Saiu-me de rajada como vento a abanar e secar roupa branca de gente pobre estendida ao sol. E calor humano, essa substância cada vez mais falida num mundo onde o egoísmo se espalha mais depressa do que oxigénio fotosintetisado pela luz, é o que espero dar-lhe. Não sei se o conseguirei. A harmonia é cada vez mais escassa e as sombras avançam tenazmente, até da claridade não restar senão uma recordação na memória de quem nasceu para viver sob o manto da escuridão. E, por tudo isso, espero que encontre aqui, leitor, uma substância capaz de lhe aquecer a alma. Aqui, nestas letras...
Até aos dezassete anos, a minha vida decorreu com relativa tranquilidade. Essa parte pouco mais merece do que um pequeno traço: a família, a escola e algumas obrigações caseiras impostas por circunstâncias determinantes da minha vida adulta posterior. Sempre bastante pesadas, por sinal. Tive, desde cedo, um pão-nosso de cada dia cheio de responsabilidades, sem hipóteses de grandes interrupções, dessas capazes de me fazerem resvalar para o mundo intranquilo dos porquês. Tive de adiar todas as perguntas para mais tarde, embora intuitivamente já lhes adivinhasse a resposta.
Depois veio a sentença, dura e implacável, quando os meus olhos começaram a atraiçoar-me nas cores e esbater-me os contornos das coisas prometendo-me uma noite perpétua:
− D. Mercedes, a sua filha deve ter uma doença congénita e progressiva. Nestes casos, não há cura possível. Não há óculos que possam corrigir esta deficiência – disse o médico, enquanto uns aprendizes de doutores forçavam mais uns exames sobre a cobaia em que me transformei.
− Mas qual é a doença? – perguntou a minha mãe.
Templa - Membro nº 708