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  • O vestido azul embruxado
    Iniciado por Templa
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Pronto! É Páscoa, não me interessa. Vou dizer qualquer coisa, vou talvez vasculhar nas minhas memórias porque ando com saudade de dizer coisas, hoje que me lembrei de um vestido azul que a minha mãe me fez por esta altura. Há quanto tempo, Senhor!?!...
Era para eu levar à missa de aleluia no domingo, cedinho, quando já se sabia pelo repicar do sino que Cristo tinha ressuscitado. Eu, juntamente com os meus irmãos, não podia fazer má figura à beira dos outros miúdos mas, sobretudo, junto do Senhor, para cuja festa a minha mãe passava uma semana inteira a fazer os folares no forno da aldeia para toda a gente, à custa de muito sono adiado e sem compensação...
Às vezes o vestido atrasava e eu quase o sentia comprometido quando, ao raiar da manhã, ainda havia nele alguns alinhavos ao dependuro, que era preciso arrancar à força de dentes, sempre com mais sentido de oportunidade e prontidão do que a tesoura.
Foi o que aconteceu dessa vez, com o meu vestido azul.
Quando acordei, ainda ao lusco-fusco matinal ─  que nesse dia a noite era quase toda ela manhã para quem ia vestir um vestido novo ─  ainda ele andava de um lado para o outro nas mãos da mãe, pressurosa em acabá-lo a tempo. Havia outro ao lado já pronto, mais pequeno, porque lá em casa era eu a irmã mais velha e as mães, parece-nos, em todo o mundo, têm sempre uma preferência pelas filhas mais novas... É o que diz o egoísmo de "filha mais velha", que nunca se liberta da síndrome de precursora para quem um carinho ou uma atenção chegam sempre, de acordo com o seu egoísta modo de encarar as coisas, em segundo lugar...
Já o sino chamava os fiéis para a missa, quando o ferro de engomar da minha mãe deslizava para um lado e para o outro nas mãos dela,  sobre o vestido, de maneira a eu poder vesti-lo quentinho, eu que sempre fui uma criança de sangue frio e por isso mesmo muito friorenta...
Depois, quando o meu vestido azul já se passeava na aldeia no o meu corpo infantil, aconteceu como das outras vezes, raras, é certo, em que eu envergava um traje novo: parecia sempre que o povo em peso, sobretudo as mulheres, fazia convergir o olhar em mim, acompanhado de alguns comentários de que a minha avó materna se tornava a receptora:
 A tua neta mais velha, a filha da tua Adelina, é diferente das outras miúdas...; o raio da miúda, tudo lhe fica bem!...
A avó ficava toda vaidosa e respondia que não eram os trapos que eu envergava que me faziam brilhar, mas sim a forma como eu os usava: com estilo, com classe. E ainda de tão tenra idade...
Entretanto, a avó sentia que muitos desses olhares traziam um pouco de inveja à mistura, um olho grande capaz de causar enormes danos ao destinatário. E lá teria a sua razão...
Desde bem cedo, a aldeia inteira começou, a bel-prazer, a colocar-me rótulos, à medida do frasco que eu seria na cabeça de uns quantos alquimistas apostados em encher-me de qualquer coisa, de preferência venenosa: eu tinha de ser, à força, peneirenta, porque os vestidos me ficavam bem, tinha de ser igualmente uma doutora com as aspas da ironia porque, quando saía da escola, levava sempre para casa um livro na mão,  e porque não saía desalinhada nem me dedicava a correrias como todos os outros miúdos. Eu era tudo isso e, tudo isso era mau porque, etiquetas assim, são sempre os nomes que a inveja dá às coisas, sobretudo quando as coisas são gente...
Por causa de tantos estigmas, um dia, uma suposta amiga resolveu livrar-me deles, tentando ensinar-me a reaprender a andar porque, mais uma vez, disse ela e dizia toda a gente, eu tinha um caminhar muito ondulante e muito peneirento, regido pela orquestra da vaidade, que não ficava bem numa rapariga,  e que assim parecia uma grandessíssima atrevida para coisas que não devia....E ela dizia "muito peneirento" porque não sabia dizer, nem sofisticado,  nem elegante..., se calhar, porque ela até era minha amiga....
Nunca a Teresa, com a sua boa vontade de samaritana pudica, conseguiu substituir o que Deus me deu como natural por um outro caminhar que se ajustasse aos padrões de uma aldeia onde, quem tivesse algo de diferente, era logo taxada como a peneirenta a quem muitos admiravam mas de quem nem todos tinham coragem de se aproximar...
Ao ponto de, anos mais tarde, uma colega de trabalho, daquelas para quem a língua tem um especial empenho em saborear os podres da vida e de os aprimorar à medida de uma perversidade sui generis, me alcunhar de " O Andar Modelo"....
Coitada, digo eu que hoje me lembrei do meu vestido azul de Páscoa, de Cristo e de todas as paixões. Se eu quisesse, de todo, retribuir-lhe um mimo idêntico ou pior, não teria grande dificuldade. A vida encarregou-se  de lhe dar um nome para além daquele que obteve no baptismo,  ao acrescentar-lhe a cruel "mirolha", depois de um acidente lhe ter provocado a cegueira, numa pedrada arremessada por alguém cuja mão teria uma similitude idêntica à língua da minha tardia madrinha... Além de que, a família dela foi visitada pela tragédia de uma forma tão violenta que, não duvido, já lavou, corou e branqueou todos os pecados que uma língua como a dela,  bem diferente da de Santo António,  pudesse ter desencadeado no universo.
A minha avó, se tivesse tido conhecimento da história, era capaz de lhe ajustar logo um ditado antigo como este: "nunca o invejoso medrou nem quem à beira dele morou"...
E eu estou para aqui a dizer estas coisas, que quase parecem um prato frio de vingança, porque só há dois ou três dias soube que, em tempos, fui " O Andar Modelo".
Depois, digo estas coisas agora porque é bom expurgar todo o que nos vai na alma. E, nada melhor do que um tempo de paixão e Quaresma para nos vermos livres dos maus pensamentos.
O meu vestido novo era aos rectângulos azuis e brancos, foi com ele que nessa Páscoa fui à missa e recebemos o Senhor lá em casa...,
Porém, nem a bênção do padre na visita pascal nem o facto de eu ter depositado um puro e casto beijo na cruz de Cristo, a nossa ilustre visita desse dia, livrou o meu vestido azul do "olho grande" causador de desastres, que eram, com toda a certeza, sobrenaturais ou, no mínimo, como diziam a avó e a mãe, obra de um qualquer bruxedo mesquinho...
Uma manhã, quando acordei, depois de, à noite, quando despi o meu vestido azul, o ter colocado cuidadosamente numa cadeira, reparei com tristeza que a barra da saia tinha sofrido três golpes profundos,  de tamanhos diferentes, sinal, segundo a minha mãe e a minha avó, de que eu tinha sido acometida, juntamente com o meu vestido azul, de um temendo mal de inveja que era preciso atalhar...
 Tens de o coser, que eu já sabia coser desde bem pequena – disse a mãe – mas não pode ser com a mão direita! ...
Isto, digo eu, que nunca mais terei um vestido novo feito pela minha mãe, que entretanto morreu e estará – espero eu – junto de Cristo que subiu aos céus ao terceiro dia: tudo o que for provocado pelo lado mais sinistro do universo tem de ser, forçosamente, desfeito pelo mesmo lado...
Nestas coisas, sobretudo em tempo de Páscoa e de fé, mais por mais ou menos por menos não dão mais e a ciência fica então reduzida a coisíssima nenhuma...

Páscoa de um ano qualquer
Templa - Membro nº 708